“O fascismo em cimento armado”

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23 Junho 2015

No ano em que se completam cinco décadas da morte de Le Corbusier, ocorrida em 27 de agosto de 1965, seus adoradores estão confusos, o público atônito e os arquitetos divididos. O que era apenas rumor, tornou-se fato. Três novos livros, com minuciosas enquetes, comprovam a participação dele em círculos, partidos e publicações fascistas, ultranacionalistas, antiparlamentares, contra a democracia e a “degeneração da raça”, não raro ostentando um antissemitismo virulento.

A reportagem é de Sheila Leirner, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 22-06-2015. 

Finalmente, todos são obrigados a admitir que, além de apoiar a extrema-direita, Le Corbusier defendeu a eugenia social, simpatizou com os regimes totalitários, instalou-se em Vichy onde tentou vender as suas ideias ao regime de Pétain e, oportunista que era, sonhou encontrar Mussolini em 1934, imaginando, para seduzi-lo, uma noitada de projeção de diapositivos.

Por motivos desconhecidos – talvez porque a França tenha como hábito o recalque do que não faz bem à boa consciência do país, talvez porque aqui se desculpe o que nasce no “espírito de uma época” – até agora, nenhum historiador, fora raros especialistas, se ocupou seriamente da questão.

Os autores Xavier de Jarcy, François Chaslin e Marc Perelman apontam a ligação entre as posições ideológicas do arquiteto e os seus conceitos, evocando o contexto político no qual ele pensou, projetou, construiu e defendeu as próprias obras. E como as formas sempre veiculam ideias, todos convergem no afã de provar que a arquitetura de Le Corbusier é “um fascismo em cimento armado”.

Contudo, A Medida do Homem, retrospectiva inédita que reúne mais de 300 peças no Centro Pompidou (até 3 de agosto), dissimula estes fatos, descontextualiza a obra e mantém o mesmo silêncio que envolveu o mito até agora. Nenhum traço do passado obscuro deste gênio da arquitetura figura diretamente na exposição. Para os curadores, “este não é o seu assunto” – o que, evidentemente, revela – além da omissão histórica – uma enorme incapacidade crítica.

Mostrar apenas como o corpo humano guia o pensamento e as criações do arquiteto, sem revelar todas as suas facetas, falseia a compreensão do resultado. Do ponto de vista de Corbusier, ademais, este corpo é uma massa musculosa, congelada para sempre, sob um registro definitivo e invariável: o Modulor.

Este sistema de produção de espaços, criado em 1943, baseado nas proporções de um indivíduo imaginário, “não aceita, como diz Perelman, que cada pessoa e cada corpo sejam diferentes uns dos outros”.

O fascismo e o nazismo, assim como o stakhanovismo stalinista ou o puritanismo neostalinista, repousam sobre uma corporeidade de massa bastante próxima.

Diante da posição dos curadores, o mais espantoso é que o próprio Le Corbusier sublinha o laço orgânico entre as suas concepções urbanísticas modernistas e convicções políticas. O objetivo maior do arquiteto: “Uma raça sólida, sã e bela”. A obsessão: “Aperfeiçoamento das cidades, edificação de uma sociedade ordeira, viril, higiênica e racional”. Os conselhos: “Classifiquem as populações urbanas, triem e rechacem os inúteis”. Sua vontade: “Regularidade geométrica, limpeza e, se necessário, depuração”.

Aqui, estamos muito longe das liberdades e dos direitos do homem. E bem perto dos sonhos ditatoriais. As teses de Corbusier – materializadas também em grande parte desta retrospectiva – não correspondem em nada ao “humanismo” que aprendemos a ver no seu trabalho. Hoje, o “Plan Voisin” de destruir boa parte do centro de Paris, para construir 18 torres cruciformes de 200 metros de altura, “serenas, fortes e organizadas”, dá arrepios!

A mostra no Pompidou é complexa, seu percurso íngreme, as relações entre os trabalhos, assim como a sua evolução, não são evidentes. A obra pictórica, ambígua e totalmente inspirada em mestres como Léger e Picasso, entre outros, esclarece bastante, porém não satisfaz. É simplesmente ruim. E contradiz Corbusier em seu culto do ângulo reto, ódio às curvas e à desordem, recusa do acaso e da história, gosto obsessivo pela fabricação em série e padronização que, afinal, constituem toda a sua ideologia ordenadora.

O novo homem no pensamento purista e megalomaníaco de Corbusier – que reivindica poderes de demiurgo nos vídeos, manuscritos e iconografia – é produto da cidade, condicionado, formatado e controlado 24 horas por dia. A grande ironia do destino é que o homem Le Corbusier, que viveu como se fosse “Deus”, terminou a sua vida numa cabana. E morreu afogado, como Deus quis.

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“O fascismo em cimento armado” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU