As necessidades do Antropoceno e a época das tecnologias digitais urgem um outro modo de fazer política. Entrevista especial com Alexandre Araújo Costa

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Por: Patricia Fachin | 22 Mai 2018

Uma análise sobre o futuro e a relevância das esquerdas na política brasileira precisa reconhecer a “existência de algumas conquistas sociais em 13 anos de governo encabeçado pelo maior partido de esquerda brasileiro”, mas também necessita “colocar o dedo na ferida” para verificar as consequências da política do “ganha-ganha” e das apostas econômicas e ambientais feitas nos últimos anos, pondera Alexandre Araújo Costa na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. “A política de ganha-ganha, de benefícios para os andares de cima e de baixo só encontrava sustentação numa conjuntura de preços elevados das commodities (minério de ferro, petróleo, soja). Portanto, além do risco econômico de manter tamanha dependência da pauta de exportações (o caso venezuelano é trágico nesse sentido), o custo ambiental disso é gigantesco”, afirma.

Crítico das políticas desenvolvimentistas dos governos petistas, Costa avalia que elas implicam na “negação de outros modos de vida, de imposição da ‘transformação do índio em pobre’”. E acrescenta: “Esse pensamento de bandeirante é que tornou possível vir das mãos de governos que se reivindicaram de esquerda a liberação dos transgênicos, a aposta nos combustíveis fósseis e a ênfase no pré-sal, a ampliação desmedida do uso de água para irrigação e que deixou Mariana e Belo Monte como tristes cicatrizes”.

Na avaliação dele, a reinvenção da esquerda na política “precisa se dar a partir de uma reorientação profunda de programa e estratégia, adaptados às necessidades do Antropoceno e da época das tecnologias digitais, de fato olhando para o futuro, mas também prestando conta do passado, do peso dos cinco séculos de etnogenocídio e de escravidão contra as populações indígenas e africanas, de uma cultura que reproduz as discriminações e opressões diversas. Também se trata de reorientar profundamente forma organizativa e métodos, no modo de fazer política”. Nesse sentido, explica, talvez “a contribuição possa se dar principalmente a partir de um programa baseado na lógica do Programa de Transição, mas profundamente reelaborado. Que parta do combate aos privilégios dos de cima e de reformas essenciais, como reforma tributária, reforma agrária, reforma urbana, demarcação de terras indígenas, transição energética etc. e que, com base na mobilização e organização populares, construa um contrapoder”. Mas adverte: “Embora possamos falar de esgotamento de um determinado modelo de esquerda, isso não significa que esquerdas renovadas não possam apontar para esse caminho. Pelo contrário”.


Alexandre Costa | Foto: Arquivo Pessoal

Alexandre Araújo Costa é professor da Universidade Estadual do Ceará. Formado em Física, Ph.D. em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, com pós-doutorado na Universidade de Yale. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Militante ecossocialista e ativista climático, edita o blog O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei e é um dos coordenadores do fórum de articulação Ceará no Clima.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que balanço faz da trajetória das esquerdas no país nos últimos anos?

Alexandre Araújo Costa - Existem diversos aspectos, complexos por sinal, a serem incluídos num balanço da esquerda brasileira, ou melhor, das esquerdas, no plural mesmo.

O primeiro aspecto, e isso precisa ser enfatizado, é que a experiência demonstrou que qualquer avanço social, qualquer melhoria mínima nas condições de vida do “andar de baixo” vai enfrentar resistência das classes dominantes. Fundada sobre genocídio indígena e sequestro e escravidão de povos africanos, a elite brasileira segue escravista e autoritária, avessa a qualquer inclusão.

Dito isto e reconhecendo a existência de algumas conquistas sociais em 13 anos de governo encabeçado pelo maior partido de esquerda brasileiro, há que se colocar o dedo na ferida. A política de ganha-ganha, de benefícios para os andares de cima e de baixo só encontrava sustentação numa conjuntura de preços elevados das commodities (minério de ferro, petróleo, soja). Portanto, além do risco econômico de manter tamanha dependência da pauta de exportações (o caso venezuelano é trágico nesse sentido), o custo ambiental disso é gigantesco.

Essa conciliação de classes, que vai muito além dos acordos eleitorais com partidos representantes dos interesses das empreiteiras, do agronegócio, dos bancos, das mineradoras etc., também se deu no nível direto, econômico. É terrível constatar que o favorecimento escancarado desses setores ampliou-se nos governos petistas. E, claro, deu-se às custas do sacrifício de uma agenda de reformas e transformações profundas: reforma agrária, demarcação indígena, reforma tributária, democratização da mídia, reforma política etc.

Especialmente é lamentável, é trágica a permanência, na mentalidade de setores da esquerda, de um pensamento desenvolvimentista, de negação de outros modos de vida, de imposição da “transformação do índio em pobre”, tomando por empréstimo Eduardo Viveiros de Castro, enfim de colonizador interno. Aliás, esse pensamento de bandeirante é que tornou possível vir das mãos de governos que se reivindicaram de esquerda a liberação dos transgênicos, a aposta nos combustíveis fósseis e a ênfase no pré-sal, a ampliação desmedida do uso de água para irrigação e que deixou Mariana e Belo Monte como tristes cicatrizes.

IHU On-Line - Por que na sua avaliação o desenvolvimentismo de esquerda é uma tragédia? Por que o caracteriza como um “pensamento de colonizador interno”?

Alexandre Araújo Costa - A tragédia é na verdade dupla. Primeiro porque se baseia num negacionismo, consciente ou inconsciente, dos limites da natureza. A ciência reconhece que a humanidade – de maneira desigual, é claro, com a pegada ecológica dos ricos várias vezes maior – tem hoje o poder de uma força geológica para alterar o ambiente em escala global. No que se conhece por Antropoceno, uma nova época geológica, das chamadas fronteiras planetárias já ultrapassamos marcos seguros em pelo menos biodiversidade, clima, ciclos biogeoquímicos e provavelmente no nível de contaminação por plástico, substâncias tóxicas etc. e estamos próximos ao limite nas demais, incluindo uso de água doce, terra ocupada e acidez oceânica. Quando a expansão do capital é cada vez mais violenta socioambientalmente, a crítica anticapitalista bem como a proposta de sociedade pós-capitalista precisam ser vertebralmente ecológicas.

Segundo porque se materializa num não reconhecimento de outros modos de vida que não o modo predatório baseado na infinita expansão capitalista industrial. Como se o Socialismo fosse a produção destrutiva capitalista convertida de propriedade privada em pública. É uma lógica que, como os economistas e políticos capitalistas, adota como métrica fundamental um PIB que contabiliza produção e venda de armas e não contabiliza tudo que é usufruído de maneira comum, sem relações mercantis, sem moeda envolvida, em comunidades ribeirinhas, sertanejas, quilombolas e indígenas.

É o que faz com que pessoas de esquerda se refiram a essas comunidades e povos como “pobres em terra rica”, perigosamente flertando com uma política “socialista” de empobrecimento da própria natureza. É a base das ilusões sobre obtenção de recurso econômico a partir da exploração do petróleo do pré-sal, ignorando o fato de que não há “CO₂ de esquerda” e de tantas outras.

IHU On-Line - Como as esquerdas entendem e tratam a questão ambiental no Brasil?

Alexandre Araújo Costa - Conectando com a pergunta anterior, digo, lamentando, que as esquerdas em sua maioria ainda percebem o meio natural com um oponente a ser conquistado, explorado e exaurido. E que é do crescimento econômico baseado nessa exploração que advirá a riqueza para a classe trabalhadora. Ledo engano. Não há Socialismo em terra (Terra) arrasada.

Mas outros setores, ao meu ver, estão dando seus primeiros passos no debate. Em geral sob uma consigna geral do Ecossocialismo, dialogam com o ecossistema de saídas ecológicas, que combina também as ideias de decrescimento justo, de buen-vivir, de direitos da Mãe-Terra etc. E isso abre caminho para esses setores ocuparem um novo nicho, não abdicando das tradições melhores da esquerda (clareza da oposição de classe e da necessidade de superação do capitalismo e entendimento da necessidade de mobilização de massas, por exemplo), mas revisitadas para as condições de crise ecológica global.

IHU On-Line - O que significa ser e fazer esquerda no Brasil hoje? Qual é o seu diagnóstico sobre a possibilidade de reinvenção das esquerdas brasileiras na política neste momento?

Alexandre Araújo Costa - O conceito genérico de esquerda pressupõe a afirmação de um conjunto de valores, de uma concepção de mundo baseada na igualdade. Creio que isso permanece em certa medida atual, mas especialmente hoje em dia, por esse guarda-chuva ser demasiado amplo, é provavelmente melhor usar “esquerdas”, no plural mesmo. Afinal não apenas na questão ecológica e nos critérios para alianças, mas nas pautas do combate ao machismo, racismo e homofobia (e no entendimento ou não de como elas se articulam com a exploração de classe), nos métodos e formas organizativas etc., há muitas diferenças.

Para falarmos da reinvenção das esquerdas no Brasil, precisamos fazer um balanço muito sério, duro, mas também sereno, da derrota política da esquerda hegemônica para a direita, processo que não se iniciou em 2016 ou, pior ainda, em 2013 como alguns tentam atribuir. Também não é um balanço que possa ser resumido na palavra “traição de classe”.

Sim, é preciso condenar os acordos por cima com o que há de pior na política burguesa, de Sarney a Maluf, de Sérgio Cabral a Lobão e Eunício Oliveira. É preciso não deixar sombra de dúvidas sobre o quanto a direita se fortaleceu politicamente ao se fortalecer economicamente durante os governos petistas, sendo talvez o agronegócio e sua bancada ruralista a expressão máxima disso.

Mas acredito também que houve um processo erosivo começado antes mesmo da primeira eleição de Lula e que se aprofundou a partir dela, de burocratização, captura da energia dos movimentos sociais para as instituições de Estado, uso de métodos e práticas viciados, despolitização, redução de capilaridade social, desatenção para com as redes sociais e até despreparo para lidar até com a transição geracional. Os e as jovens de hoje cresceram sob governos petistas e lamentavelmente isso abre flanco para crerem que é “culpa da esquerda” o quadro de desesperança e desalento que sobre eles e elas se abate.

A reinvenção da esquerda precisa se dar a partir de uma reorientação profunda de programa e estratégia, adaptados às necessidades do Antropoceno e da época das tecnologias digitais, de fato olhando para o futuro, mas também prestando conta do passado, do peso dos cinco séculos de etnogenocídio e de escravidão contra as populações indígenas e africanas, de uma cultura que reproduz as discriminações e opressões diversas. Também se trata de reorientar profundamente forma organizativa e métodos, no modo de fazer política.

IHU On-Line - Nesse sentido, em que pontos fundamentais as esquerdas deveriam avançar no seu modo de fazer política?

Alexandre Araújo Costa - Método não é apenas forma. É conteúdo também. Por isso na minha opinião, para os dias de hoje, de uma sociedade globalizada e conectada à internet, sob crise ecológica global, com movimentos novos do tipo “indignados” e “occupy” emergindo, com a disputa das redes sociais, tendo de enfrentar o apelo ao consumo e ao individualismo, transformações ideológicas e políticas enormes, precisamos mais do que resistir, nos repensar, nos reequipar e nos reinventar.

Afinal o anacronismo e a inadequação não pesam apenas sobre as esquerdas mais moderadas, seus métodos demasiado institucionais e a lógica de conciliação de classes. Ela permeia – em alguns casos até de forma mais aguda – os setores de esquerda radical ou que se reivindicam revolucionários.

A noção de “dirigir a classe” a partir de um “partido de vanguarda”, altamente centralizado, e que “introduz a consciência a partir de fora”, por exemplo, parece muito mais campo fértil para disputas miúdas, emergência de chefetes ególatras etc. É preciso superar a ilusão do controle.

Ao invés da inspiração na organização fabril, devemos buscar inspiração nas estruturas complexas da natureza, como as correntes do oceano e os ventos ou como os próprios ecossistemas: fluidos, adaptativos, enérgicos, vivos e diversos e por isso mesmo muito mais poderosos. A luta de massas e os processos revolucionários são fluidos e caóticos: despertam criatividade, divergências, diferenças, choques e estranhamente progride em meio a esse (aparente) caos.

Enfim, se a organização política de esquerda é uma “amostra grátis” do poder que almejamos construir, um poder popular, de baixo, que abra caminho para superação do próprio Estado, nossas organizações têm de ser construídas desde já mirando esse paradigma. Têm de ser associações de ativistas, militantes e colaboradores livres, com a mais ampla democracia, horizontalidade, poder de decisão distribuído, acesso amplo e irrestrito à informação, conhecimento de causa construído com base nesse acesso e no acesso às ferramentas para análise crítica, uso de plataformas em rede, autonomia e iniciativa sem medo de ser tolhido pelo burocrata de plantão, generosidade para com o erro, solidariedade no acerto, capacidade de adaptação, reconhecimento, no debate da preponderância de evidências independente de se a favor ou contra sua opinião inicial, na gestão coletiva, corresponsável e ao mesmo tempo descentralizada e globalmente harmônica.

IHU On-Line - Que tipo de contribuição as esquerdas ainda podem dar para projetos futuros para o país? Na sua avaliação, é possível perceber um esgotamento de um modelo de esquerda ou ainda há um caminho à esquerda?

Alexandre Araújo Costa - Como mencionei antes, prefiro pensar em “esquerdas”, numa “ecologia de esquerdas”, com espaço para expressar, discursiva e praticamente, acordos e diferenças. Dito isto, embora boa parte das esquerdas não se mostre capaz de lidar com os desafios do século XXI, não vejo como não vir do lado esquerdo soluções para nenhum desafio posto hoje: do aquecimento global à erradicação do trabalho escravo, da superação da ordem patriarcal às consequências da crescente automação. Daí, embora possamos falar de esgotamento de um determinado modelo de esquerda, isso não significa que esquerdas renovadas não possam apontar para esse caminho. Pelo contrário.

Assim, acredito que a contribuição possa se dar principalmente a partir de um programa baseado na lógica do Programa de Transição, mas profundamente reelaborado. Que parta do combate aos privilégios dos de cima e de reformas essenciais, como reforma tributária, reforma agrária, reforma urbana, demarcação de terras indígenas, transição energética etc. e que, com base na mobilização e organização populares, construa um contrapoder. E que por meio deste e de transformações metabólicas que envolvam agroecologia, recuperação de ecossistemas, matas, nascentes, leitos de rios, agricultura urbana, permacultura, sistema de energia renovável descentralizada, ecocidades, ecovilas e demais comunidades intencionais etc., abra caminho para outra sociedade.

IHU On-Line - Qual é a situação das esquerdas neste ano de eleições presidenciais? Na sua avaliação, a tendência é que haja uma fragmentação das esquerdas nestas eleições ou uma união em torno de algum projeto? Dado a trajetória das esquerdas nos últimos anos, quais são suas chances reais nas eleições deste ano?

Alexandre Araújo Costa - Até pela diversidade de projetos, não gosto do termo “fragmentação” para caracterizar a existência de mais de uma candidatura no guarda-chuva amplo que possa ser considerado de esquerda. Por exemplo, a candidatura de Guilherme Boulos e Sonia Guajajara é uma expressão para lá de fundamental nesse contexto de reorganização das esquerdas, justamente por ser a mais aberta aos debates que apresentei, de alternativa ecológica, de vínculo com os movimentos sociais etc. Afinal, Sonia e o próprio Guilherme têm feito duras críticas ao “modelo de desenvolvimento”, além de serem expressões públicas de dois movimentos muito ativos na conjuntura recente: dos sem-teto e dos povos indígenas.

Obviamente as possibilidades das esquerdas serão limitadas pelo avanço do conservadorismo. Mas de outro lado podem se ampliar em função da crise econômica explícita, da maneira nítida como o ônus dessa crise tem sido jogado sobre as maiorias sociais a partir do governo golpista de Michel Temer. Essas possibilidades se ampliam também se mantivermos um otimismo contido e inteligente e a perseverança em dialogar com a população.

Evidentemente saber se movimentar, sem limitar a expressão das diferenças, para barrar o avanço conservador, especialmente em sua forma mais truculenta, neofascista, também precisa estar na agenda, assim como tentar incidir sobre a composição do Congresso Nacional.

É nesse sentido, como ambientalista e militante das causas socioambientais e também como trabalhador da ciência e da pesquisa, que coloquei meu nome à disposição do PSOL para disputar uma vaga na Câmara Federal. Nos EUA, em função da posição anticiência institucionalizada na administração Trump e no Congresso (especialmente o negacionismo climático), cientistas estão colocando seu nome na disputa eleitoral. Então por que não aqui?

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As necessidades do Antropoceno e a época das tecnologias digitais urgem um outro modo de fazer política. Entrevista especial com Alexandre Araújo Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU