19 Abril 2021
Para o reconhecido historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari - autor dos best-sellers Sapiens, Homo Deus e 21 lições para o século XXI -, a pandemia foi uma prova para os sistemas políticos e na qual “muitas nações reprovaram”.
Diferente de outras crises sanitárias, como a gripe de 1918, isto “pode fazer da covid-19 uma pandemia muito mais transformadora que as pandemias anteriores. Provavelmente, terá um impacto político e cultural muito maior”, comenta nesta entrevista por escrito, na qual também aborda os riscos e vantagens da vigilância digital e as lições para o mundo pós-pandemia.
A entrevista é de Carolina Álvarez Peñafiel, publicada originalmente pelo jornal chileno El Mercurio e reproduzida pelo jornal peruano El Comercio, 12-04-2021. A tradução é do Cepat.
Na perspectiva do cotidiano, a pandemia está marcando a vida das sociedades. Mas em sua perspectiva, como historiador, esta crise tem o potencial de definir nossa era?
As epidemias costumam deixar uma pegada histórica menor do que muitas pessoas assumem. É possível que daqui a um século, as pessoas dificilmente se lembrem desta pandemia ou pensem muito sobre ela, assim como as pessoas praticamente se esqueceram da pandemia da gripe de 1918. Compare o grande número de romances, filmes e pinturas famosas sobre a I Guerra Mundial com a quase total ausência de arte sobre a pandemia da gripe de 1918. A maioria das pessoas não consideraria a pandemia de 1918 tão historicamente significativa como a I Guerra, mesmo que tenha deixado mais mortes.
Por outro lado, a natureza das pandemias mudou no último século. Em 1918, os cientistas não sabiam o que estava provocando a morte de tanta gente e não tinham a capacidade para deter a pandemia. Em 2020, os cientistas foram capazes de identificar rapidamente o coronavírus, descobrir medidas eficazes para combatê-lo e desenvolver uma vacina. Consequentemente, as pandemias não são mais forças incontroláveis da natureza. Agora, são desafios contornáveis.
Isto tornou as pandemias um problema político. Temos as ferramentas científicas para deter as pandemias, mas são os políticos que decidem como usar estas ferramentas. Portanto, se uma pandemia sai do controle, não é mais vista como um desastre natural que supera o controle humano. Agora, é vista como uma falha política. E isso torna as pandemias algo muito mais interessante. Tornaram-se uma prova para os nossos sistemas políticos.
Infelizmente, a covid-19 foi uma prova na qual muitas nações reprovaram. Isto pode fazer da covid-19 uma pandemia muito mais transformadora que as pandemias anteriores. Provavelmente, terá um impacto político e cultural muito maior que a da gripe de 1918.
Você publicou as “21 lições para o século XXI” pouco antes do surgimento da pandemia. Alguns processos que você aborda no livro (nacionalismos, os questionamentos à narrativa liberal e a democracia, o uso de dados e a desinformação) foram acelerados? Descobriu novos? Qual é a sua maior preocupação?
A pandemia não mudou estes processos de longo prazo, e as ameaças que identifiquei em 21 lições... permanecem. Mais do que o próprio vírus, a principal ameaça revelada pelo covid-19 é a extrema fragilidade da ordem internacional. É o que mais me preocupa. Vemos o aumento de tensões e de hostilidade no sistema internacional, e isto tornará mais difícil prevenir outros desastres, como uma guerra nuclear e o colapso ecológico.
Nas últimas décadas, o mundo foi governado por uma ordem global que se costuma pensar como liberal. A premissa liberal básica de nossa ordem global é que todos os humanos compartilham experiências centrais, valores e interesses, e que nenhum grupo humano é inerentemente superior a qualquer outro. Ressalta a cooperação acima do conflito, e a melhor forma para impulsionar essa cooperação é facilitar o movimento de ideias, bens, dinheiro e pessoas pelo globo.
Esta ordem tem seus problemas, mas demonstrou ser superior a todas as outras alternativas. Graças à ordem liberal global, pela primeira vez na história da humanidade, a fome mata menos pessoas que a obesidade, a violência mata menos pessoas que os acidentes, e as epidemias – incluindo a de covid-19 – matam menos pessoas que a velhice. Isto é uma conquista incrível.
No entanto, políticos ao redor do mundo descuidaram deste sistema e, em alguns casos, o minaram ativamente. A ordem global é agora como uma casa na qual todos vivem, mas que ninguém repara. Se entrar em colapso, milhares de milhões de pessoas sofrerão terrivelmente.
Para lidar com os desafios do século XXI, precisamos de cooperação e liderança, e também de um plano audaz sobre como fortalecer o sistema internacional. Sempre que você ouvir um político criticar a ideia da cooperação global, pergunte-lhe: “Qual é o seu plano para prevenir futuras pandemias, evitar a guerra nuclear, deter a mudança climática e regulamentar a inteligência artificial?”.
Deveria ser óbvio para todos que nenhum país pode abordar estas ameaças sozinho. Também deveria ser óbvio para todos que estes são os maiores problemas que todos os países enfrentam, e se não resolvermos estes problemas, então, nada mais realmente importará.
“Alguns acreditam que a crise (sanitária) demonstrou a superioridade dos sistemas autoritários, como a China. Mas, na realidade, ressaltou os problemas centrais dos regimes autoritários e as vantagens das democracias”, afirma Harari. Contudo, aponta que há democracias que tiveram um resultado ruim, como no Brasil e nos Estados Unidos, e outras que foram bem, como em Taiwan, Nova Zelândia e Coreia do Sul. O historiador e filósofo aborda três eixos no contraponto democracias-autocracias:
“Primeiro, as democracias garantem o livre fluxo de informação, ao passo que as ditaduras prejudicam a si mesmas ao restringir a liberdade de expressão e de imprensa”, disse. Os líderes autoritários, explica, costumam punir aqueles que dão notícias ruins e podem atuar com autocensuras que acarretem uma falha de todo o sistema, porque é alimentado com dados incorretos.
“Não é coincidência que mais de um ano após o início da pandemia, ainda não saibamos como começou. É porque começou em um país autoritário. Grande parte da informação do que aconteceu nas primeiras semanas em Wuhan permanece oculta, e não podemos confiar em toda a informação que foi colocada à disposição”, recorda. Ao contrário, comenta, em uma democracia até mesmo se alguém quer ocultar algo, pode ser publicado pela imprensa independente ou por cidadãos.
O segundo é a capacidade dos sistemas em corrigir erros inevitáveis. “Para os autoritários, geralmente é mais difícil identificar e corrigir seus próprios erros”, sustenta, e acrescenta que, muitas vezes, um líder autoritário coloca a culpa dos problemas em fatores externos e se arroga mais poder para combatê-los. “Em vez de corrigir seu erro, o sistema autoritário o amplia”, disse. Para as democracias é mais fácil identificar e admitir erros, e se um líder nega o erro, outros com poder “podem fazê-lo enxergar e sugerir uma direção de ação alternativa”.
O terceiro é a motivação das pessoas de um sistema. Nas autocracias, sem livre acesso à informação, não é possível tomar decisões próprias e é preciso aguardar instruções, o que “pode provocar a perda de muito tempo e recursos”. Mas na democracia, as pessoas podem obter informação e tomar iniciativas. “Uma população motivada e bem informada é mais eficaz do que uma população ignorante aguardando receber instruções”, expõe.
No início da pandemia, em um ensaio, você abordou sua inquietação sobre o falso dilema entre privacidade e saúde, dada a capacidade de vigilância e a disponibilidade de dados por meio de dispositivos tão comuns como um celular. Um ano depois, como você acredita que foi resolvido?
Não deveríamos ser forçados a escolher entre privacidade e saúde. Deveríamos desfrutar das duas. Sim, precisamos de mais vigilância para lutar contra as pandemias. Mas mais vigilância não necessariamente mina a democracia. Há um princípio fundamental para aumentar a vigilância sem minar a democracia: onde quer que seja que aumente a vigilância dos cidadãos, é preciso aumentar a vigilância do governo. Se o governo sabe mais sobre o que os cidadãos estão fazendo, então, os cidadãos deveriam conhecer mais sobre o que o governo está fazendo (...).
Se o governo diz que é muito complicado estabelecer este tipo de sistema de monitoramento em meio a uma crise, não acreditem. Se não é muito complicado começar a monitorar o que eu faço, não é muito complicado fazer isso com o governo. Assim como alguns países utilizaram aplicativos nos telefones para monitorar a propagação do coronavírus, deveríamos ter um aplicativo que monitore como os fundos de emergência estão sendo gastos.
Disse que os donos dos dados serão os donos do futuro e alertou sobre o perigo de uma ditadura. Faria um sinal de alerta sobre a forma como os dados estão sendo usados?
O ponto central aqui é evitar que estes dados estejam concentrados nas mãos de poucas organizações poderosas. Isso porque, pela primeira vez na história, é possível que os sistemas digitais conheçam as pessoas melhor do que elas mesmas. Para hackear seres humanos, tudo o que é necessário são dados suficientes e poder computacional. Este é o caminho para o totalitarismo digital, onde a tecnologia pode manipular as pessoas sem que elas tenham consciência disso.
Para prevenir este resultado, deveríamos garantir que estes dados não se concentrem em apenas um lugar. Isto pode parecer mais ineficiente, mas esta ineficiência é mais um atributo do que um erro. Muitos sistemas naturais têm ineficiências e redundâncias que os tornam mais resilientes. Um pouco de ineficiência na vida é bom.
As ditaduras digitais que descrevi são o pior cenário dos sistemas de vigilância que estão sendo concebidos. Mas podemos imaginar cenários melhores. A vigilância moderna poderia ser usada não para seguir os cidadãos de um país, mas para seguir o governo, para garantir que não haja corrupção. Mais do que ajudar a polícia a te conhecer melhor, os sensores biométricos poderiam ser usados para permitir que você se conheça melhor. Nossos dados poderiam ser usados para nos empoderar, mais que para nos escravizar.
Entre os confinamentos, as infecções e os hospitais lotados, ocorreu um progresso científico notável que permitiu chegar a várias vacinas contra o vírus, em tempo recorde. Em muitos casos, graças a colaborações científicas internacionais. Esta pode a melhor oportunidade desta crise?
O último ano ressaltou tanto a promessa da cooperação global, como os perigos de sua ausência. Quando se trata de pesquisa científica, foi um ano que trouxe um marco para a colaboração. Cientistas trabalhando em diferentes laboratórios ao redor do mundo rapidamente identificaram o vírus, encontraram formas de deter a propagação e criaram várias vacinas altamente eficazes.
Muitos dos principais artigos científicos sobre o coronavírus foram coescritos por pesquisadores vivendo em diferentes continentes. Estes cientistas nos deram todas as ferramentas necessárias para controlar esta pandemia.
Mas políticos irresponsáveis descuidaram dos sistemas de saúde, falharam em reagir a tempo, e atualmente falham em cooperar efetivamente em nível global. Não penso que os cientistas devam substituir os políticos, mas nossos políticos certamente podem aprender com a maneira como os cientistas trabalharam juntos este ano. Resumindo, esta crise, até agora, podemos dizer que foi um notável êxito científico e um enorme fracasso político.
Qual seria a lição número 22 para o mundo pós-pandemia?
A lição óbvia é que precisamos investir mais em nossos sistemas de saúde pública. E não só em nossos sistemas nacionais de saúde pública, mas também em organizações internacionais que possam investir precocemente para detectar doenças antes que se propaguem.
Estas organizações também deveriam ter influência política para que não sejam obstaculizadas por políticos pouco cooperadores. Construir tais instituições cooperativas não só reduzirá o risco de futuras pandemias, mas também ajudará a consertar as fraturas no sistema global que estão obstruindo nossa capacidade de resolver outros problemas globais. Espero que a covid-19 sirva com uma chamada de atenção sobre o valor da cooperação global.
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“Podemos dizer que esta crise foi um notável êxito científico e um enorme fracasso político”. Entrevista com Yuval Noah Harari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU