26 Fevereiro 2021
Dez anos depois de a FIFA escolher emirado ultraconservador para Copa-2022, surgem os dados. 6,5 mil já pereceram nas obras de estádios e infraestrutura. Imigrantes, fugiram da desigualdade para a armadilha mortal do trabalho precário.
A reportagem é de Pete Pattisson e Niamh McIntyre, publicada originalmente por The Guardian e reproduzida por Outras Palavras, 24-02-2021. A tradução é de Gabriela Leite.
(Foto: Outras Palavras)
Mais de 6.500 trabalhadores imigrantes provenientes da Índia, Paquistão, Nepal, Bagladeche e Sri Lanka morreram no Catar, desde que o país foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2022, dez anos atrás, revelou o jornal britânico The Guardian.
Latha Bollapally, com seu filho Rajesh Goud, segura uma foto de seu marido Madhu Bollapally, de 43 anos, um trabalhador imigrante indiano que morreu no Catar. (Foto: Kailash Nirmal)
As descobertas, reunidas a partir de fontes governamentais, mostram que uma média de 12 mortes por semana de trabalhadores imigrantes desses cinco países sul-asiáticos, desde a noite de dezembro de 2010, quando as ruas de Doha se encheram de multidões em êxtase para celebrar a escolha do Catar.
Dados da Índia, Bangladeche, Nepal e Sri Lanka revelaram que houve 5.927 mortes de trabalhadores imigrantes no período de 2011 a 2020. Separadamente, dados da embaixada do Paquistão no Catar relatam 824 óbitos de trabalhadores do país no mesmo período.
Mohammad Shahid Miah, 29, de Bangladeche, morreu quando uma inundação em seu quarto entrou em contato com um fio de energia elétrica desencapado, causando sua eletrocussão
O número total de mortos é significativamente mais alto, já que esses gráficos não incluem as mortes de muitos outros países que também enviaram trabalhadores ao Catar, incluindo as Filipinas e o Quênia. Mortes no final do ano de 2020 também não estão incluídas.
Nos últimos dez anos, o Catar iniciou um programa de construção de infraestrutura sem precedentes, grande parte deles em preparação para o torneio futebolístico de 2022. Além dos sete novos estádios, dezenas de grandes projetos foram concluídos ou estão em vias de terminar, incluindo um novo aeroporto, estradas, sistemas de transporte público, hotéis e uma nova cidade, que irá receber a final da Copa do Mundo.
Como os registros de mortes não são categorizados por ocupação ou local, é provável que muitos dos trabalhadores que morreram estivessem trabalhando nesses projetos para a Copa do Mundo, diz Nick McGeehan, diretor na FairSquare Projects, um grupo de advogados especializados em direitos trabalhistas no Golfo. “Uma proporção significativa dos imigrantes que morreram desde 2011 só estava no país porque o Catar conquistou o direito de receber a Copa do Mundo”, ele disse.
(Foto: Outras Palavras)
Entre as mortes, 37 estão diretamente ligadas à construção de estádios — no entanto, 34 delas são classificadas como “não relacionadas ao trabalho” pelo comitê de organização do evento. Especialistas questionam o uso do termo, que em alguns casos foi usado para descrever mortes que aconteceram durante o serviço, incluindo as de trabalhadores que desmaiaram e morreram nos locais de construção dos estádios.
Essas descobertas expõem a incompetência do Catar em proteger sua força de trabalho imigrante de 2 milhões de pessoas, ou mesmo em investigar as causas da taxa de mortes aparentemente alta entre os trabalhadores, em sua maioria jovens.
Foram 6.750 mortes de imigrantes do sudeste asiático desde 2010, após a seleção do Catar para receber a Copa do Mundo (Foto: Outras Palavras)
Por trás das estatísticas há incontáveis histórias de famílias arrasadas, que foram deixadas sem sua principal fonte de sustentação, lutando para receber uma indenização e sem saber exatamente quais foram as circunstâncias da morte de seus entes amados.
Ghal Singh Rai, do Nepal, pagou cerca de mil libras [cerca de R$ 7.660 reais] em taxas de recrutamento para ser admitido em seu trabalho como faxineiro em um acampamento de trabalhadores que construíam o estágio da Cidade da Educação para a Copa do Mundo. Uma semana após sua chegada, ele se suicidou.
Outro trabalhador, Mohammad Shahid Miah, de Bangladeche, foi eletrocutado em seu dormitório após uma inundação entrar em contato com fios elétricos desencapados.
Na Índia, a família de Madhu Bollapally nunca entendeu como um homem saudável de 43 anos morreu por “causas naturais”, enquanto trabalhava no Catar. Seu corpo foi encontrado estirado no chão de seu dormitório.
O terrível número de mortos no Catar se revela em longas planilhas de dados oficiais listando as causas da morte: vários ferimentos graves devido a quedas de lugares altos; asfixia por enforcamento; causa indeterminada de morte devido à decomposição.
(Foto: Outras Palavras)
Mas entre as causas, de longe as mais comuns são as chamadas “mortes naturais”, frequentemente atribuídas a insuficiência cardíaca ou falência respiratória.
Baseado nos dados obtidos pelo Guardian, 69% das mortes entre trabalhadores indianos, nepaleses e bangladeses são categorizadas como “naturais”. Apenas entre indianos a proporção é de 80%.
O Guardian relatou anteriormente que tais classificações, que são geralmente feitas sem uma autópsia, muitas vezes não são capazes de oferecer uma explicação médica legítima para a causa oculta dessas mortes.
Em 2019, foi descoberto que o calor intenso do verão do Catar é provavelmente um dos fatores mais importantes para a morte de trabalhadores. As descobertas do Guardian têm sustentação em uma pesquisa encomendada pela Organização Internacional do Trabalho da ONU, que revelou que, por pelo menos quatro meses do ano, os trabalhadores enfrentavam estresse térmico intenso quando trabalhavam em espaços abertos.
Trabalhadores do Nepal armam andaimes para o lançamento do logotipo da Copa do Mundo. Eles começam a trabalhar muito antes do nascer do sol para evitar o calor. (Foto: Pete Pattisson)
Um relatório dos próprios advogados do governo do Qatar, de 2014, recomendou que fosse encomendado um estudo detalhado sobre as mortes de trabalhadores por parada cardíaca; e que a lei fosse alterada para “permitir autópsias … em todos os casos de morte inesperada ou súbita”. O governo não fez nada disso.
O Catar continua “andando a passos lentos nesta questão crítica e urgente de aparente desrespeito pela vida dos trabalhadores”, disse Hiba Zayadin, pesquisadora do Golfo para a Human Rights Watch. “Pedimos ao Catar que emendasse sua lei sobre autópsias para exigir investigações forenses em todas as mortes repentinas ou inexplicáveis, e aprovasse legislação para exigir que todos os atestados de óbito incluam referências a uma causa de morte clinicamente relevante”, relatou.
O governo do Catar afirma que o número de mortes — que não questiona — é proporcional ao tamanho da força de trabalho imigrante, e que os números incluem trabalhadores de colarinho branco que morreram naturalmente após viver no Catar por muitos anos.
“A taxa de mortalidade entre essas comunidades está dentro da margem esperada para o tamanho e a demografia da população. Mas é claro que toda vida perdida é uma tragédia, e não se pode medir esforços para tentar prevenir cada morte em nosso país”, disse o governo catarense em um comunicado por meio de seu porta-voz.
O oficial também disse que todos os cidadãos catarenses e estrangeiros têm acesso ao sistema de saúde gratuito e de excelente qualidade, e que há uma queda estável na taxa de mortalidade entre “trabalhadores convidados” pela da última década, graças às reformas de saúde e segurança no sistema trabalhista.
A maior parte das mortes de trabalhadores provenientes da Índia e do Nepal foram registradas como tendo acontecido “por causas naturais”, fator geralmente conferido à falência súbita e inexplicada do coração ou do pulmão. (Foto: Outras Palavras)
Outras causas importantes de mortes entre indianos, nepalenses e banglandeses são acidentes em estradas (12%), acidentes no local de trabalho (7%) e suicídios (7%).
Mortes relacionadas à covid, que se mantiveram extremamente baixas no Catar, não afetaram os gráficos expressivamente: foram apenas 250 óbitos em todas as nacionalidades.
A pesquisa do Guardian também destaca a falta de transparência, rigor e detalhe nos registros de morte no Catar. Embaixadas em Dora e governos de países que enviaram trabalhadores relutam em compartilhar os dados, possivelmente por razões políticas. Nos locais onde as estatísticas foram fornecidas, há inconsistências entre os números reunidos por diferentes agências governamentais, e não há formato padrão para o registro de causas de morte. Uma embaixada de país sul-asiático afirmou que não poderia enviar os dados sobre as causas de morte porque estavam escritos à mão em um caderno.
“Há real falta de clareza e transparência em torno dessas mortes”, afirma May Romanos, pesquisadora do Golfo para a Anistia Internacional. “É preciso que o Catar fortaleça seus padrões de saúde e segurança ocupacional.”
O comitê organizador da Copa do Mundo no Catar, quando questionado sobre as mortes em projetos de estádios, disse: “Estamos profundamente pesarosos por todas essas tragédias e investigamos cada incidente para garantir que possamos aprender as lições. Sempre mantivemos a transparência em torno desse assunto e contestamos as afirmações imprecisas sobre o número de trabalhadores que morreram em nossos projetos”.
Em comunicado, um porta-voz da Fifa, entidade que governa o futebol mundial, disse que estão totalmente comprometidos em proteger os direitos dos trabalhadores em seus projetos. “Com as medidas de saúde e segurança muito rigorosas … a frequência de acidentes em canteiros de obras da Copa do Mundo da Fifa tem sido baixa em comparação com outros grandes projetos de construção ao redor do mundo”, disseram, sem fornecer evidências.
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O futebol-mercadoria e o massacre no Catar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU