05 Novembro 2020
"Projeto aprovado ontem pelo Senado tem dois objetivos. Impedir que a sociedade controle, um dia, o órgão que comanda a emissão de moeda no país. E manter a Economia distante da Política — ou seja, nas mãos da oligarquia", escreve Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, em artigo publicado por OutrasPalavras, 03-11-2020.
Existem alguns temas da agenda política que quase nunca saem de pauta, principalmente por conta do enorme esforço realizado pelos grandes meios de comunicação e pelos demais defensores dos interesses dos conglomerados do sistema financeiro em mantê-los vivos. E por aí seguem de forma permanente assuntos como o “elevado custo Brasil”, o “risco da explosão da dívida pública”, o “gigantismo do Estado”, a “ameaça de elevado déficit público”, a “necessidade de avançar no processo de privatização”, o “alto custo da máquina pública” e assim vai.
Boa parte de tais questões transitam na zona cinzenta entre a política e a economia, algo perfeitamente compreensível se percebermos que se trata de um universo do campo do conhecimento que os pensadores clássicos tratavam – muito adequadamente, aliás – de “economia política”. Ocorre que as correntes do pensamento conservador promoveram um reducionismo a partir do final do século XIX, quando na literatura de língua inglesa generalizou-se o uso do termo “economics” tão simplesmente. O adjetivo “política” desapareceu e restou apenas “economia”.
Para além de todos os problemas de natureza metodológica que envolvem tal mudança de abordagem do fenômeno, o fato é que a diluição promovida incorporou uma mística a respeito de uma suposta “neutralidade técnica” da economia, agora supostamente despida de suas variáveis complexas associadas à dimensão política. Os avanços obtidos no campo da matematização e na utilização de modelos econométricos sofisticados também contribuíram para consolidar uma certa aura de tecnicalidade autônoma da economia. Dessa forma, tudo passaria a ser calculável e previsível, como se aquilo que passa ser chamado de “ciência econômica” não pudesse nem devesse ser “contaminado” pela política.
A partir desse movimento, pouco esforço foi necessário para tentar retirar a economia do universo das demais áreas do conhecimento das chamadas ciências humanas ou sociais. A narrativa envolveu a busca da similaridade com as matérias mais próximas da física, engenharia ou demais passíveis de quantificação. Os modelos cada vez mais complexos passaram a dominar o debate árido da quantificação e da busca por resultados seguros e previsíveis na área da prospecção de cenários futuros. Apesar desse movimento ter sido hegemônico, é importante registrar que uma série de pensadores, professores e analistas permanecemos fiéis às origens, reivindicando a necessidade de se manter o conceito da economia política.
A artimanha esperta por trás de tal operação reducionista atribui ao âmbito da política todos os qualificativos pejorativos daquilo que seria sujo e destruidor das boas intenções de um cenário puro e perfeito do mundo idealizado da economia em seu estado de liberdade plena de funcionamento. Daí para estabelecer uma guerra santa contra qualquer vestígio de intervenção governamental nas relações econômicas seria apenas um passo.
Se transferirmos tal argumentação para a seara tupiniquim fica fácil compreender como ela encontra campo fértil para progredir. Convenhamos que a forma como a política – em sua dimensão mais rude, fisiológica e patrimonialista – tal como ela é praticada por aqui não colabora em nenhum milímetro para que ela seja considerada digna de credibilidade por parte da maioria da população. Escândalos cotidianos, casos de corrupção revelados em sequência, impunidade como única certeza i otras cositas más contribuem para acalentar o discurso fácil contra os “políticos” e em favor dos “técnicos”.
E aqui, mais uma vez, cai como uma luva no momento atual o debate em torno da necessidade ou não de uma assim chamada independência do Banco Central (BC). A ideia envolve uma espécie de endeusamento de uma tecnocracia, supostamente competente e eficiente, capaz de oferecer todos os meios para o Brasil superar de forma definitiva seus problemas com as crises econômicas. Afinal, tudo de ruim que experimentamos teria sido responsabilidade de um mau uso feito pelos políticos de tais instrumentos complexos da política econômica, a exemplo da política monetária e da política cambial.
Quando os grandes meios de comunicação clamam por um “BC independente”, na verdade escondem uma avaliação de que até o momento aquela instituição respondia a determinados interesses e que isso seria pernicioso para o próprio processo econômico. No entanto, o que se pode perceber da leitura das décadas recentes da vida da instituição é um alinhamento mais do que perfeito do mesmo com os interesses do próprio sistema financeiro. Salvo raríssimas ocasiões, a presidência do BC e o restante de sua diretoria sempre estiveram em mãos de indivíduos que encarnavam literalmente o desejo da banca privada.
O organismo que deveria zelar pelo bom funcionamento do sistema e promover sua regulação quase sempre foi dirigido por banqueiros, por presidentes ou diretores de bancos e também por operadores do mercado financeiro. A velha e conhecida história de colocar a raposa para tomar conta do galinheiro. Assim, como se diz por aí, quando se fala em independência, pretende-se que o BC seja independente de quem, cara pálida? Na verdade, o que se propõe é que a relação de dependência do BC para com o mundo do financismo seja permanente, completa e absoluta. Assim, o órgão regulador seria independente do conjunto da sociedade, por meio de um mandato pleno para seus dirigentes realizarem o que bem desejarem em termos de suas atribuições.
Um novo projeto de lei em favor desta captura foi aprovado ontem no plenário do Senado Federal – e segue para a Câmara dos Deputados. Trata-se do Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 19/2019. Seu proponente é o senador em primeiro mandato, Plínio Valério (PSDB/AM). Em sua exposição de motivos, ele rende homenagens a seu antecessor, o senador Arthur Virgílio (PSDB/AM), que seria o verdadeiro autor de um projeto que o novato recuperou e trouxe para o debate. Mas convenhamos que não são apenas os tucanos a apresentarem inovações institucionais para privilegiar os interesses dos bancos. O próprio presidente Lula surpreendeu o País, ao nomear em 2003 um ex presidente internacional do Bank of Boston para comandar o BC. E além do mais, ele conferiu a Henrique Meirelles o status de ministro, com o objetivo de blindá-lo contra ações do Ministério Público ou da Polícia Federal. Em 2004, editou a Medida Provisória 207, convertida na Lei nº 11036, onde fica estabelecido que “o cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado em cargo de Ministro de Estado”. Uma aberração jurídico-institucional, onde um presidente de autarquia subordinada a um ministério tem a equivalência hierárquica a seu superior. Tudo isso em nome de uma maior autonomia ao BC.
O projeto atual aprofunda o processo de independência da instituição. Estabelece um mandato fixo de quatro anos para seus dirigentes, sempre em descompasso com o mandato do Presidente da República. Assim, cada nova direção do BC começaria suas funções no início do terceiro ano do mandato do Chefe do Executivo. A exposição de motivos é cristalina respeito das intenções do autor:
(…) “Ao intercalar os mandatos do Presidente da República com os membros da diretoria do Banco Central, que teriam mandatos de duração fixa, seria possível blindar o Banco Central do Brasil de pressões políticas advindas do Poder Executivo. Este teria autonomia para exercer sua atividade principal que consiste no controle da inflação e das expectativas inflacionárias.” (…)
A visão que embasa tal proposta confere poderes aos principais responsáveis por aspectos da política econômica em completa oposição aos princípios da fonte do poder popular e da repartição de funções do Estado no modelo republicano. O Presidente da República é eleito pelo voto da população e se vê atribuído de uma série de atribuições governamentais. Dentre elas está a definição da estratégia para o comando da economia e a nomeação dos ministros para as pastas competentes. Assim, a ele é conferido o poder para nomear e destituir os seus subordinados, dentre os quais a equipe do BC.
Ainda que o modelo atual reconheça necessidade de que a nomeação do responsáveis pelo órgão regulador do sistema financeiro seja confirmada pelo Senado Federal, não existe a figura de um mandato fixo e não coincidente com o do chefe do Executivo para os mesmos. Na verdade, tal mudança seria o equivalente a conferir aos dirigentes do BC um poder que os mesmos não obtiveram nas urnas. Seria retirar parcela da legitimidade que o Presidente da República conquistou e oferecê-la a uma tecnocracia que não deve prestar contas de seus atos a ninguém. Ou pior ainda, pode-se cair em uma situação de conflito entre um eventual novo chefe de governo que pretende implantar uma política econômica contrária à equipe anterior, que havia nomeado os responsáveis pela política monetária. Qual mecanismo institucional seria utilizado para resolver tal impasse?
Como se pode perceber, tudo retorna ao debate original entre a política e a suposta neutralidade técnica. Tudo se passa como se não houvesse divergência de abordagens para compreender o fenômeno econômico ou não houvesse defesa explícita de interesses no processo de implementação de políticas públicas. O BC não pode ser independente da sociedade, pois sua ação no plano institucional sempre tem sido aquela associada aos desejos das instituições financeiras privadas.
O órgão regulador do sistema financeiro e responsável por parcela expressiva da política econômica deve estar em sintonia com a legitimidade do governo que a conquistou democraticamente nas urnas. Podemos concordar ou não com tal orientação, mas ela é que deve prevalecer no desenho das políticas públicas e da equipe de governo. É lógico que cabe aos demais poderes (legislativo e judiciário) o papel de contra peso, sempre que houver questionamento a esse respeito. Mas não faz sentido represar uma parcela das responsabilidades pela política econômica, isolá-la por uma suposta competência adquirida e conferi-la aos dirigentes de circunstância empoderados por sabe-se lá quem.
O BC não pode ser independente do desejo da sociedade. Exatamente pela enorme importância de suas atribuições (que nem sempre são levadas a cabo, inclusive) é que ele deve estar em absoluta sintonia com o governo eleito pelo voto popular. Conferir tamanho poder a uma tecnocracia vinculada exclusivamente aos interesses da banca privada é desferir um golpe contra o processo democrático.
A Câmara dos Deputados precisa derrubar o PLP nº 19/2019.
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Por que banqueiros querem um BC “independente” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU