Trabalho em condições análogas à de escravo. Desmonte da fiscalização e situação econômica fazem explodir o fenômeno em pleno século XXI. Entrevista especial com Lucas Santos Fernandes

Segundo o procurador, a crise financeira faz as pessoas aceitarem qualquer condição de trabalho. Enquanto isso, órgãos de proteção ao trabalhador sofrem com falta de fiscais

Foto: MPT

Por: João Vitor Santos | 23 Março 2023

Entre o fim de 2022 e o início de 2023, foram noticiados diversos casos de trabalhadoras domésticas que viviam em regime de quase escravidão. E agora, em março, somente no Rio Grande do Sul houve dois casos de trabalhadores submetidos a regimes análogos à escravidão. Como se só isso já não fosse horrível o suficiente, nos casos do Sul contratantes desses trabalhadores se eximem da culpa, alegam ser problema da empresa que terceirizou o trabalho ou, ainda pior, se agarram a uma filigrana conceitual para afirmar que nestes casos não se tratava de trabalho praticamente escravo. Todo esse cenário entorna um caldo que é dimensionado em números: casos de trabalho análogo à escravidão aumentaram no Brasil 174%, em dois anos, segundo Ministério do Trabalho e Emprego. Em 2022, 2.575 pessoas foram resgatadas, o maior número desde 2013.

Para Lucas Santos Fernandes, procurador do Ministério Público do Trabalho – MPT no Rio Grande do Sul, o aumento é visível, mas compreender esses números é algo complexo. “São vários os elementos que contribuem para o recente aumento registrado no número de resgates e de denúncias”, adverte, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Ainda assim, aponta que o fator econômico tem um peso maior. “Um desses elementos encontra-se no crescimento dos índices de pobreza e na maior vulnerabilidade social, resultado tanto da crise econômica quanto dos efeitos da pandemia de covid-19”, pontua. “Com o maior grau de vulnerabilidade econômica provocado pela crise, aumentam os casos de trabalhadores desesperados dispostos a acreditar em falsas propostas de emprego, atraentes quando feitas, mas que se revelam uma armadilha quando o trabalhador finalmente chega ao local de trabalho”, acrescenta.

Por outro lado, Fernandes explica que tem havido um grau maior de conscientização das pessoas. Isso faz com que aumentem as denúncias de casos de trabalhadoras e trabalhadores em situação análoga à escravidão. Mas, com o aumento das denúncias, esbarra-se noutro problema: o desmonte dos órgãos de fiscalização. “Uma das iniciativas urgentes para ampliar a força do combate ao trabalho análogo à escravidão seria a recomposição da rede fiscalizatória, dado o grande número de postos de auditores-fiscais do Trabalho ainda em aberto. Há mais de 1.500 cargos vagos de auditores, o que representa quase 50% do total, e não há concurso público para a carreira desde 2013”, dispara.

E sobre os dois casos do Rio Grande do Sul, o das vinícolas em Bento Gonçalves e o das lavouras de arroz em Uruguaiana, e sobre a alegação de que tudo não passa de problemas relacionados à empresa terceirizada que contratou os trabalhadores, o procurador é enfático: “não cabe às empresas alegar desconhecimento das condições de trabalho de seus terceirizados. Elas têm, nos termos da lei, o dever de fiscalizar os contratos e acompanhar o cumprimento dos direitos trabalhistas em sua cadeia produtiva, não podendo assumir uma posição de cegueira deliberada e lucrar altos valores à custa da exploração”.

Lucas Santos Fernandes (Foto: MPT/RS)

Lucas Santos Fernandes é coordenador regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho – MPT. Atua como procurador do MPT em Pelotas e é secretário-adjunto da Secretaria de Segurança Institucional e membro da Comissão de Acompanhamento Legislativo do MPT. É especialista em Direito pela Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU e possui mestrado em Direito pela Universidade Nove de Julho.

A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 23-03-2023.

Confira a entrevista.

IHU – O que caracteriza o trabalho em condições análogas à escravidão? E como isso é disposto na legislação brasileira?

Lucas Santos Fernandes – A caracterização do trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil está prevista, no âmbito infraconstitucional, no artigo 149 do Código Penal, o qual estabelece quatro situações que caracterizam o trabalho em condições análogas à de escravo: o trabalho forçado, o trabalho em condições degradantes, o trabalho com jornadas exaustivas e, por fim, a servidão por dívidas.

O trabalho forçado é um cerceamento da liberdade, que pode ser físico ou uma coação moral e psicológica. Temos, depois, o trabalho em condição degradante, caracterizado a partir do momento em que se recusa ao trabalhador aquele patamar mínimo de proteção, de higiene, saúde, e segurança previsto na legislação, tendo ou não cerceamento de liberdade.

Depois, temos a terceira hipótese, o trabalho com jornada exaustiva, em condições que levam o trabalhador a um esgotamento físico e mental. Não é apenas trabalhar por muitas horas, é uma avaliação de intensidade, da frequência de desgaste daquele trabalho. Finalmente, temos a servidão por dívidas, quando a pessoa presta sua força de trabalho como garantia de dívidas que são contraídas com o empregador constituídas de forma fraudulenta.

IHU – Nos casos mais recentes de grandes números de trabalhadores flagrados no trabalho em condições análogas à escravidão no Rio Grande do Sul, os casos da colheita de uva de Bento Gonçalves e de arroz em Uruguaiana, há uma resistência nas entidades de classe em reconhecer essa condição. A que atribui essa resistência? Seria uma mera estratégia jurídica ou a manifestação de uma cultura que impede ver e reconhecer essas condições de quase escravidão?

Lucas Santos Fernandes – A conscientização da sociedade e do empresariado é outro objetivo premente a ser buscado. É importante também a existência de políticas públicas que reduzam a vulnerabilidade social da população, pois a grande maioria dos trabalhadores resgatados em todo país é composta por pessoas com baixa escolaridade, muitas das quais analfabetas e que têm dificuldade de acesso ao mercado formal de trabalho.

Nesse sentido, medidas de fomento à educação de qualidade, à qualificação profissional, ao combate ao trabalho infantil, à promoção da empregabilidade e redução da informalidade nas relações de trabalho são muito importantes. No meio rural, também é necessária uma política séria de reforma agrária que, efetivamente, reduza a vulnerabilidade social dos trabalhadores no campo.

Por fim, é importante que os estados coloquem em funcionamento Comissões de Erradicação do Trabalho Escravo que, efetivamente, façam o acompanhamento social de vítimas após o resgate, bem como de suas famílias, de modo a garantir que não venham a ser novamente exploradas.

IHU – Muitos dos casos de trabalho em situações análogas à escravidão estão ligados à terceirização de atividade. Podemos afirmar que a terceirização tem sido uma porta por onde passam essas infrações? O que a legislação apregoa acerca das empresas de terceirização e quais as responsabilidades das contratantes?

Lucas Santos Fernandes – Não cabe às empresas alegarem desconhecimento das condições de trabalho de seus terceirizados. Elas têm, nos termos da lei, o dever de fiscalizar os contratos e acompanhar o cumprimento dos direitos trabalhistas em sua cadeia produtiva, não podendo assumir uma posição de cegueira deliberada e lucrar altos valores à custa da exploração desmedida de sofrimento alheio.

Além disso, elas têm uma função social a cumprir e devem fornecer oportunidades de trabalho dignas, que respeitem a legislação.

IHU – Tem percebido um aumento de casos de trabalho em situação semelhante à escravidão? Como podemos compreender esses números?

Lucas Santos Fernandes – São vários os elementos que contribuem para o recente aumento registrado no número de resgates e de denúncias. Um deles encontra-se no crescimento dos índices de pobreza e na maior vulnerabilidade social, resultado tanto da crise econômica quanto dos efeitos da pandemia de covid-19.

Com o maior grau de vulnerabilidade econômica provocado pela crise, aumentam os casos de trabalhadores desesperados dispostos a acreditar em falsas propostas de emprego, atraentes quando feitas, mas que se revelam uma armadilha quando o trabalhador finalmente chega ao local de trabalho.

Outro ponto a ser ressaltado é que parece haver uma maior conscientização da sociedade quanto ao tamanho e à gravidade do problema, que se reflete no aumento do número de denúncias. A sociedade está mais consciente e alerta, o que permite que a fiscalização esteja presente em um maior número de casos, com maior sucesso.

IHU – No Brasil de hoje, quem são os sujeitos que acabam se submetendo à situação de trabalho quase escravo? Como compreender esse contexto social e fazer frente a essa realidade?

Lucas Santos Fernandes – O retrato recorrente dos resgatados do trabalho escravo contemporâneo no Estado: normalmente em áreas rurais, em atividades econômicas ligadas à produção de alimentos em larga escala e tendo como vítimas normalmente trabalhadores migrantes oriundos de outros estados e até mesmo do Exterior.

Apesar da crise econômica, ainda há uma imagem do Rio Grande do Sul como uma terra de oportunidades para o trabalho, principalmente o rural, o que leva muitos trabalhadores de outros estados a tentarem uma oportunidade por estarem desesperadamente necessitados de renda. A crise, assim, os torna particularmente vulneráveis a armadilhas que os levam a condições degradantes de trabalho.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Lucas Santos Fernandes – Além da constante conscientização da sociedade quanto à realidade do problema, uma das iniciativas urgentes para ampliar a força do combate ao trabalho análogo à escravidão seria a recomposição da rede fiscalizatória, dado o grande número de postos de auditores-fiscais do Trabalho ainda em aberto. Há mais de 1.500 cargos vagos de auditores, o que representa quase 50% do total, e não há concurso público para a carreira desde 2013.

Ainda, é importante que seja reforçada a legislação para que as empresas efetivamente façam um monitoramento de suas cadeias produtivas (inclusive com a ratificação, pelo Brasil, do protocolo à Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho, ainda não ratificado) e para que seja mais efetivamente inibido o uso de terceirizações como mecanismos de redução de direitos e barateamento e precarização da mão de obra.

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