O celibato de Jesus: “O que o Papa disse me deixou com um enorme desacordo”. Artigo de Eduardo de la Serna

A Última Ceia, pintura de Leonardo da Vinci (Foto: Domínio Público | Turismo Milano | Flickr CC)

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06 Dezembro 2023

Os estudos sobre o Jesus histórico afirmam que Jesus era celibatário? Jesus era sacerdote? Se o sacerdócio (diz-se) foi instituído na Última Ceia e os Apóstolos se casaram, não faz parte da natureza do sacerdócio casar-se? Se se trata de “imitar Jesus”... os padres deveriam estudar “carpintaria”?

O artigo é de Eduardo de la Serna, publicado por Religión Digital, 01-12-2023.

Eduardo de la Serna é padre em Quilmes (Grande Buenos Aires), do grupo de sacerdotes da Opção pelos Pobres (Argentina). Doutor em Teologia (Teresianum, Roma). É professor emérito de Sagradas Escrituras, dedicado especialmente a São Paulo. Autor de diversos livros e artigos acadêmicos e populares na Argentina e no exterior.

Eis o artigo.

Acabei de ver que o Papa disse aos seminaristas franceses que “os padres são celibatários simplesmente porque Jesus era celibatário” e acrescentou que “ninguém tem o poder de mudar a natureza do sacerdócio e nunca o terá”.

E isto, dito desta forma, suscitou em mim um número significativo de dúvidas.

A primeira questão é, precisamente, se Jesus era realmente celibatário. Curiosamente, em muitos ambientes, apenas fazer a pergunta é ofensivo, como se isso pudesse “manchar” a memória de Jesus. Qual seria o problema se Jesus não tivesse sido um deles? Para começar, salientamos que ser “celibatário” não é sinônimo de não ser casado (assim como – teologicamente falando – jejuar não é simplesmente “não comer”). O celibato é uma razão teológica pela qual alguém escolhe um estilo de vida “solteiro”. E essa razão teológica é, sem dúvida, o Reino de Deus.

Portanto, afirmar isto sobre Jesus pressupõe ambos os elementos: que ele não tinha realmente formado um casal e, em segundo lugar, que isto teria sido por uma razão consciente e superior. No nível histórico, portanto, isto significaria que na idade do casamento (no meio rural a idade habitual dos homens rondava os 17 anos; embora fosse diferente no meio urbano) Jesus, por uma razão expressa, rompe com os costumes (mesmo familiares) e já tem clareza sobre a centralidade do Reino de Deus.

Isso é possível num ser humano que, como todos os outros, cresce em conhecimento? (cf. Lc. 2,40.52) Sabe-se que, em geral, o casamento, em Israel, era mais que um direito, era um dever. O Novo Testamento não diz nada sobre um suposto casamento de Jesus, mas, com critérios históricos, que em vez de afirmar o estado de solteiro, afirmaria o seu casamento. Os bons estudos sobre o “Jesus histórico” multiplicam-se e não parece que sejam considerados em ditos como o mencionado. Tenho sérias dúvidas de que Jesus teria se casado, mas o argumento “foi/não foi” deve seguir critérios sérios de historicidade. E nenhum deles é mencionado no simples ditado “ele era celibatário”.

Ora, quando se fala do ministério ordenado, costuma haver. infelizmente. uma referência “legal” (como se Jesus, nessa frase, tivesse instituído o “sacerdócio”: “fazei isto em memória de mim”). Uma vez que se presume (sem razões óbvias) que apenas os Doze estiveram naquele jantar (e não havia mulheres), o texto é usado para negar o acesso ao ministério às mulheres (certamente não havia mulheres no jantar? Pessoalmente, eu acho que havia).

Curiosamente, por exemplo, o argumento utilizado é que “naqueles tempos” as mulheres não comiam com os homens. Se aplicarmos ao pé da letra o critério: “era assim que se fazia então”, deveria aplicar-se também ao casamento: “naquela época os homens tinham que casar”. Mas vamos supor tudo o que é mantido acriticamente pelo qual se afirma frequentemente que na ceia Jesus institui o sacerdócio ao escolher os Doze para tal ministério. Ou seja, homens casados. Isto é, na natureza do sacerdócio é ser casado.

Mas ainda há mais perguntas... Jesus não era sacerdote e sim leigo. O autor de Hebreus teve que fazer um enorme trabalho teológico-espiritual para falar do sacerdócio de Cristo. Para não prolongá-lo, o autor afirma que é por causa da ressurreição. O glorificado é sacerdote de uma maneira nova (ordem de Melquisedeque); não é “a pessoa de Jesus” o sacerdote, mas o Cristo glorioso (e é por isso que “ele não morre mais”, e é por isso que ele é “para sempre”).

A proposição superficial de que “porque foi assim que Jesus era” parece forçar todos os homens que entram no ministério ordenado a serem judeus, falarem aramaico, serem circuncidados (no oitavo dia) e serem “carpinteiros”. Certamente nada disso tem a ver com o “sacerdócio”. Ah… e obviamente, sendo homens.

Certamente podemos concordar que ninguém pode modificar “a natureza” do sacerdócio. Mas todos concordaremos que existem coisas essenciais e coisas ocasionais, como acontece em tudo o que é “natural” (terminologia já bastante em crise, aliás). As centenas de mudanças ocorridas na história da Igreja nas formas de celebrar os sacramentos, evidentemente, ajudam a ver a distinção entre o essencial e o circunstancial.

O fundamental no “sacerdócio” (judaico e novo, segundo Hebreus) parece ser o fato de ser mediador. Mas, se o antigo sacerdócio para “mediar” teve que separar-se o máximo possível da humanidade para tender para Deus, no caso do novo sacerdócio acontece o contrário: deve aproximar-se o máximo possível da humanidade até que esta se torne semelhante em tudo a ele (com exceção do pecado), portanto é caracterizado pela misericórdia e credibilidade. Essa parece ser a natureza do sacerdócio “cristão”.

Em suma... o que o Papa disse me deixou com um enorme desacordo ... parece mais um slogan do que uma proposta teológico-espiritual. E acho que se há uma coisa que não espero dos pastores (o que me inclui, claro) é recorrer a slogans insubstanciais. Acho que o povo de Deus não merece isso.

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