Por defender indígenas, arcebispo de Porto Velho é alvo de intimidações até nas missas

Dom Roque Paloschi em ação de mobilização com comunidades indígenas na Amazônia | Foto: Cimi/divulgação

30 Novembro 2022

Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e arcebispo de Porto Velho (RO), vem sofrendo ataques em represália a suas denúncias de violações de direitos de povos indígenas

A reportagem é de Elizabeth Oliveira, publicada por Mongabay, 29-11-2022.

Viver na Amazônia defendendo a agenda socioambiental sempre envolveu muitos riscos, mas, segundo o religioso, nos últimos quatro anos a situação se agravou; o período coincide com o do governo Jair Bolsonaro.

Em 2021, foram registrados 355 casos de violência contra pessoas indígenas — o maior número desde 2013, segundo relatório do Cimi.

Alvo de pressões e intimidações até mesmo durante a celebração das suas missas, Dom Roque Paloschi enfrenta um duplo desafio como líder religioso defensor dos direitos indígenas em cenários de avanço da degradação ambiental e da violência contra as comunidades tradicionais na Amazônia.

Além de presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo da Igreja Católica vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele é desde 2015 arcebispo de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, um dos mais desmatados e pressionados da região. Atua, também, como secretário da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil).

Os desafios vivenciados há tempos por Paloschi ganharam uma ilustração pedagógica diante dos mais recentes episódios de intimidações sofridos pelo arcebispo de Aparecida (São Paulo), Dom Orlando Brandes, no dia 12 de outubro. Ele celebrava uma missa em homenagem à Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil e, como é de praxe nessa data religiosa de importância nacional, fazia reflexões sobre os desafios que impactam as populações mais vulneráveis. Diante do atual contexto, também chamava a atenção dos fiéis para o aumento da violência no país.

A diferença é que as celebrações deste ano contaram com a presença do presidente Jair Bolsonaro, além de outros integrantes do seu governo, sendo acompanhada, ainda, por inúmeros seguidores, que protagonizaram cenas de desrespeito religioso e agressividade com jornalistas. Eles não gostaram das críticas ouvidas durante o sermão do arcebispo, dentre as quais,a de que “pátria amada não é pátria armada”, uma referência ao slogan do governo e à defesa de armamento da população civil, que tem crescido sob a atual gestão federal. O arcebispo de Aparecida também defendeu os direitos de populações negras e indígenas e combateu campanhas de ódio e desinformação. Desde então, têm se ampliado as denúncias de agressões sofridas por várias lideranças religiosas no país.

A entrevista de Dom Roque à Mongabay ocorreu antes do dia 12 de outubro, mas muitos detalhes do seu relato sobre pressões cotidianas, como a tentativa de cerceamento das suas falas durante as missas e os ataques sofridos nas redes sociais pelos seus posicionamentos críticos, têm semelhanças com os problemas que outros religiosos estão enfrentando no atual cenário de instabilidade e polarização política do Brasil.

Dom Roque Paloschi discursa em atividade do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realizada em Rondônia este ano

Foto: Augusta Eulalia Ferreira/Cimi

Defender a Amazônia envolve riscos

O presidente do Cimi relata que sofre inúmeras intimidações em Rondônia, com atitudes e pronunciamentos que deixam clara a intenção dos provocadores de causar pressão emocional e psicológica. Cada missa celebrada e outros compromissos religiosos realizados têm representado desafios para esse líder religioso gaúcho formado em Filosofia pela Universidade Católica de Pelotas e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

A situação não é diferente dos dilemas que enfrentou em Roraima, como bispo atuante em Boa Vista entre 2005 e 2015, mas recentemente tem ganhado repercussões mais preocupantes, segundo avalia.

“Nós vivemos nessa região sendo marcados por posturas daqueles que são contrários não somente à questão indígena, mas à questão do direito dos pobres. Nós vivemos movidos por essa economia da destruição. E os habitantes tradicionais não são vistos como sujeitos, mas simplesmente como obstáculos ao chamado desenvolvimento”, diz Dom Roque.

As pressões cotidianas sofridas pelo arcebispo de Porto Velho são resultantes de seus posicionamentos críticos. Ele tem liderado denúncias sobre violações de direitos contra povos e territórios indígenas nas assembleias da CNBB de 2017, 2018 e 2019. Também tem se posicionado em outros fóruns nacionais e internacionais, incluindo o Vaticano, onde já compartilhou o problema com o Papa Francisco na companhia de outros bispos atuantes na Amazônia.

Ele recorda que quando chegou em Roraima, em 2005, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol tinha sido recém-homologada. “Lá os questionamentos eram muito grandes. Eu me lembro que as comunidades tiveram que esperar praticamente seis meses para poder festejar a homologação para evitar tensionamento”, afirma.

Nessa TI, habitada por povos como os Macuxi e os Wapichana, foi intenso o embate das comunidades indígenas com arrozeiros que ocupavam territórios tradicionais e tiveram que encerrar suas atividades em decorrência da demarcação oficializada. Mais recentemente, tensões têm sido provocadas em ações de resistência indígena contra o garimpo.

“Esse é o contexto de viver o ministério episcopal aqui. Esse é o cenário da região Norte, onde os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, os homens e as mulheres das florestas são ignorados. Sobretudo, atualmente, os invasores se sentem autorizados pelos discursos do próprio presidente e da maioria dos seus ministros”, opina o arcebispo.

Dom Roque ressalta que, diante do cenário de insegurança que enfrenta tomou a decisão pessoal de não viajar sozinho de carro pelo interior de Rondônia. Ele conta que prefere se locomover de ônibus, como forma também de evitar acidentes, entre outras situações que acontecem na região. “Muitas lideranças já foram ceifadas por acidentes ao se locomoverem pelas estradas e muitas vezes esses acidentes foram provocados”, denuncia.

Dom Roque junto aos indígenas no Sínodo da Amazônia em Roma, em setembro de 2019

Foto: Repam/divulgação

Questionamentos sobre viés ideológico dos sermões

As pressões costumam acontecer no início das celebrações das missas. O arcebispo relata que há pessoas que chegam e lançam frases com intimidações na tentativa de controlar o que ele terá a dizer durante os sermões. “Sinalizam que qualquer coisa, ou qualquer palavra fora do esperado, pode se tornar motivo de rebeldia, de atitudes e de manifestações”, observa.

Questionamentos sobre viés ideológico das suas falas são frequentes, segundo o religioso que mantém o posicionamento crítico nos encontros com os fiéis. “Quando eu pergunto por que esse pobre não tem comida ou por que está jogado, me chamam de comunista. Isso já foi motivo de manifestações nas redes sociais”, acrescenta.

“Quando você fala da posição do papa em relação aos povos indígenas, aí é outro dilema”, observa Dom Roque. O tema tem sido cada vez mais tratado no Vaticano, onde o Papa Francisco também tem se posicionado criticamente. Tanto que este ano ele nomeou o arcebispo de Manaus, Dom Leonardo Steiner, como o primeiro cardeal da Amazônia.

Em 3 de novembro, a CNBB lançou no Brasil o documentário A Carta, um mês após o lançamento no Vaticano. Nessa produção, inspirada na Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, o líder da Igreja Católica dialoga com cinco protagonistas sobre a capacidade da humanidade de deter a crise ecológica global, dentre os quais o cacique Dadá Borari, do povo Indígena Maró, do Pará.

Sobre o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021”, lançado em agosto pelo Cimi, ele argumenta que os dados revelam “um retrato triste e vergonhoso” do país. No entanto, destaca a importância de disseminar amplamente a realidade nacional. “Fazemos isso para que a sociedade tenha conhecimento de como o Estado brasileiro trata os primeiros habitantes dessas terras”, analisa.

O relatório sinaliza que em 2021 ocorreram 355 casos de violência contra pessoas indígenas, o maior número registrado desde 2013. Os três estados com a maior quantidade de assassinatos (176 registros no ano) foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32), que também lideraram essas estatísticas em 2019 e 2020.

“Os números estão mostrando que depois de 2018, a partir do atual Governo Federal, as coisas só pioraram. Não somente nesse cenário de negação dos direitos constitucionais. Pioraram também pela violência, cada vez mais intensa, e pela crueldade percebida”, afirma Dom Roque. Um exemplo mencionado por ele é o dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, em junho, no Vale do Javari, no Amazonas. O caso ganhou repercussão internacional, revelando a ausência da ação governamental nessa região, que segue à mercê do crime organizado.

Diante desse cenário, o presidente da Repam-Brasil, Dom Evaristo Pascoal Spengler, enviou uma carta ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e à equipe de transição, em 11 de novembro, afirmando “acolher com muita esperança a ideia de uma Secretaria de Coordenação de Políticas para a Amazônia”, com enfoque em soluções para a realidade regional.

Acompanhamento do povo Karipuna em Brasília

Como presidente do Cimi, Dom Roque esteve em Brasília em setembro, acompanhando lideranças do povo indígena Karipuna em visita às embaixadas de vários países, onde foram denunciar a violência provocada por invasores de seus territórios, em Rondônia, e pedir apoio para solucionar as pressões enfrentadas. Ele recorda que, na década de 1970, esse povo estava em risco de ser exterminado após integração arriscada proposta pela Funai, pois só contava com oito remanescentes. Com processo de demarcação dessa Terra Indígena Karipuna, em 1988, ocorreu uma recuperação populacional para 61 habitantes

“Mas, atualmente, essa Terra Indígena, que deveria estar protegida, está devastada, loteada e não se encontra amparo em nenhum órgão público, nem mesmo na Funai [Fundação Nacional do Índio]”, denuncia. Segundo argumenta Dom Roque, esse povo não está pedindo nada além do que o cumprimento da Constituição Brasileira de 1988. “E quem fica do lado deles é taxado de tudo”, opina. Nas embaixadas visitadas, o religioso relata ter havido recepção respeitosa e calorosa à comitiva do povo Karipuna, enquanto nos ambientes da gestão pública federal ele avalia que faltou atenção e senso de prioridade às demandas apresentadas.

Mesmo diante das pressões e intimidações enfrentadas no seu cotidiano, Dom Roque afirma não participar de nenhum programa de proteção oficial. “Eu penso que a gente não pode se curvar diante das ameaças”, opina. Mas reitera que toma alguns cuidados para evitar riscos pessoais e situações de acirramento de ânimos, além de confrontos diretos ou indiretos. Como exemplos, menciona que, além de atenção redobrada com os itinerários percorridos na capital, ou fora dela, nunca discute nas redes sociais e nem responde a provocações em qualquer tipo de mídia. “Não é só para evitar conflito. Assim a gente também não promove esse pessoal”, analisa.

Povos dizimados pela economia da morte

Dom Roque reitera que a maioria dos povos indígenas já foi dizimada no Brasil e que temos ainda no país grupos que estão lutando para sobreviver, como acontece com a etnia Karipuna. “O direito que eles têm é o de usufruir de seus territórios. Mas [invasores] continuam saqueando, mesmo as Terras Indígenas já demarcadas. Em toda a região Norte, principalmente, cada vez mais essa violência vai sendo retroalimentada pela ganância da economia da morte”, opina.

O religioso considera que esse cenário de violência vai se intensificando porque, além do desmonte de políticas públicas, historicamente há uma mentalidade equivocada no país. “Nós somos um país preconceituoso, discriminatório, que continuamos olhando os povos indígenas como se eles não fossem gente. Aqui se nega esse primeiro direito de reconhecimento da alteridade. Há muita gente também sofrendo com a morosidade do Poder Judiciário. Os casos vão passando por anos e anos. E nós estamos agora quase que entrando numa rota de incerteza em relação ao marco temporal”.

Apesar do risco de insegurança jurídica envolvendo essa pauta, cujo julgamento vem sendo adiado, Dom Roque afirma que o Cimi confia que “o Supremo Tribunal Federal vai emplacar o reconhecimento dos direitos e evitar essa tese do marco temporal [que alteraria a política de demarcação, reconhecendo direitos somente para TIs ocupadas até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal].”

Sobre saídas possíveis para que o Brasil recupere o protagonismo no cenário internacional, o religioso ressalta que “é preciso deixar os povos indígenas viverem do jeito deles e serem quem são”. E reafirma o posicionamento crítico: “Que desenvolvimento é esse que destrói os biomas para concentrar riquezas nas mãos de poucos e que produz para exportar grandes quantidades de alimentos, enquanto temos tanta gente clamando por um pedaço de pão?”.

O senso crítico do presidente do Cimi também envolve outros questionamentos sobre os rumos político-institucionais brasileiros. “E que país é esse que assina convênios e acordos internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [que protege os direitos indígenas, inclusive de serem consultados em caso de empreendimentos que impactam seus territórios e modos de vida], para depois não serem cumpridos ou respeitados?”. E conclui: “Que país é esse onde, de repente, as políticas públicas do Estado ficam ao bel prazer do governo da hora?”.

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