06 Julho 2022
“[Os pais da Igreja] estavam maravilhados com as afirmações ultrajantes feitas sobre este Jesus que foi crucificado e ainda assim ressuscitou. Eles não estavam envolvidos em debates ideológicos sobre minúcias. Não reduziram a enormidade do mistério pascal a uma agenda de conservadorismo social ou de justiça social. Sua admiração deu à liturgia toda a grandeza que ela exige”, escreve o jornalista estadunidense Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A carta apostólica do Papa Francisco sobre a sagrada liturgia Desiderio desideravi, que ele emitiu na semana passada, é um documento notável. Como ele afirma no parágrafo de abertura, este não é um tratado exaustivo de um tema tão rico, mas seus insights são profundos e falam, ou deveriam falar, a todos nós.
Juntamente com a entrevista que o papa deu a Philip Pullella da Reuters no fim de semana, vemos o Santo Padre continuar a convidar a Igreja a se agitar, estimulando-nos a envolver o mistério que está no centro de tudo o que fazemos.
A maioria dos relatórios sobre a carta se concentrou corretamente em seu significado para a decisão anterior do papa de revogar o Summorum Pontificum, iniciativa do Papa Bento XVI que permitiu uma maior celebração do rito tridentino. Francisco foi claro nesta nova carta sobre o motivo de sua insistência na prioridade do rito Vaticano II:
“A problemática é principalmente eclesiológica. Não vejo como é possível dizer que se reconhece a validade do Concílio – embora me surpreenda que um católico ouse não fazê-lo – e ao mesmo tempo não aceitar a reforma litúrgica nascida de Sacrosanctum Concilium, documento que exprime a realidade da Liturgia intimamente ligada à visão de Igreja tão admiravelmente descrita na Lumen gentium”.
Também me surpreende!
Alguns comentaristas se concentraram na evidente influência do teólogo Romano Guardini no pensamento do papa. Francisco o cita em vários pontos, mas acrescenta sua própria ênfase. Por exemplo:
Guardini escreve: “Aqui está delineada a primeira tarefa do trabalho de formação litúrgica: o homem deve tornar-se novamente apto aos símbolos”. A tarefa não é fácil porque o homem moderno se tornou analfabeto, não sabe mais ler símbolos; é quase como se nem sequer se suspeitasse de sua existência.
A observação dói porque, uma vez proferida, é tão obviamente verdadeira.
Desejo me concentrar no início da carta, que não deve ser descartada como mero pigarro. Francisco recorda a Última Ceia, escrevendo: “Pedro e João foram enviados para fazer os preparativos para comer aquela Páscoa, mas, na verdade, toda a criação, toda a história – que finalmente estava prestes a se revelar como a história da salvação – foi uma grande preparação para aquela Ceia”.
É notável que tanto das chamadas “guerras litúrgicas” não sejam sobre o lugar da liturgia na história da salvação, mas sobre gostos humanos e preferências estilísticas. O papa, em vez disso, chega ao cerne da questão. “A desproporção entre a imensidão do dom e a pequenez de quem o recebe é infinita e não pode deixar de nos surpreender. No entanto, pela misericórdia do Senhor, o dom é confiado aos Apóstolos para que seja levado a todo homem e mulher”.
Essa compreensão da liturgia como dom, antes de tudo, é o que permite a Francisco fazer a afirmação simples e direta: “Ninguém ganhou um lugar naquela Ceia. Todos foram convidados. Ou melhor, todos foram atraídos para lá pelo desejo ardente que Jesus tinha de comer aquela Páscoa com eles”.
A partir dessa convicção, não é difícil entender por que, em sua entrevista à Reuters, quando perguntado sobre a decisão do arcebispo de San Francisco, dom Salvatore Cordileone, de proibir a presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, de receber a comunhão, Francisco disse: “Quando a Igreja perde sua natureza pastoral, quando um bispo perde sua natureza pastoral, isso causa um problema político. É tudo o que posso dizer”.
O seguidor de Cristo, e especialmente um ministro de Cristo, deve atrair as pessoas para a Ceia, não impedi-las.
Uma das conquistas da teologia pós-conciliar é o foco renovado na graça e no dom em todas as áreas de nossa teologia católica. Durante os longos anos de hostilidade à modernidade, o foco era o direito e a identidade, o “semper idem” e as categorias neoescolásticas. O Concílio Vaticano II, começando com Sacrosanctum Concilium, mas também nas outras duas grandes constituições dogmáticas, Dei Verbum e Lumen Gentium, renovaram praticamente todos os aspectos da teologia católica, mas nada mais do que essa ênfase na graça e no dom, que talvez tenha sido minimizada pelas polêmicas da Reforma – embora não nos decretos do Concílio de Trento! Ali, o decreto da justificação destaca-se pela clareza de seu ensinamento sobre a gratuidade da ação salvífica de Deus.
A escola teológica fruto da Communio, revista teológica iniciada por Henri de Lubac, Joseph Ratzinger e Hans Urs van Balthasar, recebe grande parte do crédito por restaurar essa ênfase na graça e no dom na era pós-conciliar. O Papa João Paulo II, com sua inclinação filosófica, introduziu importantes notas do personalismo do século XX em nossa doutrina social, mas foi Bento XVI quem enfatizou a importância da gratuidade em qualquer modelo econômico e político católico digno do nome cristão.
Bento XVI queria alcançar o mesmo na liturgia, mas julgou mal as intenções de certos colaboradores que pretendiam recolocar “a pasta de dente litúrgica do Vaticano II de volta no tubo”. Agora, Francisco reúne os insights pré-conciliares de Guardini e os insights pós-conciliares da escola Communio.
Um ponto final. Francisco escreve:
“Se nos faltasse o espanto pelo fato de o mistério pascal se tornar presente na concretude dos sinais sacramentais, arriscaríamos verdadeiramente ser impermeáveis ao oceano de graça que inunda cada celebração... O espanto ou maravilha de que falo não é uma espécie de superação diante de uma realidade obscura ou de um rito misterioso. É, pelo contrário, maravilhado pelo facto de o desígnio salvífico de Deus se ter revelado no ato pascal de Jesus (cf. Ef 1,3-14), e a força deste ato pascal continua a chegar até nós na celebração dos ‘mistérios’, dos sacramentos”.
Este espanto, esta maravilha, é o que torna a leitura dos pais da Igreja tão emocionante: eles ainda estavam maravilhados com as afirmações ultrajantes feitas sobre este Jesus que foi crucificado e ainda assim ressuscitou. Eles não estavam envolvidos em debates ideológicos sobre minúcias. Não reduziram a enormidade do mistério pascal a uma agenda de conservadorismo social ou de justiça social. Sua admiração deu à liturgia toda a grandeza que ela exige.
Francisco nos convida, porque o Vaticano II nos convidou, a reacender essa admiração.
Nosso maravilhoso papa continua a ensinar de maneiras que são, acima de tudo, acessíveis ao Povo de Deus. Ele é informado pela perícia teológica, mas não constrangido por ela. Francisco, neste documento, nos pede que reconheçamos o caráter eclesial de nosso culto, e o que poderíamos chamar de caráter litúrgico de nossa vida como cristãos.
Podemos fazer nossas as suas palavras conclusivas: “Abandonemos as nossas polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito diz à Igreja. Cuidemos da nossa comunhão. Continuemos a maravilhar-nos com a beleza da Liturgia. O mistério pascal nos foi dado. Deixemo-nos abraçar pelo desejo que o Senhor continua a ter de comer a sua Páscoa conosco. Tudo isto sob o olhar de Maria, Mãe da Igreja”.
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Desiderio desideravi. A nova carta apostólica do Papa Francisco é mais do que “guerras litúrgicas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU