31 Março 2020
"Um vírus real, com uma coroa, sem corpo duplo, invisível – talvez cumprindo assim a eficácia máxima da teoria dos dois corpos do rei de Kantorowicz, finalmente unitária em sua produtividade biológica invisível – que produz um medo diário imediato, onipresente, próximo; que atravessa a materialidade dos corpos. Um medo virótico que não precisa de estratégias geopolíticas para se desenvolver, que dispensa instituições, acordos e regulamentos; não precisa de tudo isso porque, de fato, produz, para deixar claro, uma biopolítica autoconsensual e voluntária – que a servidão voluntária que já anunciava De La Boétie, em 1500 – é, parafraseando McLuhan, um meio puro sem mensagem; como a eletricidade, o vírus é a mensagem", escreve Sandra Valdettaro, professora do Centro de Pesquisas em Midiatização da Universidade Nacional de Rosário, Argentina, em artigo publicado por Hipermediaciones, 30-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Uma nova experiência se instalou nos modos de vida a nível global.
A pandemia atual de Covid-19 colocou, de repente, a humanidade nessa fronteira sempre instável entre natureza, biologia e cultura que nosso inocente imaginário cientificista pensava controlar.
Apesar da profusão de diagnósticos de todo tipo que há décadas vem anunciando a iminência da catástrofe, a humanidade ficou, no entanto, em um estado de estupefação e com um sentimento de imprevisibilidade e suspensão do senso comum, isto é, de suspensão desse simulacro de naturalização da existência da realidade que a fenomenologia aborda como necessário para o desenvolvimento e manutenção da vida social.
Mais que a invisibilidade e a atribuição de letalidade e contágio do vírus, o que perfura, radicalmente, nossa existência, é a erosão da confiança em nossa própria capacidade, como espécie, de conservar a vida.
Se vê que não bastaram, para nossos próprios recursos adaptativos, nem as leituras atentas de Paul Virilio, de Ulrich Beck, de Niklas Luhmann, entre outros, nem nossos imaginários formatados na literatura e o cinema distópicos de ficção científica; não bastaram, parece, todos os produtos da cultura midiática que a cada década tentaram nos preparar.
Terá de se ver os efeitos futuros – além de se perguntar como será mais a frente disso –, porém no princípio, isto é, no próprio transcurso do estado de exceção viral-global, a pedagogia midiática catastrofista acumulada no transcurso de várias gerações será talvez eficaz para a imitação de comportamentos estereotipados no curto prazo – insustentáveis, por certo, em largo prazo –, ainda que o que em verdade perturba é o caráter fantasmagórico, inconsciente dessas cenas midiáticas que foram conformando nosso espaço ontológico e que, sub-repticiamente, advém a nossa rotineira realidade fenomênica.
Se a noção tradicional de esfera pública racionalística já não era sustentável em épocas que poderíamos nomear como “normais” de midiatização icônico-indicial – sendo, obviamente, a normalidade, outro de nossos simulacros tranquilizadores –, a realidade potentemente invisível do vírus global produz um cenário híbrido de espontaneidade e artefactualidade de midiatização do privado. A intimidade, já se sabe, sempre foi um gênero literário, portanto, se constituiu pública; porém o privado – enquanto refúgio individual imaginariamente incontaminado e ocasião de resguardo – é o que o vírus midiatiza voltando patente seu caráter êxtimo (no sentido lacaniano).
É momento, se me ocorre, de repassar as abordagens de Virilio, por exemplo. Em uma entrevista de 2001 – no contexto dos atentados às Torres Gêmeas do 11 de setembro nos Estados Unidos –, Virilio, baseando-se na noção de “horizonte de expectativas” como chave interpretativa, abordava que o “horizonte de expectativas” do século XVIII havia sido a “grande revolução” e a “grande guerra” do século XIX. O do século XX foi, segundo Virilio, o “grande acidente integral” [1]. Esses horizontes que, segundo Virilio, permearam as vidas imaginárias dos homens de cada século, concretaram-se, como um desígnio, no subsequente – as revoluções do século XIX; as guerras mundiais do XX. Pode se interpretar essa abordagem em termos da eficácia do imaginário como condição do simbólico e do real. Tal como as crianças com os jogos, a humanidade foi se adestrando mediante inúmeras materialidades imaginárias após jogar um jogo real. Pareceu ser a hora, nesse 11 de setembro de 2001, então, de levar a cabo, segundo Virilio, o horizonte do século XX: “o grande acidente integral” [2].
Esse acidente total que foi o atentado de 11-09-2001 marca a dobradiça com o século XXI modelando seu destino. Citamos Virilio:
“Ao servir no sucessivo TEMPO-LUZ (ou, se prefere, o tempo da velocidade da luz) como padrão absoluto de ação imediata, da tele-ação instantânea, a duração intensiva do ‘instante real’ predomina, de agora em diante, sobre a duração, o tempo extensivo e relativamente controlável da história, isso é, de longo prazo que englobava ainda passado, presente e futuro. É, finalmente, o que poderia se chamar COMUTAÇÃO TEMPORAL, comutação que se emparenta também com uma espécie de COMOÇÃO da duração presente, acidente de um instante supostamente ‘real’, porém que se desengancha repentinamente do seu lugar de inscrição, do seu aqui e agora, em favor de um deslumbramento eletrônico (ao mesmo tempo eletro-óptico, eletroacústico e eletrotáctil), no que o controle remoto, o chamado ‘tato à distância’, viria aperfeiçoar a antiga televigilância do que se mantém longe, mais além do nosso alcance” [3].
A lógica do “grande acidente integral” que está analisando Virilio em 2001 – com a desculpa do atentado de 11/09 – apresenta já todas as características da noticiabilidade – excepcionalidade, monumentalidade, caráter trágico, qualidade de disrupção, imprevisibilidade, magnitude dos efeitos – em uma trama midiática que constrói o acontecimento como um real-perceptível, ao vivo, à velocidade da luz, cuja gramática – enfatiza o autor – encontra-se marcada pela “comutação temporal” e a “comoção da duração presente” via “tato à distância” que, nesse momento, produz a visualização televisiva, simultânea e ao vivo, de fato, no mesmo instante de sua produção, a nível global.
É a época em que esse consolidou a perturbadora sensação de confusão entre acidente e atentado; porém estávamos ainda dentro do campo do humano.
A esses diagnósticos de Virilio sobre os efeitos complexos e disruptivos da velocidade e do contato – desenvolvidos tanto no texto citado como em outros livros, e certamente muitas vezes apelidados de exagerados ou não comprováveis por não poucos membros do campo intelectual local – agrega-se, agora, a incomensurável opacidade do acidente biológico.
Também ao final da década dos anos 1990 são as advertências de Ulrich Beck. Suas análises focadas na crescente complexidade do social, a potencial incomensuralidade dos subsistemas, as reduções psicóticas e a quebra das subjetividades, amalgamados mediante um vetor que se vai se entranhando com a sensação de vulnerabilidade, a percepção da insegurança e a impressão do perigo, Beck postula uma nova experiência do risco, a qual se acerca do medo à catástrofe tecnocientífica, à hecatombe nuclear, ecológica ou industrial (4).
O que se acrescenta, no contexto atual de pandemia viral-global, a esse diagnóstico fortemente pessimista de Beck, é que, ainda sendo pessimista, o medo das teorias da sociedade do risco seguia sendo um medo diferido, que se percebia, de algum modo, como tranquilizadoramente distante. Para a doxa, para o homem comum, para nossa habitual e cotidiana maneira de experimentar o mundo, os “riscos” da “sociedade do risco” são da ordem do incrível, do impossível, do que não pode acontecer. Não é imaginável, por exemplo, para o senso comum, uma estratégia de poder nuclear tão puramente perversa que pudesse destruir, estrategicamente, o planeta. Por tudo isso, a sociedade do risco é um medo distante; não por isso ser menos real que outros espectros, porém sim com a mansa intranquilidade que se sente ao despertar de um pesadelo. É como um medo estratégico, funcional ao equilíbrio que os poderes necessitam para seu desdobramento.
Com o acidente integral que é o contágio viral-global que nos toca agora – a perfeição absoluta da lógica do contato –, o pesadelo se desenrola na vigília.
Um vírus real, com uma coroa, sem corpo duplo, invisível – talvez cumprindo assim a eficácia máxima da teoria dos dois corpos do rei de Kantorowicz, finalmente unitária em sua produtividade biológica invisível – que produz um medo diário imediato, onipresente, próximo; que atravessa a materialidade dos corpos. Um medo virótico que não precisa de estratégias geopolíticas para se desenvolver, que dispensa instituições, acordos e regulamentos; não precisa de tudo isso porque, de fato, produz, para deixar claro, uma biopolítica autoconsensual e voluntária – que a servidão voluntária que já anunciava De La Boétie, em 1500 – é, parafraseando McLuhan, um meio puro sem mensagem; como a eletricidade, o vírus é a mensagem.
Como Virilio disse – e ele estava certo – a experiência da civilização atual volta a um perigo próximo e sistemático; o medo do desaparecimento e a potencial “velocidade do desaparecimento” são endêmicos e constituem um sistema [5] e, simultaneamente, nos colocam em uma experiência de “desfuturização”.
Tomando a perspectiva de Luhmann do tempo como “um aspecto da construção social da realidade”, da qual ele afirma que “existem várias vezes, uma pluralidade de gestos temporais ou tempos sociais”, e então definindo o tempo “como a interpretação da realidade em relação à diferença entre o passado e o futuro”[6], voltamos à pergunta do autor sobre como “começar o futuro” [7].
Luhmann propõe um método:
"... se concebermos o tempo como a relação entre horizontes temporais (mais ou menos diferenciados) e se usarmos uma linguagem temporal que permita modalidades iterativas (futuro presente, futuro presente, futuro presente passado, etc.) e definirmos a função do presente e a de cronologia nesses termos, podemos contar com uma base suficiente para iniciar esse tipo de investigação" [8].
Ampliamos seu argumento:
"Se aceitarmos essa distinção entre o futuro presente e os presentes futuros, podemos definir um futuro aberto como um futuro presente que acomoda vários presentes futuros mutuamente exclusivos" [9].
Luhmann reserva o termo “futurização” para designar a expansão da abertura de um futuro presente; e “disfuncional” por sua diminuição [10].
Essa pergunta luhmanniana, então, de como “começar o futuro”, mergulha-nos em uma experiência perturbadora de desestruturação nos nossos tempos atuais.
Os “presentes futuros” não parecem encorajadores.
Novamente, como em outros fenômenos contemporâneos, a midiatização atual é a condição de possibilidade dessa imprevisibilidade crescente.
Dependerá de nós que possa ser, também, uma rota de fuga.
[1] SÁNCHEZ, Matilde. Entrevista a Paul Virilio, “El futuro según Virilio”. Buenos Aires: Suplemento Cultura y Nación, Clarín, 17/11/2001.
[2] Ibidem.
[3] VIRILIO, Paul. La velocidad de liberación. Bs As: Manantial, 1997, p. 27/28. Maiúsculas do autor
[4] BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 1998
[5] VIRILIO, Paul. Estética de la desaparición. Barcelona: Anagrama, 1987; e VIRILIO, Paul. La máquina de visión. Madrid: Cátedra, 1989.
[6] LUHMANN, Niklas. El futuro no puede empezar: estructuras temporales en la sociedad moderna. In.: RAMOS TORRE, Ramón (org.). Tiempo y Sociedad. CIS, Siglo XXI, 1992.
[7] Ibidem: 178.
[8] Ibidem: 179.
[9] Ibidem: 172.
[10] Ibidem: 172.
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O vírus é a mensagem. Artigo de Sandra Valdettaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU