05 Julho 2017
Desde que Thomas More alcunhou o termo Utopia, em 1516, de uma forma ou de outra a humanidade a esteve perseguindo, com mais ou menos ênfase, dependendo da época. Oscar Wilde, por exemplo, escreveu no século XIX que “Utopia é o único país no qual a humanidade sempre acaba desembarcando”. Alguns sustentam que o século passado “acabou com as utopias” e, é evidente, o século XXI as aguarda – quando não as rejeita – com uma pegada de desilusão. Hoje, o jovem Rutger Bregman [historiador] toma o bastão e volta a falar delas sem medo de ser condenado.
Seu ensaio Utopia para realistas (Salamandra) nasceu em formato digital, publicado pelo sítio holandês De Correspondent. Nele, Bregman sustenta, assim como fez o autor irlandês, que “progresso é a realização de Utopias” e propõe uma volta a esse país. Devido ao impacto que gerou, tornou-se um best-seller nacional e impulsionador de um movimento a favor da renda básica universal, que tem suas réplicas em várias partes do mundo. Ao mesmo tempo, espera-se a tradução para outros 15 idiomas. Com a mesma veemência com a que falou em sua palestra TED sobre a pobreza (quase um milhão de visualizações e mais comentários que nenhuma outra), conversou com a revista Ñ por Skype.
A entrevista é de Bibiana Ruiz, publicada por Clarín-Revista Ñ, 03-07-2017. A tradução é do Cepat.
Por que escolheu estas três propostas – renda básica universal, jornada de trabalho de 15 horas semanais e abrir as fronteiras – para escrever seu livro?
Cada visão utópica se baseia no presente, assim, sempre começa com o que está mal no aqui e agora. Desse modo, a renda básica é uma resposta a duas coisas bastante estranhas: em muitos países, inclusive nos países ricos, ainda há milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e milhões de pessoas que consideram seu trabalho inútil. A renda básica dá a todos, pela primeira vez na história, a oportunidade de decidir por si mesmos o que querem fazer com suas vidas. E é o mesmo com a ideia de uma semana de trabalho mais curta. A ideia mais radical no livro, a de abrir as fronteiras, é a resposta à maior injustiça de nosso tempo: a desigualdade (em escala) global.
Quando começou a pensar em novas utopias?
Nasci um ano antes da queda do muro de Berlim e aos de minha geração disseram que não devíamos seguir sonhando grande, que as grandes ideias são perigosas – acabam em comunismo ou fascismo – e que já haviam provado todas as ideias utópicas. No entanto, tenho uma sensação persistente: perdemos algo. Cada conquista da civilização, o fim da escravidão, a democracia, os direitos igualitários, o direito a estado de bem-estar, todas estas ideias alguma vez foram algo ridículo, mas agora são realidade em muitos lugares. O grande problema de hoje não é tanto que não temos uma meta, mas, sim, que não temos novas perspectivas de para onde queremos ir.
É evidente que estamos atravessando um período de crise em nível mundial e, em geral, quando há crises também há mudanças. Pensa que é um bom momento para uma mudança?
Uma crise é sempre uma oportunidade para mudar as coisas. Acredito que o grande problema após a crise de 2008 é que simplesmente não apareceram ideias novas, os de esquerda e os progressistas não fizeram “a tarefa”. Em geral, o que acontece quando uma crise golpeia, por exemplo a de 1930 ou de 1970, é que de repente todo mundo se dá conta: “Não podemos nos apegar ao status quo, precisamos de ideias novas”. Quando comecei a escrever sobre a renda básica, era uma ideia esquecida, ficava à margem dos debates e agora está por todos os lados. A Finlândia quer fazer um experimento. Canadá já anunciou um, no Vale do Silício muitas pessoas estão animadas.
As companhias do Vale do Silício têm uma fiscalidade polêmica. Por que a ideia da renda básica tem tanto apoio nelas?
Há muitas pessoas no Vale do Silício cujo negócio é o de automatizar nossos trabalhos. Os prognósticos dizem que entre 40 e 50% dos trabalhos atuais nos Estados Unidos não existirão em 20 anos. Os robôs são cada vez mais inteligentes e a pergunta é: o que vamos fazer com nossas vidas? Muitos no Vale do Silício chegam à visão de que já não podemos confiar que o mercado de trabalho redistribua a prosperidade que esses robôs geram.
Seria a renda básica um novo estado de bem-estar?
De muitos modos é uma reinvenção do estado de bem-estar.
Então, a renda básica é uma ideia de esquerda ou de direita?
De ambas. Acredito que muitas pessoas de minha geração estão cansadas de todas estas velhas e tediosas discussões entre políticas de esquerda e de direita. O que faria é juntar o melhor de cada uma. A esquerda contribuiria com a erradicação da pobreza e pela primeira vez na história todos poderíamos rejeitar um trabalho que não queremos fazer e ter mais poder de negociação. O que a direita contribuiria é também importante: muitos acreditam na responsabilidade e liberdade individual, mas o melhor da renda básica é que é completamente incondicional. Muitas pessoas buscam ideias novas que vão além dessa velha distinção política, talvez uma forma de anarquismo. Acredito que o que vemos é um retorno do anarquismo, que sempre foi um pouco de esquerda e um pouco de direita.
Nós esquecemos o que gera a força de trabalho?
Sim. Penso no Japão, um dos países com maior sobrecarga de trabalho: trabalham o tempo todo, mas não são produtivos. Temos uma obsessão, que vem muito do século XIX, de trabalhar, trabalhar e trabalhar e quase nunca nos perguntamos: o trabalho é algo útil na realidade? A partir da economia comportamental sabemos que trabalhar menos nos torna mais produtivos.
Mas, precisaríamos dizer adeus ao paradigma no qual o trabalho é um organizador da vida cotidiana...
Sim, claro, definitivamente. Desde os anos 1980 que tudo caminha mal. Acredito que a explicação é que continuamos inventando trabalhos que não são necessários. Isto é também o que diriam aqueles que acreditam que os robôs se encarregariam de nossos trabalhos. Não devemos subestimar a extraordinária habilidade do capitalismo em gerar novos trabalhos inúteis, sendo assim, a pergunta não é tanto acerca da tecnologia ou da economia, mas, sim, da ideologia.
Mas, você disse que o capitalismo é outra forma de chegar aonde queremos...
Sim, não digo que devamos acabar com o capitalismo, digo que devemos transcendê-lo. A renda básica seria a maior conquista do capitalismo, mudaria completamente as regras do jogo.
A tendência atual é questionar a globalização e fechar as fronteiras. Como você apregoa a eliminação destas?
Sei que é a ideia mais radical de meu livro, especialmente na Europa. Na Holanda, há muitos xenófobos. Como historiador, quando olho os dois mil anos de passado, uma vez e outra, os países que se abrem a novas experiências e pessoas são os que prosperam, mas quando os países começam a se fechar, a ter medo, a olhar para dentro, o sinal é ruim, assim as coisas retrocedem. Um bom exemplo de líder diferente é a chanceler alemã Angela Merkel que, em 2015, disse: “podemos agir”, usou uma linguagem patriota, nacionalista para defender ideais progressistas, para se abrir aos demais.
E é possível abrir as fronteiras?
Não digo para fazermos isto de uma só vez, digo que nos movamos nessa direção porque as fronteiras são a maior fonte de desigualdades e injustiça do mundo. Hoje, temos um Apartheid em nível global. Tento demonstrar que a imigração é a arma mais poderosa que temos contra a pobreza mundial. Se os países ricos abrirem suas fronteiras para tão somente 3% de imigrantes ao ano, o Banco Mundial calculou que seria dado aos pobres de todo o mundo mais de três vezes a quantidade de ajuda para o desenvolvimento que aos países ricos.
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Ainda é possível pensar utopicamente? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU