Por: André | 07 Mai 2014
Pioneira no desenvolvimento local da linguística antropológica, seu foco de atenção são as línguas faladas aqui [na Argentina] antes da chegada dos espanhóis. “Quando comecei, faziam os meninos que falavam uma língua indígena na escola lavar a boca”, disse para recordar que até não muito tempo atrás imperava o que chama de “ideologia do desprezo”. As atuais políticas, a tarefa de recuperar as línguas em perigo.
Fonte: http://bit.ly/1rWyI8O |
Quando começou a ocupar-se das línguas indígenas já há quase três décadas, aqueles que se dedicavam à linguística antropológica – um campo no qual convergem várias disciplinas acadêmicas – podiam ser contados com os dedos de uma mão. Foi em plena primavera alfonsinista quando, entre outras questões, começava-se a reconhecer positivamente essas vozes silenciadas da América profunda. Desde então, a doutora Cristina Messineo (foto) percorreu diferentes zonas da Argentina e países limítrofes para encontrar os sons do wichí, do toba, do quéchua e do maká, entre outras línguas. Mas, para esta linguista, um idioma não é uma gramática compendiada num livro, “é a manifestação, a construção de um indivíduo, de um grupo, de uma identidade. Nesse sentido, é uma contribuição para a riqueza de um território, de um povo”, sintetiza sua visão.
A situação das línguas indígenas, a forma de estudá-las e de incluir os seus falantes nos projetos de pesquisa, as políticas linguísticas, a ideologia do desprezo que imperava até não muito tempo atrás em relação a estes idiomas vernaculares, a recuperação das línguas que estão em perigo e a função social da ciência, são algumas das questões que Messineo aborda na entrevista que segue.
A entrevista é de Verónica Engler e publicada no jornal argentino Página/12, 05-05-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como começa a trabalhar com as línguas indígenas a partir da linguística antropológica?
Foi em um momento bastante especial do nosso país, no início da democracia. Eu fiz contato com uma professora de Letras que estava trabalhando com um grupo de antropólogos no oriente boliviano com uma língua dessa região. Ela fez um seminário em um instituto de antropologia do qual que participei e no qual houve uma aula aberta que ela deu com um falante toba. Foi muito interessante porque ele ensinou o que é um conselho qom. Um conselho, na realidade, é uma prática linguística comunicativa dos anciãos para os jovens, dos pais para os filhos, que regula a conduta dos tobas, mas tem uma forma e uma estrutura especial. É o meio ou instrumento por excelência de educação, mas não é só pedagógico, mas serve para transmitir os valores culturais, as condutas: o que se pode comer, o que se deve fazer quando a pessoa vai à montanha caçar, como deve ser o casamento. É um compêndio jurídico de toda a cultura. Foi a primeira coisa que vi deste idioma. E foi assim que comecei. Mas na Faculdade de Filosofia e Letras (da UBA) não há uma especialidade que seja Linguística Antropológica, mas é um amplo campo de disciplinas. Para quem se dedica a isto, o que interessa é relacionar fenômenos da língua com a cultura, ver como as pessoas se comportam linguisticamente.
Qual é a situação atual das línguas indígenas na Argentina?
A partir dos anos 1990, da reforma da Constituição Federal, o que se vê é que há um interesse especial de vários campos, por exemplo, a educação, que colocou o olhar nos povos e nas línguas indígenas, e também na pesquisa acadêmica. Antes éramos quatro ou cinco os que pesquisavam isto e agora há muitos estudantes e equipes de pesquisa que se dedicam a estes temas. Quanto ao número de línguas indígenas faladas hoje na Argentina, o número vai depender do que se denomina língua, ou variedade dialetal, e se se considera as línguas de um só falante ou as línguas cujos falantes recordam apenas palavras soltas. Por isso, é difícil falar em números absolutos. Tendo isto em conta, pode-se dizer que existem 14 línguas, das cerca de 35 que se falaram no que é hoje o território argentino antes da chegada dos espanhóis à América. As línguas são: toba, pilagá, mocovi, vichí, nivaclé, chorote, tapiete, ava-guarani, mbya, guarani (família tupi-guarani), quéchua, tehuelche e mapuche. Graças a pesquisas recentes, pode-se acrescentar à lista as línguas vilela, considerada extinta desde a década de 1960, e chaná, oculta durante quase 200 anos.
E em que estado encontram-se estas línguas que sobreviveram?
Há de tudo. Há línguas que têm pouquíssimos falantes, como no caso do tehuelche. Também há línguas indígenas que não são faladas pela população indígena, por exemplo, o quíchua santiaguenho – a população que a fala é criola; a mesma coisa acontece com o guarani, que é uma língua indígena e é falada em todos os cantos. Do ponto de vista dos seus falantes, há línguas indígenas que são faladas no dia a dia e têm um número importante de falantes, como o quéchua, falado pelos bolivianos que migraram para a Argentina. E há línguas que tem um único falante, como, por exemplo, o vilela, que é uma língua da região do Chaco, da qual se encontrou um único falante. E também há grupos indígenas que se reivindicam como tais e estão buscando sua identidade, estão buscando recuperar seu idioma, como no caso do huarpe, que, para os cientistas, havia desaparecido no século XVII.
Como se recupera uma língua depois de tanto tempo em que não foi utilizada por falantes?
É uma pergunta que não sei responder muito bem. Tecnicamente, não posso dizer como se recupera, mas o importante não é se se recupera tecnicamente, mas se é o desejo dos descendentes do huarpe, que tentam recuperar sua identidade e, com isso, seu idioma. Talvez recuperem uma palavra, duas orações ou um pequeno texto. Para a antropologia linguística, o idioma não são apenas as palavras, as orações ou a gramática; o idioma está ligado a um sentimento de identidade muito profundo, de recuperar o passado, um passado que foi silenciado, ocultado durante anos, durante séculos. Não há uma técnica de recuperação, mas quando há um desejo, sobretudo de pessoas jovens, descendentes, que fazem o esforço para recuperá-lo, isso já é algo importante.
No caso do vilela, que tem um único falante, como é uma língua cujo único falante não a pode falar com ninguém?
É muito interessante porque é uma língua sem comunidade linguística, sem comunidade de fala. Para isso existe o trabalho dos linguistas, é o trabalho de documentação, que é uma das tarefas do linguista. Neste caso, trata-se de documentar uma língua cujo falante é um recordante da língua, não é um falante, não se comunica com essa língua. E isso é um passo, trabalhar com a recuperação das palavras, das formas verbais, de textos.
E esse registro, essa recuperação, é uma espécie de legado, de objeto de museu?
Eu não trabalho com línguas em “extremo perigo”, como o vilela. Mas na realidade são línguas que têm um único falante que não é falante, mas que recorda dos seus avós ou da sua infância. Então, o trabalho pode ser de dois tipos: ou de museu, de arquivo e documentação, ou pode ter o outro apoio, que é o de produzir material nessa língua para transmiti-lo: por exemplo, essa pessoa pode transmiti-los para os seus netos, e pede para ensinar aos netos ou aos filhos algumas palavras, e isso pode chegar a ter no futuro certo efeito. Os idiomas não são meras palavras, mas que trazem em si todo um significado e um conhecimento do mundo. Por exemplo, no toba, que é uma língua que tem um número importante de falantes, há muitas palavras que se referem a espécies naturais, e há um nome para uma árvore que é o eucalipto, que se chama “domiaGai”. Esta palavra em toba significa “aquela que zumbe”, “o zumbidor”, porque em determinada época do ano se aproxima do eucalipto uma espécie de abelha que produz um mel especial, e que faz com que a árvore zumbe. Ligada a essa palavra há uma série de conhecimentos sobre a produção do mel, da época em que se colhe o mel. Há uma série de conhecimentos entrelaçados que, caso se perderem, a palavra também se perde.
Você pesquisa o qom l’aqtqa (língua toba) há vários anos. Que questões lhe parecem relevantes ou significativas desta língua?
Eu sempre me interessei pela relação língua-cultura, em colocar o foco nesse aspecto. De qualquer modo, como a minha formação é na linguística, comecei trabalhando com a gramática, com os aspectos mais formais da língua. A minha perspectiva era ver como funcionava a gramática com o significado. Porque todas as descobertas que se pode fazer na gramática de uma língua não europeia ou não das maiorias, podem contribuir para a teoria linguística geral. E, justamente nesse sentido, as línguas indígenas da América, sobretudo as latino-americanas, têm a particularidade de codificar determinados aspectos do significado que as línguas europeias não fazem da mesma maneira. Então, nesse sentido, tornam-se interessantes cientificamente. Algumas têm a particularidade de que em um verbo, além de ter tudo o que um verbo em espanhol tem, como o tempo e a pessoa, codifica se o falante o viu ou não o viu, se foi testemunha ou não, se o escutou. Isso é que se chama “evidencialista” nas línguas. Seria como o conhecimento do falante sobre o que aconteceu, sobre o que está relatando, a fonte do conhecimento. Isso é algo que nas línguas europeias não existe codificado na gramática; pode-se dizer “me disseram que está para chover”, mas a relação entre o que se diz e o conhecimento de quem o diz não está no verbo.
Por que no âmbito acadêmico se faz referência às línguas indígenas como línguas “minorizadas”?
Tem a ver com uma concepção preconceituosa acerca de que essas línguas não são comunicativamente eficientes, porque não podem comunicar conceitos abstratos ou teorias, ou que não são gramaticalmente completas. Nada disto é verdade. Há a ideia de que são dialetos, que não têm o estatuto de língua. Mas, na realidade, não há nenhuma diferença linguística entre dialeto e língua; a diferença é apenas política. Um sociolinguista muito conhecido dizia que a língua é um dialeto com exército, por isso o castelhano é uma língua e o chorote é um dialeto. Há uma autora, que se chama Nancy Dorian, que fez um trabalho interessante sobre ideologias linguísticas, e fala da ideologia do desprezo, que é uma ideologia muito europeia que veio com a conquista, e que adotou esse olhar sobre as línguas na América. A ideologia do desprezo tem muito destas características que comentei: supõe que as línguas indígenas não têm uma gramática, não podem expressar o conhecimento abstrato, a ideia de que se um falante fala o espanhol e uma língua indígena isso é prejudicial para a sua aprendizagem; ao contrário, se fala inglês e espanhol é fantástico.
Com a reforma da Constituição Federal em 1994 parece expressar-se um interesse a partir do Estado de revalorizar as línguas indígenas e desenvolver uma política linguística mais ligada a um bilinguismo vernáculo. Houve mudanças reais na educação desde então? Os professores e professoras puderam preparar-se para enfrentar esta situação e que não acabe sendo um “problema” em sala de aula que a criança fale guarani em sua casa?
Creio que houve mudanças. Há muitas escolas preparadas. Dediquei-me muito tempo a este tema da educação bilíngue intercultural. Neste momento, não tenho números exatos sobre a situação, porque não estou me dedicando a isso; posso fazer uma apreciação bem geral. Quando eu comecei, em 1989, no que foi o Programa Bilíngue Intercultural da Província do Chaco, vinha-se de uma época em que se fazia os meninos que falavam uma língua indígena na escola lavar a boca ou eram colocados de castigo. Agora há muitas experiências de educação bilíngue intercultural, muito caminho percorrido, há os “auxiliares docentes”, os professores indígenas. Antes, o auxiliar docente varria o pátio da escola. Creio que agora há muita gente que tem inclusive formação universitária como professores, vejo que há um grande avanço na formação dos próprios indígenas como professores.
Em que momento começa a dar-se esta mudança na valorização das línguas indígenas?
Eu penso que começa com a democracia, como tantas outras coisas que estavam ocultas, que eram consideradas humilhantes. Estas línguas eram consideradas como indo contra um projeto de país que olhava a unidade. Quando se unifica este país como Estado-nação a primeira coisa à qual se faz referência é ao idioma espanhol puro, que não deve se misturar com esses híbridos dialetos, e aí também incluíam os dialetos trazidos pelos italianos e pelos espanhóis imigrantes, e as línguas indígenas. A partir do começo da democracia, de alguma maneira, começa a romper-se esse projeto tão europeizante.
Você realizou um projeto de pesquisa colaborativa na comunidade toba de Derqui (Pilar, Província de Buenos Aires). Pode me contar que características têm uma iniciativa deste tipo na qual os próprios falantes nativos colaboram ativamente na pesquisa?
É um projeto que começou em 2001 e durou até 2006. Foi um projeto que surgiu basicamente do interesse dos cientistas e pesquisadores de voltar ou transferir os conhecimentos para uma comunidade que estava começando a se organizar. Pesquisa colaborativa significa que o interesse da pesquisa se transfere para os próprios atores, para os próprios falantes. Esse foi um trabalho muito lento. Quando eu terminei a minha tese de doutorado, que é uma gramática sobre a língua toba, tive o impulso de levar a tese à comunidade e ver o que estava acontecendo, o que podíamos fazer nesse lugar onde se estava nucleando um grupo de pessoas que vinha de diferentes lugares do Chaco e que, além disso, tinha uma problemática muito importante do ponto de vista linguístico, que era o fato de que as crianças já não falavam mais a língua nativa: aprendiam o espanhol como primeira língua. E isso é grave, porque o sintoma de que uma língua se perde é quando as crianças já não a falam, quando os pais já não a transmitem. Era o que estava acontecendo ali. Eu havia escutado a preocupação dos adultos, de alguns anciãos, e pensei que talvez fosse um bom momento para começar a trabalhar neste sentido. Uma comunidade urbana bilíngue, mas com crianças monolíngues em espanhol, era uma situação muito peculiar, diferente do que acontecia no Chaco, onde as crianças eram monolíngues, mas em uma língua vernácula.
Então, começamos algumas oficinas nas quais se incorporam muitos adultos e adolescentes. E nestas oficinas, na realidade, começamos juntos a ver o que podíamos fazer. A primeira questão que surgiu é que queriam aprender a falar melhor o espanhol, para poder defender-se melhor no trabalho e na educação. E a minha ideia era que isso estava bem, mas que também necessitavam recuperar seu idioma, porque isso seria positivo. Esta é uma ideia que tiveram muitas dificuldades para entender. Eles pensavam que aprendendo em toba se atrasavam em sua aprendizagem do espanhol. Mas, minha hipótese era que recuperar o toba também serviria para que se afiançasse a confiança em si mesmos e fosse possível aprender o outro idioma. Então, começamos com as oficinas, nas quais tínhamos sessões de gramática, de relatos sobre a história, sobre os costumes, de dramatizações de algumas situações comunicativas. Em um projeto colaborativo as pessoas não são estudadas como objetos, mas se incorporam a esse interesse da pesquisa e, justamente, se interessam por seu próprio idioma, e começam a encontrar a beleza, a estrutura, e se interessam em transmiti-lo aos seus filhos.
E dessa experiência colaborativa surgiu um material que depois foi publicado pelo Ministério da Educação, é verdade?
Sim, foi muito bonito porque se fez um ato de apresentação no Palacio Pizzurno, e no ato estava o ministro da Educação, que era Daniel Filmus, o diretor do programa, um ancião toba e eu. Cada um falou, e foi bonito porque o ministério havia posto à disposição microônibus, e assim pôde vir gente de todas as partes. A praça em frente ao palácio estava cheia de gente qom, que chegava ao ministério, e se encheu de whipalas; isso foi muito bonito. Outra coisa muito interessante é que uma das pessoas adultas que vinha à oficina, com um conhecimento e uma sabedoria incríveis, começou a dar aula como professora de língua toba na Faculdade de Filosofia e Letras. Chama-se Mauricio Maidana. Agora vai sair um livro que fizemos, que inclui textos dele: Arte Verbal Qom: conselhos, rogativas e relatos do Espinillo (Chaco). Textos bilíngues anotados.
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“É preconceito dizer que as línguas indígenas não são comunicativamente eficientes”. Entrevista com Cristina Messineo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU