Frente às sociedades tecnocientífcas mediadas por telas e símbolos importados do Norte Global, o chamado à ancestralidade e ao corpo presente
Em um contexto de apropriação capitalista do nascimento de Jesus, que impõe o uso de símbolos distantes à realidade brasileira, a pesquisadora Maria de Lourdes Macena de Souza recorda que o Natal, no sertão e nas comunidades tradicionais, é uma festa de corpo, de pé no chão e espiritualidade encarnada.
Doutora em Artes pela UFMG e coordenadora do Mestrado Profissional em Artes do IFCE, Lourdes Macena dedica sua trajetória à compreensão do que chama de "brincadeiras" — manifestações que, longe de serem meros passatempos, constituem a espinha dorsal da identidade cearense e nordestina. Para a pesquisadora, a separação acadêmica entre música, dança e teatro não faz sentido na "brincadeira" popular. Nestas manifestações, a música é o fundamento: "A música é o leito, ela é o caminho, ela é o que tudo enfeita", afirma, destacando que a canção embala desde o trabalho na roça até o louvor ao divino. “Tem música para plantar, música para colher, música para atravessar o rio”, assinala.
Nesta entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a professora destaca a força do Pastoril, dança dramática que narra a jornada das pastorinhas rumo ao presépio. Mais do que uma representação religiosa, o Pastoril revela a profunda relação do homem com o cosmo em sua plenitude, pois a celebração envolve toda a criação. “O pastoril fala de todas as perseguições, das dificuldades e de como a natureza celebrou. Ele não fala apenas de como o homem celebrou, mas de toda a natureza”, explica Lourdes.
“Dançamos para pedir e para agradecer”, afirma a pesquisadora, sublinhando que essas manifestações “são as velas acesas”, como se a “dança fosse uma conexão cósmica com o céu, com o invisível”. “Da mesma forma como qualquer pessoa de qualquer religião acende uma vela ou faz uma oração, os homens fazem uma brincadeira de reisado como se fosse uma vela acesa para agradecer ou para pedir”, complementa.
Lourdes Macena (Foto: Grupo Miraira)
Maria de Lourdes Macena de Souza é doutora em Artes pela UFMG com estudos na linha de pesquisa artes cênicas – teorias e práticas e Ensino em Arte, possui Mestrado Profissional em Turismo com dissertação sobre festas populares (2002) e graduação em Licenciatura em Música pela Universidade Estadual do Ceará (1981). É professora efetiva do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará – campus Fortaleza, onde atua como coordenadora do Mestrado Profissional em Artes, é professora de danças tradicionais, coordena o grupo de pesquisa em Cultura Folclórica Aplicada e dirige o Miraira – LPCT – Laboratório de Práticas Culturais Tradicionais.
IHU – Gostaria que a senhora começasse explicando qual a importância da música e da dança no contexto das manifestações populares no interior do nordeste brasileiro, especialmente do Ceará onde a senhora trabalha?
Lourdes Macena – Quando você fala sobre esse contexto das manifestações no interior do Nordeste brasileiro, muito especialmente aqui no Ceará, e me pede para falar sobre a importância da música e da dança, eu tenho que explicar que, na tradição popular, não fazemos essas separações como ocorre no universo acadêmico das expressões em dança, em artes visuais, em música, em cênica. Na tradição popular, essas coisas são muito contextualizadas, tudo ao mesmo tempo agora.
Então, o que eu quero dizer com isso? Que a música, a dança e a gestualidade são de uma importância muito grande no universo da tradição popular, até porque a música, de certa forma, é a dramaturgia onde tudo se deita. Ou seja, nós utilizamos da música para embalar as crianças, para fazer as danças e folguedos da tradição popular brasileira, não apenas do Nordeste. A música é o elemento seguidor, porque diferente da dança contemporânea, a dança, no universo da tradição popular depende da música. A música é o leito, é o caminho, ela é o que tudo enfeita.
A música é importante, não porque está dentro dos aspectos de tudo que tem gestualidade e movimento, como é o caso daquilo que é dançado, mas porque vai estar presente no universo das expressões como um todo. Tem música para plantar, música para colher, música para atravessar o rio, música para raspar a macaxeira, tem a canção não apenas para embalar, mas também para fazer a ludicidade das crianças. Tem a música dentro desses aspectos do encontro entre os compadres que podem fazer seus repentes, suas cantigas de viola, ou qualquer outra forma de improviso para alimentar o dia a dia e a poética da vida, do mundo do trabalho, da vida cotidiana.
E a dança, dentro dessas manifestações populares, está dentro desse universo da gestualidade do corpo possível. A dança acontece como motivo de encontro, de festejo ou também para poder pagar ao santo as bênçãos daquilo que foi recebido, porque dentro das tradições populares, dançamos para pedir e para agradecer.
Portanto, a dança está inserida em todos os aspectos da vida humana e por isso que, em boa parte das expressões das atividades humanas, ela é de uma importância relevante no que diz respeito às manifestações populares como um todo. Não apenas no interior do Nordeste, não apenas aqui no Ceará, mas nesse contexto do território brasileiro.
IHU – Outro ponto chave nesta entrevista é o Natal. Como costumam ser as celebrações natalinas no contexto popular nordestino do Brasil?
Lourdes Macena – Os ciclos que marcam todo ano. O ciclo momino, que vem para o período do Carnaval, o ciclo pascal, que vai para a Páscoa, o ciclo junino, e o ciclo natalino, que é o momento que estamos vivendo. Ou seja, a vida nesse universo popular, divide-se em uma aceitabilidade muito grande desses momentos que são importantes e que marcam também encontros e a organicidade dessa vida coletiva comunitária.
No Natal, a primeira questão é que há esses compromissos sociais de encontros [entre amigos, familiares] e de agradecer pelo menino nascido. E essas formas de celebrar estão faladas por meio dos pastoris, que é uma dança dramática, uma narrativa que se faz por meio da música, da dança, do teatro e da gestualidade, falando sobre como cada coletividade vê como ocorreu o nascimento de Jesus.
Assim, a dança do pastoril fala de todas as perseguições, das dificuldades e de como a natureza celebrou. Ele não fala apenas de como o homem celebrou, mas de toda a natureza, porque no pastoril, vemos a presença também de elementos da natureza se manifestando como vida presente para cantar e louvar o menino Jesus. Não apenas homens, mas bichos e outros seres vêm também louvar o menino nascido.
O pastoril fala do Nordeste, que são nove estados e tem formas diferenciadas de fazer esse pastoril. O pastoril fala dessa caminhada das pastorinhas para encontrar o menino nascido. Então, pelo caminho, elas vão encontrando vários personagens e várias formas também dessa história ser contada na forma como cada comunidade reinterpreta. Isso ocorre não apenas o pastoril, mas também os reisados.
No caso aqui do Ceará, o reisado, na capital, é uma cantiga para se pedir donatismo para celebrar a festa de Santo Reis, que vai a partir do dia 1º até o dia 6 de janeiro. Mas, no caso, existe também a dança dramática reisado, não apenas aqui, mas também em outros estados do Nordeste. No caso do Ceará, nós temos vários tipos de reisado, como, o reisado de congo, o reisado de couro, o reisado de careta etc. que tem formas de se apresentar diferenciadas, com personagens diferenciados, porque cada tipologia de reisado tem uma forma de fazer essas brincadeiras.
Mas o que mais importa é que eles falam desses universos de histórias que ligam à Idade Média e a outras histórias que se revelam, que também mostram uma forma de brincar, uma forma de diversão, de trazer a alegria e a brincadeira para o eixo do encontro dos compadres.
Assim, celebrar o Natal é também uma forma do homem festar como sempre o homem soube fazer, ou seja, com música, com festa, com dança e com muita comida, da forma como cada um pode celebrar esse ato de alimentar-se, de alimentar o corpo, a alma e o espírito, e a forma também de encantamento, que é celebrar seus familiares.
IHU – Há uma manifestação artística importante que conecta Natal e danças populares nordestinas, chamada “Pastoril”. A senhora poderia explicar do que se trata?
Lourdes Macena – Como já coloquei, o pastoril é essa caminhada das pastorinhas para ir ver o menino Jesus. E lá elas vão se encontrar com tudo: ciganas, borboletas, pastores, a Diana [1]. Existe também a presença do "cão" atentando a esse “não encontro”, estando sempre presente o bem e o mal. Tem uma pastorinha que representa essa corrida que teve para aqueles que procuraram defender o menino Jesus durante esse momento primeiro de vida e, dependendo de cada lugar, aparece com nomes diferentes, pode ser a Açucena, pode ser Diana. Às vezes é a Diana que morre para defender o menino Jesus, às vezes é a pastora Açucena. Por outras, a cigana aparece, para tentar matar o menino Jesus a mando de Herodes. Portanto, tem toda uma dramaturgia que aparece, mas o que elas querem mesmo é lembrar a história e celebrar de forma festiva, cantante, sempre dando ênfase ao aspecto da felicidade que foi o nascimento de Jesus para todo o povo cristão.
O pastoril não vem para determinar a relação “a uma religiosidade”. O pastoril é um momento de festar e agradecer pelo bem, pelo bem para todos e para mim. Ele celebra a figura filosófica que foi a presença de Jesus no mundo, porque ele falou de amor, independente da Igreja Católica. Jesus, durante o seu tempo, enquanto homem que aqui habitou, falou de amor. O que mais ele procurou nos ensinar foi amar uns aos outros, a ajuda mútua, viver coletivamente para o bem de cada coletivo. Essas coisas todas estão inseridas nas mensagens que vêm no pastoril, celebrado com música, dança, teatro e com um universo enorme de personagens.
Na minha tese doutoral falo, não apenas do pastoril, mas também da brincadeira do boi, que está presente no Natal. Durante o Natal, temos o pastoril, os reisados e as brincadeiras de boi. Aqui no Ceará, o Bumba Meu Boi é do ciclo natalino, está no junino, mas ele se apresenta dentro do ciclo natalino para fazer essa homenagem ao menino nascido.
IHU – A senhora organiza anualmente o Pastoril no IFCE. Pode nos contar como acontece essa celebração? Como essa manifestação cultural reverencia o nascimento do Menino Jesus?
Lourdes Macena – Todo ano eu faço o pastoril dentro do Instituto Federal do Ceará, muito precisamente no Campus de Fortaleza, que é onde eu estou há 43 anos. Esse grupo que eu dirijo há mais de 40 anos, é um grupo que aprende com os mestres e mestras da tradição, no espaço coletivo e nas nossas comunidades sobre essas brincadeiras, sobre esses teatros e danças que ocorrem na prática de existir na vida cotidiana dessas comunidades. E com eles nós aprendemos. Nossa performance em cena tem a ver com produzir experiências para que os meninos aprendam sobre essas músicas, danças e gestos. Com isso, aprendem a respeitar os nossos mestres e mestras e essas expressões culturais que representam muito a nossa tradição e que têm marcado a ancestralidade nordestina de estar nesse território recebendo [outras culturas], mas destacando a nossa parte identitária.
No caso do Instituto Federal, além de eu me basear muito no pastoril de Dona Mariinha da Ló [2] e em pastoris de Fortaleza da década de 1960 e 1970, tenho trabalhado com textos dramatúrgicos que se basearam nessas performances. No nosso pastoril, além de trazer todas as músicas e bailados das pastoras, da Diana, das ciganas, de como essas músicas estão, acrescentamos músicas populares que os artistas vão criando para cada personagem, para a estrela, para os bichinhos que vão entrar também para adorar o menino Jesus. Mas nós cantamos essas louvações para a entrada de Nossa Senhora. Nós utilizamos as músicas populares para destacar a presença quando ela vem ainda como uma boa samaritana que vai ter aquele momento da anunciação. O que sempre dá início ao pastoril é o momento do anjo com a anunciação de Maria, avisando que vai engravidar do menino Jesus.
Nessa sequência, as pastoras, quando sabem que está perto de chegar esse momento [o nascimento de Jesus], começam a entrar nessa jornada. Existe o encontro com Herodes, quando por meio da cigana, comenta-se sobre essa chegada do novo rei, porque os reis magos estão tentando seguir a estrela para encontrar o lugar do menino nascido. Herodes sabendo disso tenta enganar os reis magos e descobrir esse local, porque ele não concebe a existência de outro rei, ele se vê como o único rei e Herodes começa essa perseguição.
As jornadas dançadas sempre representam esse caminhar e em cada momento vêm as cenas. Há uma cena com o menino já nascido onde as pastorinhas chegam a Belém, tem momentos de representação, quando José tenta conseguir um lugar para Maria poder repousar, e as casas todas lhe negam apoio e é por isso que ela vai para uma estrebaria. Quando as pastoras, que também vão seguindo a estrela guia, e os pastores vão até conseguir encontrar esse lugar. Além disso, procura-se, dentro do texto, fazer uma relação com o que estava na profecia. Esses textos vão sendo também colocados entre danças e música até que eles chegam no local do menino nascido.
O que culmina em uma grande festividade – é um momento muito lindo – celebrado pela música, pelo momento mágico por uma canção que se tornou imortal entre todos nós: Noite Feliz, que é cantada por todas as comunidades. E depois, então tem uma cena já do menino nos braços de Nossa Senhora, e ela o coloca para uma pastora acalentar. Vem então a cigana para tentar roubar o menino de Maria, porque Herodes continua a perseguição.
A cigana então tenta tomar o menino e a pastora para não se deixar prender, vai defender, entrega o menino a Maria e vai lutar. Na defesa, a cigana mata a pastora. Com isso, tem todo um cântico e uma louvação à pastora boa que foi morta pela cigana.
Eis que surge o Anjo do Senhor e vem então para ressuscitar a Diana, a pastora boa, porque ela defendeu o menino Jesus. E a cigana então vai pedir perdão à pastora e ao anjo porque ela fez essa maldade. No final, a cigana se converte.
Logo após essa defesa, tem um anúncio de que o menino precisa ir para um lugar onde Herodes não o procure, para que ele possa crescer e tudo mais. Há partida de Maria e de José no lombo de um burrinho, sendo levada, tentando despistar os soldados de Herodes. Uma estrela vai levando o menino para esse lugar onde ele viverá protegido de Herodes para poder crescer. Eles saem e todo mundo fica feliz porque eles conseguiram fazer essa proteção.
Tudo isso é feito com teatro, um teatro popular, com uma encenação realizada a partir do que as pessoas entendem, com muita música, com muita gestualidade. Claro que nós temos o curso da licenciatura em teatro dentro do Instituto Federal e hoje os meninos já trabalham essas cenas. Pelo interior essas cenas também são belíssimas, independente das técnicas oficiais do teatro, porque o popular também tem suas técnicas e que impera dentro dessas brincadeiras.
E tem uma grande festa final de cânticos e eles sempre se despedem as cantigas de pastoril, que sempre dizem...
Adeus, senhores! Adeus, senhoras! Até para o ano! Ao romper da aurora, pastorinhas se despedem do presépio de Belém, de Jesus e de Maria, até para o ano que vem! Adeus, senhores! Adeus, senhoras! Até para o ano! Ao romper da aurora! Até para o ano ao romper da aurora! [ouça no vídeo a seguir a interpretação da entrevistada].
E assim vamos, a cada ano, celebrando o pastoril como uma forma de seguir lutando, de seguir cantando e também mantendo essa tradição nordestina.
IHU – Como as brincadeiras representam uma forma do homem se comunicar com o cosmos?
Lourdes Macena – É engraçado como nós acadêmicos ou nessa vida mais urbana vamos perdendo a capacidade de comunicação com a natureza como um todo. É como se nós fossemos “uma coisa à parte”. É como s houvesse uma divisão onde nós só temos uma comunicação possível com o próprio homem ou como o próprio ser humano, que hoje se revela como um dos mais desumanos da própria natureza.
O homem simples vê, através dessas brincadeiras, uma forma de se comunicar com o seu sagrado, com o cosmos, com o invisível.
Quando uma pessoa que tem uma dor na perna e ela pede à roda de São Gonçalo para curar aquele mal. A a pessoa estando curada vai “pagar” as rodas de São Gonçalo àquele mestre que faz a dança de São Gonçalo. Muitas pessoas não acreditam porque nem pedem e nem recebem.
Em Juazeiro acontecem as renovações. A renovação é um ato cristão que foi implementado pela própria igreja católica, mas para o romeiro do Juazeiro, ela foi implementada a pedido de Padre Cícero. Ou seja, Padre Cícero “pediu” para que cada romeiro tivesse na sua casa uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e uma do Sagrado Coração de Maria. E, cada ano, quando completasse um ano daquela data em que colocaram a imagem desses dois santos, que eles festejassem, festejassem com a família, com os amigos, fizessem uma festa. E assim é feito até hoje.
Isto é, a “renovação” é a renovação dos votos ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria, como foi solicitado por Padre Cícero ao povo de Juazeiro, aos seus fiéis, mas a todos os seguidores do Padre Cícero que estão espalhados pelo Nordeste e pelo país. O que observamos é que quando os compadres vão fazer, por exemplo, o ato da renovação, eles brincam de maneiro pau [3], de reisados, de cantoria, fazem as brincadeiras de boi, se vestem como os bacamarteiros, que são aqueles homens que usam os antigos bacamartes [arma de fogo de cano curto e largo usada em festividades populares com disparos de pólvora seca] e brincam soltando aqueles tiros. Isso tudo para louvar o sagrado, para dizer, “Senhor, estou aqui, sou grato, sou grata”.
Da mesma forma como qualquer pessoa de qualquer religião acende uma vela ou faz uma oração, os homens fazem uma brincadeira de reisado como se fosse uma vela acesa para agradecer ou para pedir. Assim também é com o pastoril, com as brincadeiras de maneiro pau, com as danças em roda, as cirandas, as brincadeiras de Mateus, as brincadeiras de boi. Essas são as velas acesas para agradecer e para pedir. Se dança como uma conexão cósmica com o céu, com o invisível.
Somente na vida urbana é que dançamos junto com um monte de gente pulando, achando que aquele é um lugar coletivo, mas sabemos que não é. Cada pessoa ali está individualizada, ninguém sabe quem é quem, e todo mundo fica pulando que nem um cabrito nesse negócio, entra e sai sem saber que a gente estava ali.
Nessas brincadeiras, não. Dá-se as mãos, brinca-se junto, todo mundo conhece todo mundo e sabe quem está ali brincando. Essa é a forma, talvez, de maior comunicação com o cosmo, entendida pelo homem simples, porque ele compreende que cada elemento que ele faz com o seu corpo, com o seu familiar ou com aqueles amigos que com ele planta, colhe e convive, é uma forma de se ligar ao cosmo, ao sagrado, ao divino. Porque não há nada mais divino do que respeitar um ao outro, amar um ao outro, ficar feliz produzindo bem um ao outro.
IHU – Em contextos não urbanos onde a cultura é preservada por tradições orais, qual a importância de manifestações artísticas ligadas, por exemplo, ao teatro e à dança?
Lourdes Macena – É muito importante que todos compreendam que o teatro e a dança foram, primeiramente, lugar de espaço urbano, lugar de rua, depois eles se vão adentrando os “territórios oficiais” do circuito cultural. O teatro primeiro era um teatro de feira, um teatro aberto, um teatro de rua. Tem essa coisa que o teatro surgiu no universo da Grécia, talvez o teatro mais formalizado, mas a atividade teatral em si, ela sempre foi entendida como um lugar de rua, um lugar aberto, feito na rua, depois ele toma outros ares.
A mesma coisa a dança no seu momento primeiro, que era considerada um formato de louvar de aspecto coletivo, muito ligado à forma coletiva do trabalho da lavoura e aos aspectos do festar coletivamente. Era um encontro para brincar e para dançar junto.
Dentro desses contextos não urbanos, onde a arte formal é negada, porque, se observarmos, todos os cursos de formação em artes estão prioritariamente nas capitais. Por exemplo, aqui no Ceará, são 184 municípios e somente seis tem curso de formação de professores em arte. O que significa que dentro dos outros municípios, só Deus sabe quem está dando aula para as crianças ou formando artistas ou o que o valha.
Eu estive em Goiás, onde tem mais de 200 municípios, e lá somente três tem curso de formação de professores em arte. A arte é um direito, mas ela não é possibilitada como uma formação específica para as pessoas, ela não está ao alcance de todos.
Portanto, nesses espaços não urbanos, a dança possível, o teatro possível, é exatamente essas manifestações populares de tradição oral que possibilitam a atividade artística nesses universos.
Nós temos outras ações hoje através de políticas públicas que, de certa forma, tentam priorizar o sertão, que são muito importantes. Isso tem melhorado um pouco, principalmente nesse último governo, temos conseguido um investimento na área cultural que tem adentrado aos sertões – isso é preciso que seja dito. Mas nos contextos não urbanos, essas danças e teatros de tradição oral é que tem garantido ao homem simples o seu festar, a sua atividade artística em todos os sentidos e não apenas no teatro e na dança, porque para poder fazer teatro e dança, é preciso música e artes visuais. Porque para a confecção de todos os adornos, de todos os figurinos, de tudo o que vai ser aquela representação imagética, como também a parte musical que, como eu já falei, é a dramaturgia de toda brincadeira. É algo extremamente importante porque é a arte que chega e que está lá.
IHU – A senhora coordena o Grupo Miraira. Poderia nos explicar do que se trata? Qual sua importância para a memória artística e cultural da região?
Lourdes Macena – O Grupo Miraira, que funciona dentro do Instituto Federal, existe há 43 anos. É um trabalho que reúne de forma espontânea aqueles que se interessam por realizar estudos e experiências cênicas musicais com as tradições populares. Então, considerando que recebemos pessoas que são das artes, mas também aqueles que são de qualquer área, mas que têm potencialidade artística e que vão para lá para trabalhar com matrizes estéticas tradicionais.
Esse trabalho empoderou, dentro de uma instituição pública ligada à formação muito específica à área de ciência e tecnologia, um estudo e uma aplicabilidade. Tudo o que é desenvolvido no grupo é compartilhado em experiências cênicas-musicais no Circuito Cultural da Cidade, pela região Nordeste e também no âmbito de outros estados quando somos convidados. Nós já estivemos em Brasília, Goiás, Paraná, Piauí, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, também por alguns municípios aqui do Ceará.
O Grupo Miraira, de certa forma, é o maior exemplo de que uma atividade contínua de estudo, pesquisa, extensão voltada à tradição popular serve como um programa também de salvaguarda [da cultura] pelo reconhecimento que faz dessas comunidades tradicionais, pela forma como envolve corpo e perceptivo, corporalidade, corporeidade na experiência que faz dessas expressões tradicionais. Possibilitando que essas pessoas, que vêm trabalhando conosco, possam atuar também no empoderamento dessas comunidades tradicionais, nas suas expressões culturais tradicionais e também envolver com ações específicas de criação em artes na cena ou na própria ação docente.
É possível acessar o site Digital Mundo Miraira que foi desenvolvido para os professores, onde compartilhamos conteúdos que vamos desenvolvendo para que professores do estado ou professores de ensino fundamental possam ter acesso aos temas dessa área para preparar suas aulas, principalmente em relação ao Ceará.
IHU – Qual é a diferença, se é que existem, entre o Pastoril e o Reisado, por exemplo?
Lourdes Macena – São totalmente diferentes. E eu vou dar essa diferença de ordem generalista, porque é muito importante compreendermos que quando falamos de pastoril, ele não tem um jeito único de ser feito, ele tem diferenças e particularidades de acordo com cada comunidade onde se realiza. Ou seja, o pastoril do Ceará e o pastoril do Rio Grande do Norte podem ter partes comuns de cantigas, de cenas, de personagens, mas também vão ter partes totalmente diferenciadas pela forma como cada comunidade se reinventa, recria, transcria para poder perpetuar essas expressões.
E quando eu falo assim, Ceará, Rio Grande do Norte, apenas como exemplo, eu estou lhe dizendo que os pastoris, tanto do Ceará como do Rio Grande do Norte não se tem um pastoril único. Quando nos referimos, dizemos que o pastoril do Ceará, da comunidade tal, que é dirigido pela mestra fulano de tal é desse jeito. Essa conclusão de identificação única só serve ali, naquela comunidade.
Quando falamos de diversidade cultural, as pessoas às vezes não compreendem direito o que é. Como o povo brasileiro tem essa capacidade múltipla de se reinventar e de, com propriedade, estabelecer expressões culturais que diz respeito à maneira como ele entendeu e gosta de fazer. Assim vai tecendo essas formas diferenciadas que tanto nos caracterizam nessa diversidade de sermos.
O pastoril fala sobre a ida das pastorinhas a Belém para ver o Menino Jesus. É isso que a história conta de forma cantada e dançada. E, de certa forma, por meio de palavras encenadas, gestualidade, teatralizadas. O pastoril tem cenas diversificadas e vai contando essas multifacetadas que envolvem o nascimento do Menino Deus, pelo menos do que está dentro do imaginário do nosso povo.
O reisado, por sua vez, fala principalmente dos reis que saíram dos seus reinados distantes, de continentes diferentes, e que foram seguindo o que estava nas escrituras: saíram para caminhar em busca de encontrar o menino nascido. Então, a brincadeira do reisado cearense fala sobre o Dia de Reis.
No caso específico do Ceará, que é o lugar de onde eu falo, tem o reisado de Congo, que fala sobre a briga de dois reinados distintos e que lutam para defender a sua rainha. No reisado de Congo, a indumentária dos brincantes lembra muito os antigos gladiadores romanos. Eles se vestem com as sainhas curtinhas, tem umas batas também cheias de espelho, muito brilho e muita fita. E eles ficam falando sobre essas formas de defesa também de algo do universo do invisível.
Porque a brincadeira do reisado, que é do universo da brincadeira entre os compadres, mas que também tem essa ligação com o cosmo, já que eles fazem isso ou para pedir algum benefício aos santos devotos ou para agradecer. A brincadeira do reisado traz também elementos, no caso nosso aqui do Ceará, do Bumba Meu boi.
Ele traz personagens animais, personagens que são da área cômica, que fazem a brincadeira, como o palhaço, como o Mateus, trazendo muita comicidade na hora da apresentação. Mas os Santos Reis do Oriente, como eles dizem, brincam de diversas formas e de diversas maneiras.
No reisado de Congo há a louvação à Nossa Senhora e ao Menino Deus, eles têm cantigas que fazem essa narrativa da história, mas as suas partes dançadas são diferentes, os seus passos são distintos, têm muito sapateado e uma luta de espada. Uma brincadeira de luta de espada, como se fossem esses reinados brigando. E eles fazem também o roubo da rainha.
A rainha, no caso dos reisados do Cariri no sul do Ceará, é sempre menina, até a faixa etária de 10, 12 anos, e eles. Sempre é uma criança porque fica fácil também eles correrem, pegar e simular a questão do rapto.
Além do reisado de Congo, nós vamos ter também o reisado de Careta, onde é uma família, um velho e uma velha e mais outros componentes, que fazem todas as cantigas e brincadeiras com sapateio e usando muitas máscaras. Esses reisados do interior do Ceará estão em volta muito desse discurso de defender reinos distintos, mas que eles, reis, estão sempre envolvidos com essa figura dos Reis Magos que andaram para ver e conferir a profecia do nascimento do Menino.
IHU – Que outros folguedos são típicos desta época do ano no contexto do Nordeste?
Lourdes Macena – Quando falamos do Nordeste, além do reisado e do pastoril, nós vamos ter os guerreiros, muito especialmente os guerreiros alagoanos, que têm essa diferença dos brincantes usarem como chapéu a representação de uma igreja do seu lugar, da sua cidade ou da igreja matriz de Maceió, o que varia de grupo para grupo. Apesar de reverenciarem a questão do Menino nascido, da estrela, eles também têm partes que se misturam com a influência indígena. Há, ainda, uma representação do amor de Peri e Açucena. Há muitas outras histórias que vão mesclando coisas que têm a ver com a nossa formação cultural.
O guerreiro alagoano também tem a parte dos caboclos, essa mistura da influência de quem para cá veio e colaborou com essa formação brasileira. No que diz respeito ao Nordeste, nós teremos os caboclos, uma brincadeira que é feita também usando fileiras, filas e eles têm um mestre e um contramestre, usam espadas também para fazer as suas embaixadas, que são essas pequenas lutas. Os guerreiros também usam tropel, que é uma espécie de batida de pé, onde fazem a marcação rítmica sempre com batidas de pé – muito bonito por sinal. Há essas cenas que contam outras histórias para além do que falam os nossos reisados, misturando sempre essas figuras, que é a do colonizador europeu com os caboclos e com os índios. Eles fazem essas histórias também trazendo figuras que estavam envolvidas no nascimento do menino nascido.
Além do guerreiro, do pastoril e do reisado, tem o costume das lapinhas. No interior do Cariri tem a lapinha, que é o presépio montado, e tem a lapinha cantada, o que também ocorre no Rio Grande do Norte, Paraíba, não apenas aqui no Ceará. As lapinhas são pequenas cantigas para louvar o menino Deus, que fala principalmente a questão da lapinha. A lapinha não conta a narrativa das pastorinhas, se concentra no presépio, em cantar e louvar o presépio, as figuras que estão ali. São essas [as principais] expressões: pastoril, reisado, guerreiro, lapinha, e a brincadeira do boi. O boi, no caso específico do Ceará, pertence ao ciclo do Natal e vem para louvar o menino.
IHU – Até que ponto preservar essas memórias populares é um modo de oferecer uma outra imagem do Natal para além daquela associada aos signos do capitalismo e do norte global?
Lourdes Macena – As memórias populares só lembra quem as viveu. Temos que falar sobre tradição, porque as pessoas pensam sempre na tradição como algo do passado e não é. A tradição é aqui e agora, é o que estamos vivendo. A tradição tem uma relação com o passado, mas ela precisa ser presente. Ou seja, eu estou falando de tapioca como uma gastronomia tradicional, mas ela só vai ser tradição se eu consumir a tapioca hoje normalmente na vida cotidiana contemporânea.
A memória é associada a esse ato de lembrar aquilo que foi guardado. Mas, pelo fato de as pessoas deixarem de fazer nas capitais, essas memórias populares vão deixando de acontecer e vai sendo invadido pelo capitalismo e [por essa ideia de Natal] do Norte Global.
Por exemplo, as pessoas vão fazer uma situação imagética de lembrar o Natal na Praça do Ferreira, que é o coração da cidade de Fortaleza, e, de repente, tem até neve, numa cidade que raramente não fica sem sol. Às vezes, é muito importante ver que precisamos estar associados a essas coisas todas que representam o lugar, mas isso tem que ser feito também com aceitabilidade e divulgabilidade por todos os órgãos, senão fica assim, apenas alguns lembram e o ato de lembrar só serve para quem viveu.
Possibilitar fazer isso com a juventude e no Circuito Cultural da Cidade serve para ser lembrado, para ser falado de que existe outra forma diferenciada dos cearenses, nordestinos e brasileiros de fazerem um Natal diferente do mundo global.
IHU – Vivemos em um contexto global não muito animador. Qual sua mensagem para este Natal a partir da perspectiva da religiosidade popular Nordestina?
Lourdes Macena – Eu sou mulher de 67 anos, mas que vivo para o futuro, sempre me concentro nele, e me concentro tentando sempre saborear o presente com um esperançar, movendo-me para fazer as coisas serem melhores. Eu desejo que possamos efetivar uma possibilidade artística para todos os brasileiros, principalmente as crianças, e que dentro desse universo de criar, da própria arte, que possa conter essas matrizes estéticas tradicionais do nosso povo, que possamos entender que a cidadania perpassa também por favorecer essa história.
Quando falamos de um país soberano, falamos do reconhecimento dessa história, das questões populares e das coisas que representam o nosso povo. Não podemos ter vergonha de ser brasileiro, temos que procurar valorizar o que nós temos construído, entender o que nós produzimos, saber das nossas demandas, mas principalmente valorizar o que nós temos construído. Porque hoje estamos nos descuidando de muita coisa e tem gente fazendo patente com as nossas próprias criações.
É importante saber para quem a gente precisa desenvolver conhecimento, que é para diminuir a desigualdade. Isso tudo tem a ver com a educação e com o olhar sobre a arte, compreendendo que ela é um direito que precisa ser possibilitado para todas as nossas crianças e toda a nossa juventude.
Eu desejo mais oportunidades de acesso a esse universo cultural.
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[1] Diana é símbolo de paz e união, uma personagem que aparece com nomes diferentes, mas é central e imprescindível dos festejos de Natal. Ela simboliza a harmonia entre os dois cordões azul (Nossa Senhora) e vermelho (Coração de Jesus/Cristãos e Mouros), vestindo as duas cores e trazendo a paz para a disputa entre eles, enquanto celebra a chegada do Menino Jesus, guiando as pastoras com sua beleza e cantigas, sendo a ponte entre as tradições e a fé, destacando-se por suas falas e sua presença unificadora.
[2] Mariinha da Ló é uma figura lendária do Cangaço e da cultura popular nordestina, Maria José dos Santos, que viveu com histórias do sertão, especialmente em Canudos. Era uma mulher de grande devoção e beleza, lembrada por sua ligação com as Almas Benditas e a história local, que foi tema de estudos e homenagens, representando a cultura dos pastoris tradicionais que narram a visita dos Reis Magos ao Menino Jesus.
[3] A brincadeira de Maneiro Pau é um folguedo popular tradicional do Nordeste brasileiro (especialmente no Cariri cearense). É uma dança coletiva em roda que simula um combate ou desafio com bastões de madeira (maneiro pau), acompanhada por cânticos e batidas rítmicas, ligada à cultura dos engenhos de cana e do cangaço, sendo uma expressão cultural que mantém viva a história local e a identidade comunitária, com um mestre (solista) comandando a folia.