Para a professora e pesquisadora, o momento dos festejos natalinos implicam a escolha radical pelo amor, o único caminho possível para o respeito e a fraternidade
Na mitologia grega, “Aglaiê” tem o significado de esplendor, glória, características que casam muito bem com Aglaé Fontes, professora e pesquisadora da cultura popular que, do alto de seus 91 anos, é uma referência para o campo no Sergipe e no Brasil. Durante a entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Aglaé fala sobre a importância de valorizarmos a cultura popular como a verdadeira representação do sentido natalino.
“Em uma louvação onde o povo é o elemento mais importante, nós vamos retomar historicamente a colonização, a entrada da religiosidade no Brasil e à louvação que o povo faz deste menino que nasceu há 2025 anos. Nisso vem aquilo que eu acho que é importante nessa louvação: a presença dos pastoris, a presença dos reisados, a presença dos guerreiros, que aqui é como uma subdivisão do reisado”, explica a entrevistado.
Todas estas manifestações estética e místicas têm a ver, precisamente, com o processo de formação do Brasil. “Aqui nós misturamos as culturas com africanos, com indígenas e com franceses que vieram depois. Então, temos essa diversidade enriquecida pelas diversidades étnicas que contribuíram com a gente”, avalia.
Neste sentido, em uma visão alternativa à perspectiva capitalista e colonial do Natal, é fundamental que possamos estar atentos à nossa riqueza. “Repare como nós somos ricos: temos uma diversidade que faz com que tenhamos várias cores, vários mitos, várias rezas e várias danças”, pontua. “O presente maior que o mundo pode dar é realmente amar. O amor e o respeito pelas pessoas, pelos outros, e o amor à cultura, que é do povo. Que possamos respeitar, registrar e divulgar para que ela não se acabe”, complementa.
Aglaé D'Avila Fontes (Foto: Governo do Sergipe)
Aglaé D'Avila Fontes é uma figura central na cultura e educação de Sergipe. Conhecida como atriz, professora, escritora, pesquisadora de cultura popular e gestora cultural, fundou uma escola de música e dirigiu espaços como o Centro de Criatividade, promovendo a arte e o folclore local por décadas, sendo homenageada recentemente por seus 90 anos como uma "baluarte" sergipana. É membro da Academia Sergipana de Letras, ocupando a cadeira 12 desde o dia 5 de agosto de 2004. É membro fundadora da Academia Lagartense de Letras, em 19 de abril de 2013, onde ocupa a cadeira 16. Atualmente é presidente do Instituto Histórico Geográfico de Sergipe - IHGSE.
Confira a entrevista.
IHU – Qual é a importância do Natal no contexto das festas populares do Brasil?
Aglaé Fontes – É bom que a gente comece explicando que tipo de festa popular é aquela que valorizamos. Afinal, o que é festa popular? Por exemplo, a que está acontecendo agora em todo lugar é uma festa voltada à venda, à compra e tem uma figura vendedora extraordinária (sic) que é o Papai Noel, com o qual eu não concordo nem em gênero, nem em número e nem em grau. Então, quando falamos em popular ou de ser uma festa do povo, precisamos ter claro qual é a visão que se tem desse popular.
A minha cidade (Aracajú) está toda festejada e iluminada para as festas natalinas, mas a figura central que ilumina e que decora os diversos ambientes é o Papai Noel, que não tem nada que ver com a cultura brasileira. É uma coisa imposta, eu o considero um grande vendedor, mas não ele não pode usurpar a figura do aniversariante. A quem é que a gente louva no ciclo natalino? É a chegada de um menino muito especial. Se o aniversário é do menino, por que eu vou louvar com o Papai Noel?
Em uma louvação onde o povo é o elemento mais importante, nós vamos retomar historicamente a colonização, a entrada da religiosidade no Brasil e à louvação que o povo faz deste menino que nasceu há 2025 anos. Nisso vem aquilo que eu acho que é importante nessa louvação: a presença dos pastoris, a presença dos reisados, a presença dos guerreiros, que aqui é como uma subdivisão do reisado. E também, no Brasil inteiro, as folias de reis e todas as festas que compõem esse ciclo natalino. Essa sim é uma visão comemorativa ligada à alma do povo, à sua história cultural. A outra forma (a do Papai Noel) é a cultura de massa, não é a cultura popular.
IHU – E de que modo essas manifestações populares – os reisados, o pastoril, etc. – ressignificam os objetos de domínio religioso colonial?
Aglaé Fontes – O povo, no seu jeito simples, encontra uma forma de louvar esse nascimento que pertence ao cristianismo, não é dessa religião ou daquela. O povo estabeleceu alguns cantos, danças e louvores deste período para fazer a sua festa popular.
Isso é arte. Essa arte popular que mostra a cara que o país tem, que o Estado tem, que a cidade tem. Nós temos muitos mecanismos para evidenciar essa criatividade do povo, essa expressividade que o povo tem de mostrar as suas histórias. Assim como conta outras histórias, também conta essa. E a conta com os elementos que a sua própria terra tem. Não precisa importar mecanismos estrangeiros.
IHU – A senhora é colecionadora de lapinhas. Eu queria que a senhora contasse um pouco mais sobre isso, como começou?
Aglaé Fontes – Essa história, que há mais de 2 mil anos se conta, do nascimento de uma criança especial e que o nosso calendário diz que teria sido em dezembro, é representada de forma diferente em cada país. Isso passou a ser representado na forma dos presépios a partir de 1223, quando surgiu o primeiro presépio. Este foi montado com elementos vivos, elaborado por São Francisco de Assis, na cidade Greccio [na região do Lácio, na Itália]. Havia pessoas representando Maria, José e o menino, bem como outros elementos, o boi, o burro, tudo isso em numa gruta. Depois, essa ideia da representação real da natividade foi assimilada por vários países. Quando viajamos, em cada lugar, podemos encontrar como essa representação é feita.
Eu tenho, por exemplo, aqui no Instituto Histórico, um presépio, que são minipresépios. Nós temos exemplares de Jerusalém, da Espanha, vários de Portugal, das viagens que eu fiz a para estudo, para fazer palestra etc. Tem presépios de Évora, de uma série de lugares com elementos típicos da região. Por exemplo, aqui do Brasil tem de Minas. Além desses, tenho presépios do Peru, da Bolívia, etc. Todos eles representam a forma do povo se expressar. Isso é muito importante.
O fato é o mesmo, mas além de todos os pintores que já pintaram as madonas, que já pintaram cenas do nascimento e que povoam as galerias do mundo inteiro, há também o povo, que na sua simplicidade constrói e dá elementos para a história. E para a cultura do povo.
Isso é o que eu sinto. As pessoas fazem [os presépios] pintando, esculpindo, em cerâmica ou madeira. O presépio de Jerusalém, por exemplo, é todo em madeira. O de Évora é em cortiça, porque é a presença maior daquela região. Cada um com as suas características e estéticas, nesta forma de arte, uma arte popular.
E, junto com isso, vem a parte musical, que é muito rica. Por exemplo, todos que são representados nos reisados, das pastorinhas até a gruta de Belém, cantam. Eles cantam o que a cultura popular chama de louvas. São benditos, são loas, versos de louvor, pois louva-se aquilo que está na alma popular.
IHU – Por que é importante olharmos para o Natal sem estarmos preso à visão comercial dessa data no Ocidente?
Aglaé Fontes – Eu tenho até um texto que eu digo um bocadinho assim: Eu não gosto de Noel, Eu não gosto da sua voz rouca, nem da sua roupa, nem das suas renas, nem da ilusão da sua história. Eu gosto do Menino. O Menino que é o elemento provocador do surgimento de uma arte e de uma cultura que vem da alma do povo.
Por isso, representa cada espaço, cada lugar. E essa cultura de massa não me representa. E nem representa o meu estado, o Sergipe.
IHU – Precisamente sobre o Sergipe, quais são as principais manifestações populares?
Aglaé Fontes – Eu faço muito estudo da cultura popular. Os grupos folclóricos, por exemplo, os folguedos daqui, dançam em qualquer época do ano. Em alguns lugares, nesta época, dança-se o reisado. Em outros estados este mesmo festejo às vezes se chama “Folia de Reis”, ou então, como em Florianópolis, “Boi de Mamão”, que é também a mesma representação do povo. O tema, porém, é sempre essa ida à gruta de Belém.
Aqui nós misturamos as culturas com africanos, com indígenas e com franceses que vieram depois. Então, temos essa diversidade enriquecida pelas diversidades étnicas que contribuíram com a gente.
Os pastoris são famosos porque eles têm orquestras que acompanham, estão sempre ligados a uma igreja que lhe dá o suporte. Mas os pastoris também contam mesma história desse Menino. Esse Menino é de uma importância muito, muito, muito grande e provocou a arte de várias formas, musicalmente, com esculturas e pinturas no mundo inteiro.
É um tema que eu acho sempre vivo e que nos leva, cada vez mais, a aprofundar o assunto.
IHU – A senhora pode explicar o que é folguedo e o pastoril?
Aglaé Fontes – Há muitos anos aconteceu a Semana de Arte Moderna no Brasil, com o Mário de Andrade e outros, lá em São Paulo. Aquilo mexeu com o aspecto da brasilidade nossa, de valorizarmos a cultura que é nossa e só importar o que é de fora. A partir desse encontro, da Semana de 22, houve algumas palestras e falas mostrando essa importância de cada um descobrir e valorizar a sua própria história.
Depois desta época que veio a sugestão de se chamar os grupos folclóricos de “folguedos”. Quando denominamos folguedo, estamos nos referindo a todos os grupos que têm uma estrutura dramática. É o que, antigamente, Mário de Andrade chamava de “as danças dramáticas do Brasil”. Mas depois esse nome foi substituído para o uso da palavra folguedo. Era assim chamado porque tinha um enredo, um drama, que contava, justamente, a ida à gruta de Belém (algo que pertence ao reisado e ao pastoril). Assim, esses grupos passaram a ser chamados de folguedos.
Existem outros grupos, também representativos, de outras coisas importantes no país, que não têm essa dramaticidade. Grupos que são de dança, nos quais qualquer pessoa entra na roda para dançar. Por exemplo, a ciranda. Ela não tem personagem, todo mundo participa. Temos também o samba de coco, que não é natalino, mas é uma manifestação muito nossa. No samba de coco, todo mundo entra para dançar, porque ele não tem personagens definidos.
Por exemplo, a cavalhada tem um enredo, os cacumbis, os reisados, as cheganças de grande influência portuguesa, abertura dos mares. Portanto, tem folguedos e dança simples e todos estão dentro dessa cultura popular de cada país, de cada lugar. No Brasil ou fora dele.
A diferença é essa: aquilo que era dança dramática passou a se chamar folguedo. E o que não era dança dramática continua sendo uma dança simples.
E temos também as marujadas, que é uma subdivisão da chegança, a dança de marujo. Nós temos também aqui um samba de apoio. O samba de apoio é dedicado a Santa Bárbara, que tem uma ligação muito grande com o culto negro [no sincretismo é Iansã/Oyá]. Repare como nós somos ricos: temos uma diversidade que faz com que tenhamos várias cores, vários mitos, várias rezas e várias danças.
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IHU – Qual é a mensagem da senhora para o Natal, para esse momento do nascimento do Menino Deus?
Aglaé Fontes – Eu vejo uma coisa muito importante, uma coisa que ele também pregou tanto, disse tanto, mostrou tanto, mas que a gente anda muito esquecido ultimamente: o amor; o amor ao outro; o respeito ao outro. Se realmente usarmos esse ensinamento, diminuiremos as guerras e as brigas, diminuiremos tudo de ruim que há.
O presente maior que o mundo pode dar é realmente amar. O amor e o respeito pelas pessoas, pelos outros, e o amor à cultura, que é do povo. Que possamos respeitar, registrar e divulgar para que ela não se acabe.
Eu estou preparando uma palestra para o Encontro Cultural de Laranjeiras, um encontro que acontece aqui na primeira semana de janeiro. Estou falando sobre a oralidade e o valor dela. Antigamente, um dos espaços de oralidade era a calçada. A calçada desapareceu, não só porque as pessoas estão morando em apartamentos e não têm calçada, mas porque a calçada se tornou um elemento perigoso por causa do trânsito e da violência. Mas, antigamente, as crianças aprendiam as brincadeiras na calçada. Veja como as transformações que a sociedade vai passando vão interferindo na questão cultural.
O bom é respeitar o outro. E, quando respeita, ama, né?! Uma coisa está implícita na outra.