Manifestações sagracionais nas roças e comunidades rurais do Brasil profundo oferecem uma outra imagem, mais plural e original, do nascimento de Jesus Cristo
É preciso começar dizendo que o sertão não se parece em nada com as imagens midiáticas que há décadas circulam nos meios de massa, reduzindo-o a terra rachada e folhas secas. Há também o sertão molhado – o sertão das veredas. Nas áreas urbanas opera uma estética muito parecida com qualquer outra cidade do Brasil. Mas há o sertão das roças, mais autêntico e inspirador.
“No sertão urbano, espaço mais afetado por esses fenômenos de massa, as celebrações natalinas não são muito diferentes daquelas de outras regiões. Agora, nas comunidades rurais do sertão, há uma diversidade de ritos sagracionais, de movimentos extracotidianos que mudam a paisagem sonora e estética do lugar e evocam o estar-juntos em festa. E os elementos invasores da indústria cultural, nesses espaços, são ressignificados, postos à serviço das manifestações e seus enredos tradicionais”, explica Cícero Félix de Sousa, professor e pesquisador da Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O sagrado natalino no sertão rural não se reveste de túnicas, estolas e paramentos dourados. Constitui-se na relação das pessoas com “santas e santos, nos orixás, nas encantarias, nos invisíveis, nas ruas, nas matas, nas plantas, nos animais, nos elementos naturais do universo, naquilo que toca a intimidade profundamente do ser”, descreve.
O anúncio do nascimento de Jesus Cristo não conta com trombetas, louvores ou sermões, mas na simplicidade fascinante do canto de um galo. “A reza começa por volta das 11h e termina quando o galo canta, exatamente à meia-noite. Eu sempre achei um barato esse imaginário que coloca o galo como o anunciador do nascimento – é curioso imaginar que o galo fica na espreita do tempo pra cantar na hora certa. Daí, depois da intervenção do galo – cujo canto parece real e encantado ao mesmo tempo –, as mulheres cantam alegres, entre foguetões e vivas. O Menino Jesus nasceu mais uma vez, como todo ano, para tornar a nascer de novo no ano seguinte, porque o ‘parto’ desse Menino não cessa”, sublinha o pesquisador.
Cícero Félix de Sousa (Foto: Arquivo pessoal)
Cícero Félix de Sousa é doutor em Artes Cênicas pela da Universidade de Brasília (UnB). Atua como professor adjunto da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), onde coordena o setor de Arte e Cultura da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (PROEC).
É graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em 2001, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, categoria Primeira Página, com o trabalho "Terroristas atacam os EUA", publicado no jornal Diário da Borborema, em Campina Grande (PB). Produziu vários documentários, entre eles Seu Limiro, quando a caretagem chegar, em 2022.
Em 2024, publicou, em organização conjunta com o professor Graça Veloso (UnB), o livro Etnocenologia: saberes de vida, fazeres de cenas. Em parceria com o fotógrafo Rui Rezende, publicou os livros Cerrado e outras riquezas do Maranhão, Tocantins, Piauí e da Bahia (2023), Bahia vista por um passarinho (2022), Oeste da Bahia - Novo Mundo (2014) e Vaqueiros do Raso da Catarina (2018).
IHU – Pode nos contar como são as celebrações de Natal no sertão brasileiro? Símbolos “importados para o Brasil” como papai Noel, pinheiros e outros estão presentes nessa região?
Cícero Félix de Sousa – Primeiro eu acho importante a gente refletir sobre o que é sertão brasileiro. O sertão, como a muitos parece, não pode ser reduzido àquela paisagem seca com cactos e terra rachada. Há o sertão das veredas, o sertão molhado. O sertão das cidades e o sertão rural. Logo, cada sertão tem seu modo de se manifestar nesse período, pois ele é também do imaginário. E por mais que todos esses sertões tenham sido afetados pela cultura de massa, pela indústria cultural, pelos projetos globalizantes de consumo, algumas manifestações guardam da ancestralidade modos de celebrar o sagrado muito próprios dessa região que também é gerais, que é cerrado, que é caatinga e que é sertão do médio São Francisco, onde fica o chamado Oeste da Bahia.
No sertão urbano, espaço mais afetado por esses fenômenos de massa, as celebrações natalinas não são muito diferentes daquelas de outras regiões. Agora, nas comunidades rurais do sertão, há uma diversidade de ritos sagracionais, de movimentos extracotidianos que mudam a paisagem sonora e estética do lugar e evocam o estar-juntos em festa. E os elementos invasores da indústria cultural, nesses espaços, são ressignificados, postos à serviço das manifestações e seus enredos tradicionais.
IHU – Que tipos de manifestações sagracionais ocorrem no período natalino (incluindo os dias posteriores) na região do Cerrado e da Caatinga brasileira?
Cícero Félix de Sousa – Aqui, mais precisamente na margem esquerda do São Francisco, há grupos de Reisado (folias e ternos de reis), Altar do Menino Deus, Lapinha e Congado. Mas, certamente há outras manifestações na região nesse período.
IHU – O que é a reza na cultura sertaneja? De que maneira o gesto transcende a oração?
Cícero Félix de Sousa – Podemos entender a reza por, pelo menos, três perspectivas:
a) reza como sinônimo de oração;
b) reza como um conjunto de orações, realizada em festejos, e
c) reza de ritual de benzeção que, associada a um ramo, a uma “fôia”, promove a cura.
De modo geral, a reza transcende o real e o racional. É manifestação que agencia forças subjetivas como a fé, a crença, a devoção. Assim, em sua forma diversa, a reza está presente na cultura sertaneja.

Reisado (Foto cedida pelo entrevistado)
IHU – O senhor pode nos dar o exemplo de alguma “reza de festejo” que celebra a passagem do Natal?
Cícero Félix de Sousa – Olhe, nos mais de 15 anos de pesquisa sobre as manifestações sagracionais da região, acompanhei diversas rezas de festejo, mas não identifiquei uma oração específica para o festejo de Natal, com exceção de alguns cantos e benditos – muito pouco no conjunto da reza. De modo geral, a reza feita no Natal é a mesma feita também na Folia de Nossa Senhora do Livramento, na Folia do Divino Pai Eterno, no Divino Espírito Santo, na Semana Santa, no Levantamento do Mastro de São João e em tantas outras manifestações de festejo na região. É a devoção dos participantes que dá sentido aos festejos, e não rezas específicas.
IHU – Como é o ritual da reza de “altar”?
Cícero Félix de Sousa – Como disse, não existe uma reza específica de um festejo. Agora, é claro, cada festejo tem o canto específico da padroeira ou do padroeiro do festejo. As orações, em geral, são praticamente as mesmas em todos os festejos. Vale lembrar também que a reza é uma parte da manifestação, que conta também com cantos e sambas de folia, e comida para todas as pessoas.
IHU – Nessas regiões, como é a relação do devoto com o sagrado?
Cícero Félix de Sousa – Diversa. O sagrado não é uma entidade, uma imagem de um ser celestial e único. É algo subjetivo que move afetos, fé, respeito e devoção. O sagrado está nas santas e santos, nos orixás, nas encantarias, nos invisíveis, nas ruas, nas matas, nas plantas, nos animais, nos elementos naturais do universo, naquilo que toca a intimidade profundamente do ser. Agora, quando falamos especificamente da relação da pessoa com o sagrado representado por essas imagens religiosas dessas manifestações, estamos falando de uma relação que envolve fé, realização, graça, pedido, penitência, promessa, comprometimento com o sagrado, contrapartida, confiança...
IHU – Quando falamos no começo do ano, o senhor nos contou do Altar do Menino Deus, organizado por dona Pulú na comunidade Jataí, de Canápolis (BA), há mais de 40 anos. O senhor falou que ali há uma representação estética que “representa um parto”, simbolizando o nascimento do Menino Jesus. Como pensar o Natal neste contexto?
Cícero Félix de Sousa – Esta é uma interpretação poética, uma metáfora sobre a natureza da reza, que é praticada majoritariamente por mulheres – aliás, são elas, as mulheres, as mais reverenciadas nas orações, através de Maria. Daí comecei a enxergar na reza feita por aquelas mulheres a representação simbólica no trabalho de parto, na sua dilatação ritmada, no compasso das ladainhas, benditos e outras orações. As vozes soam como gemidos de dor. Elas suspiram, pedem graça, proteção. Seus corpos são instrumentos de outras consciências, vozes, seres e dores paridas da memória; são corpos inebriados pela subjetividade da poética sagracional.
Altar da Dona Pulú (Foto cedida pelo entrevistado)
IHU – No Altar da Dona Pulú, em que momento e como ocorre a celebração do nascimento do menino Jesus?
Cícero Félix de Sousa – Meia-noite. A reza começa por volta das 11h e termina quando o galo canta, exatamente à meia-noite. Eu sempre achei um barato esse imaginário que coloca o galo como o anunciador do nascimento – é curioso imaginar que o galo fica na espreita do tempo pra cantar na hora certa. Daí, depois da intervenção do galo – cujo canto parece real e encantado ao mesmo tempo –, as mulheres cantam alegres, entre foguetões e vivas. O Menino Jesus nasceu mais uma vez, como todo ano, para tornar a nascer de novo no ano seguinte, porque o “parto” desse Menino não cessa.
IHU – Dona Pulú dizia: “Eu vou rezar meu ofício, minha ladainha, minhas coisa – tem escrito tudo no livro, mas eu não sei negoçá assim não”. Até que ponto essas manifestações sagracionais se aproximam de ritos cristãos e a partir de que ponto operam sob outra lógica, muito mais “cosmológica”?
Cícero Félix de Sousa – Não há dúvida de que essas manifestações sagracionais tenham origem nos ritos cristãos. Algumas rezas como o Pai-Nosso, Ave-Maria, Credo e Salve-Rainha, que fazem parte dos ritos oficiais da Igreja Católica Romana, estão presentes nessas manifestações. Mas há também elementos das culturas afro-indígenas. Essas manifestações são feitas pelo povo e para o povo, independentes de qualquer orientação institucional religiosa. E o que tem valor, para essas pessoas, não é aquilo que está na letra, no texto, no livro. É a experiência da vida de seus ancestrais, de seus antigos, dos mais velhos. Por isso Dona Pulú dizia que não sabia se definir, pois era da ciência, da religião, “de tudo”.
IHU – Uma pergunta que pode parecer óbvia para quem vive no sertão, mas não é para as pessoas urbanizadas. Qual a diferença entre presépio, lapinha e altar?
Cícero Félix de Sousa – Presépio é uma estética mais urbana, integrada à cultura de massa. É um produto estilizado, geralmente formado por imagens de José, Maria, os reis, alguns animais e o Menino Jesus ao centro, na manjedoura. Uma cena estática.
Já a lapinha [imagem abaixo], primeiro: não é um produto, é algo que tem vida e dinâmica próprias. É montada em uma sala, no chão, com pedras, areia, miolos de barriguda (árvore típica do Cerrado) e centenas de objetos: de super-herói à miniatura de engenho de cachaça com tração animal; de pequenas calunguinhas a soldadinhos com rifles. Tem até campo de futebol. Tudo se mistura e é ressignificado ao contexto do festejo. É estruturada em torno de uma rampa que dá para uma lapa onde fica a manjedoura com o Menino Jesus. Ladeados pelos três reis magos, centenas de animais sobem a rampa em direção à gruta. A lapinha é inaugurada no dia 24/12 e a reza em sua volta dura até o dia 06/01. A cada dia que passa, animais e reis avançam sobre a rampa. Assim, a lapinha vai se movimentando, respirando, brincado, soluçando, gemendo. Até que no dia 6, após a chegada à gruta e visita ao Menino Deus, os reis pegam o caminho da rampa de volta, juntamente com os animais. Esse é o último movimento da lapinha.
Já o altar – e falo especificamente do de Dona Pulú e do de Malvina, sua filha, que herdou as sabenças sagracionais da mãe – é montado em uma pequena mesa e baús em um canto da sala. Rodeado de imagens e no centro da mesa, um pequeno quadro amarelado e de moldura gasta com o Menino na manjedoura. Nas laterais sobem folhas de coqueiro e de bananeira que formam um arco sobre a estrutura. Aí são pendurados os adereços natalinos com pisca-pisca, brilhos, cores e formas diversificadas [imagem acima].
Lapinha da Suely (Foto cedida pelo entrevistado)
IHU – O que são as “lapinhas cantadas” pelos grupos de reisados na noite de Natal?
Cícero Félix de Sousa – As lapinhas e altares do Menino Deus são manifestações atravessadas pelas folias de reis. Geralmente, no dia 24 de dezembro, dia do início das rezas, as casas que levantam lapinhas e altares são visitadas por grupos de reisados que prestam reverência ao Menino Deus após as rezas. Assim, diz-se que a lapinha, bem como o altar, foi rezada, cantada e sambada.
IHU – Como essas manifestações ressignificam os objetos do domínio religioso colonial?
Cícero Félix de Sousa – Quando essas pessoas assumem o protagonismo de manifestarem sua relação com o sagrado a seu modo, a sua cultura, a partir de suas ancestralidades, das sabenças orgânicas, elas estão ressignificando esse domínio religioso colonial.
IHU – Por que ao dizer que essas manifestações são “catolicismo popular” estamos cometendo um “eufemismo colonialista”?
Cícero Félix de Sousa – Quando eu digo que uma manifestação é do “catolicismo popular” eu estou enquadrando na categoria religiosa católica e na categoria cultural popular. Portanto, ao dizer que é catolicismo eu estou, no mínimo, negando outras religiosidades ali imbricadas. E, ao dizer que é popular, não estou apenas identificando o lugar cultural de seus fazedores, mas classificando a manifestação como algo menor.
É uma forma de afastar aquilo que é feito pelo pessoal do meio rural, daquilo que é feito por fiéis e sacerdote na igreja da cidade. É dizer: isso é oficial, aquilo não. No entanto, apesar de não reconhecer como uma manifestação oficial, a Igreja Católica Romana diz que se trata de catolicismo – específico, mas catolicismo. Isso me parece uma contradição conveniente, uma definição nada inocente. Por isso, deixei de usar a expressão “catolicismo popular”.
IHU – Vivemos em um tempo de guerras, solidão e mundo convulsionado. Diante esse cenário, qual seria a mensagem de Natal desde o Brasil profundo?
Cícero Félix de Sousa – Esses festejos celebram a vida. Rezar, dançar, cantar, se reunir para celebrar o sagrado é uma experiência mágica de suspender o céu. Segundo Ailton Krenak, suspender o céu é ampliar o horizonte existencial, é enriquecer nossas subjetividades, nossas visões e nossas poéticas sobre o viver, o existir. Essas pessoas ainda estão envolvidas na vida, e não des-envolvidas, des-conectadas, como diz Nego Bispo. Precisamos aprender com elas, com as sabenças dos antigos. E daí a filosofia do ideograma Adinkra de nome Sankofa nos ensina muito bem sobre isso. Antes de olharmos para frente, devemos voltar nossos olhos para trás. O futuro, se há futuro, só pode ser ancestral.