A diplomacia da Santa Sé poderia ser definida como “pastoral humanitária”

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06 Junho 2022

 

O Vaticano já não está mais intelectualmente armado o suficiente para analisar um conflito como o que está ocorrendo em solo ucraniano. Isso explica as ambiguidades do papa sobre o assunto, acredita o cientista político.

 

A posição do Papa Francisco sobre a guerra na Ucrânia não é facilmente interpretável. Por um lado, mostra o seu apoio a uma "Ucrânia martirizada", vítima de um "ato bárbaro e sacrílego", por outro lado denuncia os "latidos da NATO" na fronteira russa e recusa-se a designar claramente o agressor.

 

François Mabille é diretor do Observatório Geopolítico do religioso do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas. Dirigiu a obra “La Longue Transition du catholicisme. Gouvernementalité et influence", ed. Du Cygno, 2014, e é autor de “Catholiques et la paix au temps de la guerre froide”, ed. L'Harmattan, 2004.

 

A entrevista com François Mabille é de Gaétan Supertino, publicada por Le monde e traduzida do francês por Fine Settimana, 26-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Como você definiria a posição do Papa desde o início do conflito?

 

Eu diria principalmente pacifista. Por muito tempo, o Papa disse ser hostil a qualquer uso de armas (tanto do lado ucraniano quanto do lado russo), em coerência com o que foi afirmado em sua encíclica Fratelli tutti (2020). O parágrafo 258 também critica a própria noção de "guerra justa", considerando que a "guerra justa" ou a legítima defesa das forças armadas não é mais possível devido à natureza das armas.

 

Além disso, a posição do Papa é condicionada pelos interesses da Santa Sé. Claro, há a vontade de alcançar a paz. Mas há também a esperança de manter boas relações com o Kremlin em vista, por exemplo, de uma possível viagem papal à Rússia, e também de manter relações satisfatórias com o patriarca de Moscou, Kirill. A posição do Papa parece-me diretamente ligada a esse importante desafio para a política da Santa Sé.

 

Essa posição está em evolução, quando se olha para as últimas semanas. Estou pensando em particular em uma das recentes declarações do arcebispo Gallagher, secretário da Santa Sé para as relações com os Estados, que declarou em meados de maio na televisão italiana que "a Ucrânia tem o direito de se defender e precisa de armas para isso”, enquanto o Vaticano se recusa a aprovar as entregas de armas para o país. Há uma evolução nisso. Mas ainda estamos dois meses após o início do conflito. As primeiras declarações eram extremamente vagas. Por exemplo, quando o Papa denuncia o nacionalismo, no início de abril, isso pode ser percebido, do lado russo, como uma designação do nacionalismo ucraniano. Talvez não fosse a vontade do Papa. Mas a natureza muito vaga do discurso permitiu esse tipo de interpretação e foi criticado por muitos ucranianos.

 

Por que é importante que o Papa mantenha boas relações com a Rússia? Quais são os interesses do Vaticano?

 

Em primeiro lugar, há a vontade de obter a liberdade religiosa, a possibilidade de a Igreja Católica ter suas próprias estruturas, dioceses, bispos, enquanto a Rússia é majoritariamente ortodoxa e Vladimir Putin tem laços muito estreitos com o patriarcado. Esta primeira questão não diz respeito apenas à Rússia. É sempre o objetivo principal do Vaticano. E a esse respeito vemos que há uma espécie de indiferença por parte da Santa Sé em relação ao regime político dos Estados a que se refere.

 

A esse problema acrescentam-se aspectos mais a longo prazo, que conduzem ao diálogo ecumênico e à temática da unidade dos cristãos, que é importante pelo menos a partir do Vaticano II. Já sob João Paulo II a Igreja Católica desejava estar novamente presente na URSS e nos países satélites. Daí o desejo de manter boas relações com o patriarca de Moscou por parte do Papa Francisco e de seu predecessor.

 

Finalmente, a tudo isso se acrescenta outro elemento que é o da cooperação entre a Santa Sé e os Estados. Quando o Papa se encontra com líderes estrangeiros, propõe estruturar o diálogo em torno de três ou quatro grandes temas que lhe parecem ser temas de interesse comum e para os quais a Igreja Católica e as Igrejas locais poderiam ter um papel a desempenhar, no âmbito do meio ambiente, educação, luta contra a pobreza etc. Surge então o problema da natureza dos interlocutores que estão diante dela. Uma coisa é negociar com um Estado democrático, outra é manter um diálogo com o poder russo que, desde 2008, vive uma evolução segura para um regime autoritário, com leis que limitam partidos políticos, ONGs, liberdade de opinião, liberdade de imprensa.

 

Quando o arcebispo Gallagher foi à Rússia em 2021, ele encontra “boas discussões bilaterais” positivas e convergência de pontos de vista “no plano multilateral”, provavelmente na questão da proteção das minorias cristãs – que foi uma das justificativas de Putin para intervir na Síria. Podemos nos perguntar sobre os critérios ético-políticos do Vaticano para analisar a situação interna da Rússia e sobre os objetivos da política externa daquele país.

 

As declarações do Papa sobre os "latidos da OTAN" na fronteira russa resultaram em muita tinta... Como explicá-las?

 

Muitas vezes ele faz formulações desse tipo. Dizem que ele usa um italiano muito popular, quase uma gíria, um vocabulário extremamente “colorido”. Mas sobre aquele assunto, isso cria um problema. Diante de problemas tão graves como aqueles postos pelo conflito que causou milhares de mortes, quando se está à frente de uma das maiores religiões, de uma grande diplomacia, e que quer ser mediador, é possível emancipar-se até tal ponto da linguagem diplomática?

 

É uma pergunta que deve ser feita. O que é ainda mais surpreendente é a ausência de um quadro global de interpretação. Como esse conflito é analisado? Como uma guerra de agressão? Como uma guerra identitária? O uso de expressões como “guerra entre cristãos” [usada em 2015 pelo Papa a respeito da guerra na Ucrânia] é inadequado, confuso, deletério para a apresentação de uma análise clara da situação.

 

O fato de o Papa ser argentino muda alguma coisa sobre a situação? Sobre a OTAN?

 

Acho que é mais a experiência pessoal, a formação pessoal ou o interesse pessoal que um Papa tem com relação a esses problemas que explica a natureza de seu posicionamento. Se tomarmos o exemplo de João Paulo II, é certo que o fato de ser polonês e ter vivido sob o totalitarismo soviético lhe deu maiores facilidades para entender o regime soviético por dentro, e isso também despertou um interesse direto pelas relações internacionais. O Papa Francisco “entrou” nas relações internacionais através do tema, certamente importante, dos migrantes, que se tornou o carro-chefe de seu pontificado. Sem dúvida, ele atualmente descobre a realidade persistente da guerra com o conflito na Ucrânia.

 

Podemos falar de ingenuidade?

 

Prefiro dizer que é um esquecimento do trágico. Houve um esquecimento da não obsolescência da guerra. Isso certamente levou a uma falta de investimento intelectual, de reflexão sobre como a Igreja Católica poderia se posicionar diante de tal conflito. Surge uma questão, que não é exclusiva da Santa Sé: qual é o grau de conhecimento de um chefe de Estado sobre as relações internacionais?

 

O Papa Francisco tem uma forma muito particular de se posicionar, dando uma importância excessiva às migrações. E essa abordagem é certamente feita em detrimento de outras, por exemplo, de uma reflexão sobre a guerra justa ou sobre uma análise aprofundada das instituições internacionais, ou ainda sobre os regimes políticos. Na encíclica Fratelli tutti, o parágrafo dedicado à guerra é curto, bastante ambíguo.

 

Que impacto tem essa abordagem na diplomacia da Santa Sé?

 

Há inegavelmente uma abordagem pacifista e não geopolítica no Papa Francisco, que se manifesta tanto em algumas de suas declarações e, sobretudo, em uma prática que poderia ser definida como "pastoral humanitária".

 

Ou seja, em situações de crise, por exemplo, mesmo durante a pandemia, observa-se que a Santa Sé age um pouco como uma ONG, enviando alimentos, roupas, promovendo corredores humanitários etc.

 

Mas a guerra na Ucrânia mostra muito bem que o problema militar permanece sempre importante. Estamos agora perante uma sociedade internacional de risco, onde as questões de preocupação são muitas, multíplices, por vezes correlacionadas e associadas, mas que merecem uma abordagem global. É essa abordagem global que me parece faltar hoje à Santa Sé. Uma deficiência agravada pelo fato de que o conflito envolve um estado "nuclear".

 

E a última verdadeira reflexão da Igreja Católica sobre a energia nuclear remonta à crise dos euromísseis [um episódio tenso da Guerra Fria provocado pela instalação de mísseis soviéticos em 1977], no início dos anos 1980, período em que assistimos a uma grande divisão entre os católicos. Isso incide na dificuldade contemporânea da Igreja em ter um pensamento claro sobre o assunto.

 

O Papa agora expressa seu apoio à Ucrânia, pressiona o embaixador russo no Vaticano, pede para ver Putin... Ele pode desempenhar um papel no conflito?

 

O Papa Francisco dá muita importância às relações interpessoais, ele quer resolver a situação em uma relação de pessoa para pessoa. Diante da urgência da situação, há a - boa - vontade de que a Igreja possa ser mediadora. Mas ela está, muito claramente, dissociada de uma compreensão clara das condições de uma mediação de sucesso nas relações internacionais, sobretudo para um protagonista religioso.

 

Nesse sentido, o "gesto" papal e a diplomacia sem bússola da Santa Sé parecem um pouco leves em comparação com a natureza dos interlocutores e também com a das apostas em jogo.

 

 

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