“Estamos em uma crise civilizatória que começou antes da pandemia”. Entrevista com Raúl Zibechi

Fonte: Flickr CC

20 Janeiro 2022

 

O jornalista e pesquisador uruguaio Raúl Zibechi recorda a seguinte ideia do Subcomandante Marcos, formulada em 2007: “As grandes transformações não começam de cima, nem com fatos monumentais e épicos, mas com movimentos pequenos em sua forma e que aparecem como irrelevantes para o político e analista de cima”.

 

Zibechi também extrai uma lição do poeta grego Konstantinos Kavafis, autor de Viaje a Ítaca: “O importante é caminhar, muito mais do que chegar a alguma meta”.

 

O escritor montevideano compartilha essas reflexões na introdução do livro coletivo Tiempos de colapso III: Construcción y luchas de pueblos en resistencia, publicado em 2021 (Baladre/Zambra) e coordenado por Aida Morales Franco, Manolo S. Bayona e Raúl Zibechi.

 

A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 13-01-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Os Estados não fazem mais parte da solução, porque são um dos problemas que enfrentamos”, afirma na introdução do livro. Significa um avanço a vitória de um candidato de esquerda – Gabriel Boric –, nas eleições presidenciais do Chile (dezembro 2021), sobre o ultradireitista e admirador de Pinochet José Antonio Kast?

 

O debate se concentra no que Boric pode fazer em relação aos temas cruciais do Chile: a insurgência mapuche, a monocultura extrativista de pinus, a crise hídrica, o sistema privado de pensões e de saúde, para citar apenas alguns. Minha convicção é que não haverá mudanças estruturais, o modelo continuará sendo o mesmo, como aconteceu em todos os países com governos progressistas. Em nenhum foram alcançadas mudanças, pelo contrário, a mineração a céu aberto, as monoculturas de soja e a especulação imobiliária se aprofundaram.

Por outro lado, os governos progressistas fragilizam os movimentos e povos, e isso também é constante em todos os casos. Aprofundamento do capitalismo neoliberal e enfraquecimento dos movimentos. Depois, quando é necessária a mobilização para frear a direita, as pessoas estão desorganizadas e, pior ainda, confusas.

Mas também é possível escolher outro cenário, outra visão: se Boric não vence, a ultradireita vence. Aqui, há dois aspectos que devem ser considerados. Por um lado, impedir que a ultradireita vence é importante, mas, por outro, o preço não pode ser a desmobilização, nem desarmar as centenas de assembleias territoriais que nasceram durante o protesto chileno.

 

No contexto das últimas revoltas na América Latina (Chile, Equador, Peru, Bolívia, Nicarágua, Haiti e Guatemala), por que destaca o protesto social na Colômbia, iniciado em abril de 2021?

 

Porque é o país onde não havia revoltas urbanas desde o assassinato de Jorge Eliecer Gaitán, em 1948. Na Colômbia, sempre governou a oligarquia latifundiária, não houve reforma agrária e as lutas sempre estiveram concentradas em áreas rurais. Desde 2019, pouco antes da pandemia, e sobretudo desde 28 de abril de 2021, o centro da luta passa a ser a cidade.

Acredito que as principais organizações colombianas continuam sendo rurais, camponesas, indígenas e negras, mas agora se consolida um forte ativismo nas periferias urbanas, com uma enorme criatividade cultural e social, com capacidade de abrir espaços na urbe como aconteceu em Cali com a criação de 25 “pontos de resistência”.

Acabamos de publicar um livro com companheiros do grupo Kavilando, de Medelín, e Desde Abajo, de Bogotá (Entre la rebeldía y la esperanza), um livro coletivo, onde são reunidas as grandes criações da base, durante mais de três meses.

 

Em que consiste e que importância - material e simbólica – atribui ao Movimento à Resistência, estabelecido em junho de 2021, em Santiago de Cali?

 

Porque aparece o ativismo juvenil, feminino e negro, que se entrelaça com a Guarda Indígena Nasa que foi a Cali para se solidarizar com os pobres da cidade. Tal aliança dará muito o que falar a longo prazo, já que os indígenas podem contribuir com a organização urbana, que é onde a repressão atua de forma mais impiedosa.

Cali é uma cidade mestiça. Metade da população é afrodescendente e vive nas piores condições em bairros segregados do resto da cidade. Cali foi uma cidade industrial e agora não pode oferecer futuro a essa metade pobre e negra, de modo que estamos diante de um ativismo que toma consciência de que ou luta ou é levado pela repressão. Porque essa é a alternativa real.

Durante a revolta, esse setor se entrelaça com jovens de classes médias com formação universitária e criam coisas maravilhosas. Nos pontos de resistência, surgem bibliotecas populares em locais onde funcionava o policiamento de proximidade, surgem espaços e lazer, de arte, dança, música, gerados por eles e elas, porque a presença de mulheres é muito alta. Os pontos de resistência tiveram forte apoio do bairro. Moradores abriram suas portas a jovens para que usassem seus banheiros, sabendo que muitos deles estiveram na prisão por pequenos roubos.

Quero dizer que se deram relações comunitárias, durante algumas semanas, que foram enormemente criativas, como o fabuloso antimonumento Resiste. A revolta destruiu e criou ao mesmo tempo, derrubou a estátua de Belalcázar, fundador da cidade, e ergueu outra com base no trabalho coletivo.

 

Após os meses de crise pela COVID-19, “observamos que os levantes dos povos mais importantes estão sendo reconduzidos para o redil eleitoral”, escreve. Por exemplo?

 

Chile, Colômbia, entre os mais recentes. Parece-me que isso é inevitável, já é um padrão nas lutas sociais. As grandes revoltas deslegitimam os governos e as pessoas, naturalmente, buscam uma mudança de governo. Não se trata de julgar, mas de entender. Os povos precisam fazer essa experiência e isso é algo que não podemos criticar.

Pessoalmente, a única coisa que digo é que não esperem muito desses governos, que o principal é estar organizados, porque o sistema não solucionará seus problemas. Estamos em um período em que “só o povo salva o povo” e para isso precisamos estar organizados.

 

Que experiências de solidariedade, intercâmbio e auto-organização popular destacaria na América Latina, durante a pandemia? Que conclusão extrairia dessas iniciativas?

 

Muitas. Por um lado, há movimentos formais, instituídos, como o indígena do Cauca colombiano, os sem-terra do Brasil, a CONAIE do Equador, em geral, os mais fortes são indígenas e camponeses, em todo o continente. Mas vão nascendo coletivos de novo tipo, tanto urbanos como rurais, que têm menos visibilidade, mas muita força.

Interessa-me destacar a União de Trabalhadores da Terra (UTT), na Argentina, milhares de famílias rurais-urbanas que cultivam alimentos e os distribuem pelos canais próprios. A Teia dos Povos, no Brasil, uma aliança de comunidades negras, indígenas e camponesas que nasce na Bahia e agora está em todo o país. Até os movimentos menos estruturais, como as centenas de assembleias territoriais no Chile, as ollas comunes [cozinhas comunitárias] no Uruguai, Chile e Paraguai, entre muitas outras experiências notáveis.

Ainda menos visíveis são os governos autônomos como o wampis e o awajún, que se formaram no norte do Peru, assim como outros processos de autonomia, do mapuche aos amazônicos, que vão em uma direção semelhante ao do zapatismo, que continua sendo a principal referência da corrente autonomista.

Minha principal conclusão é que nós, dos setores populares, devemos nos ajudar, porque os de cima não farão isso. Por isso, acredito firmemente na orientação para a autonomia e o autogoverno.

 

Em que consiste o “aprofundamento no enraizamento territorial” das experiências, no caso dos movimentos sociais europeus?

 

Desde a crise de 2008, vejo a desenvolvimento de hortas urbanas, de centros sociais e culturais, de espaços recuperados. Barcelona, em particular o bairro de Sants, é uma referência absoluta, onde coexistem dezenas de cooperativas com sindicatos de moradia e uma enorme fábrica recuperada como Can Batlló.

Mas conheço uma estância Sin Patron perto de Florença, fábricas recuperadas em Atenas e Milão, dezenas de iniciativas de espaços comuns e até um bairro inteiro recuperado, como Errekaleor, em Vitoria-Gasteiz. Surgiram, além disso, edifícios “alternativos” e sustentáveis, como Entrepatios, em Madri. Digo que o “outro mundo” continua sendo pequeno e minoritário, mas já não é marginal, nem na América Latina, nem na Europa.

 

Em seu artigo, alerta sobre um presente atravessado pela confusão, além do desespero, medos e angústias que podem levar a ‘saídas’ individualistas ou a uma busca de segurança no fascismo. Nessa reflexão, incluiria a militância dos movimentos sociais?

 

Pode ser, embora eu pense muito mais na população não organizada. No México e na Colômbia, há organizações sociais que agora atuam como paramilitares, e isso é um triunfo da política contrainsurgente. Por outro lado, há muitas organizações que foram cooptadas pelo Estado e podem derivar em apoio a saídas de ultradireita. Mas ainda é muito cedo para poder fazer uma análise.

 

Por último, considera que a humanidade está diante de uma crise civilizatória? (como consequência da chamada gripe espanhola de 1918, morreram de 20 a 40 milhões de pessoas).

 

Tudo é relativo. Em dois anos, morreram 5,5 milhões pela Covid. Mas todos os anos morrem 7 milhões pela poluição do ar e outros 4 milhões pela água contaminada. Ou seja, penso que é preciso relativizar tanto a gripe espanhola como a pandemia de Covid que, efetivamente, é muito prejudicial, mas não devemos esquecer os outros graves problemas.

Penso que estamos diante de uma crise civilizatória que começou antes da pandemia e que agora se aprofundou, que tem vários eixos, mas o principal é a desigualdade, de poder e de renda. Mas também não quero salvar uma civilização que é patriarcal, capitalista e colonial/racista, e que é a que provocou essa pandemia.

 

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