Educar para uma fé adulta. Entrevista com Carlo Molari

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02 Outubro 2021

 

“A realização das coisas e a sua evolução não requerem intervenções visadas de Deus, pois o potencial de desenvolvimento das coisas já está inscrito na sua própria natureza. Deus não faz as coisas, mas faz com que as coisas se façam.”

Publicamos aqui a segunda parte do diálogo entre Mariano Borgognoni – professor do Instituto Teológico de Assis e ex-presidente da Província de Perugia – com Carlo Molari – teólogo italiano, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana, em Roma.

 

A primeira parte pode ser lida aqui.

 

A entrevista foi publicada por Rocca, n. 19, 01-10-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Pe. Carlo, é conhecido o seu lugar na perspectiva evolutiva do tempo traçada pelo pensamento científico. Mas você não vê nela também o risco de remover o problema do mal, verdadeiro punctum crucis, de grande parte da reflexão teológica, pelo menos desde Agostinho, e de toda teodiceia? Qual é a sua resposta ao problema do mal, mesmo dentro dos próprios mecanismos da natureza, além do mal imputável à escolha dos homens e mulheres? E qual o sentido da encarnação em uma perspectiva evolucionista?

Na perspectiva evolutiva, a perfeição não está no início da criação, mas se situa no término de um processo ao longo do tempo, que é necessário para que a criação desenvolva as estruturas que possam acolher progressivamente os fragmentos daquela Perfeição que a ação de Deus continuamente oferece. Portanto, é um processo no qual a imperfeição, o limite, em outras palavras, o mal está destinado a acompanhar o ser humano e toda a criação no caminho rumo ao cumprimento.

Essa perspectiva, à qual as descobertas científicas deram um impulso decisivo sobretudo a partir de meados do século XIX, encontrou uma acolhida cada vez maior no pensamento teológico, porque evidenciou um dado estrutural ineliminável: o limite da criatura que, por si só, não permite que o ser humano e a criação acolham toda a plenitude do dom de Deus, ao qual são sempre chamados, mesmo que por meio de um caminho de desenvolvimento das estruturas necessárias.

 

 

É preciso esclarecer bem que não se trata de um limite da ação de Deus (do tipo “se apenas Deus quisesse, Ele poderia...”), mas da própria natureza do objeto da criação. Assim como dizemos que Deus não pode fazer que um círculo seja quadrado, da mesma forma, ao criar, Ele só pode criar criaturas (um pouco como dizer que Deus, ao criar, não pode criar outro Deus).

As consequências de tudo isso já são claras: como dito, o limite, o mal está intrinsecamente conectado ao nosso estado de criaturas, desde sempre é assim e sempre será assim, embora com níveis e dinâmicas destinadas a evoluir, estas também, com o progresso da humanidade.

O mal, portanto, não é uma insurgência indevida que ocorreu por culpa de alguém, e a morte não é um destino ao qual não estávamos originalmente sujeitos: tudo isso não tem lugar nas evidências científicas hoje disponíveis e, agora, nem mesmo nos modelos culturais que se afirmaram. Foi isso que levou Teilhard de Chardin a afirmar que o problema do mal, teoricamente, para a razão, está resolvido. E ainda: os nossos males são o preço e a própria condição de um cumprimento universal.

 

Resta entender como enfrentar o problema do mal, do sofrimento, da injustiça na vida de todos os dias. Enfrentado o nó teórico, ele permanece no plano existencial e prático.

Se o que eu disse é verdade do ponto de vista teórico, do ponto de vista existencial, o problema de como enfrentar o mal e a carga de sofrimento e de injustiça que o acompanha – e que, em todo o caso, deve ser “carregado” pois, como vimos, é um dado ineliminável da nossa condição de criaturas – permanece e deve ser enfrentado. É um aspecto que devemos considerar em todas as suas articulações de mal causado e de mal sofrido, de pecado, isto é, de mal consciente, mas também de mal inconsciente, portanto também para além da dimensão sacramental da reconciliação.

O desenvolvimento da vida espiritual, de fato, requer um reconhecimento radical do mal e um trabalho para eliminar pela raiz, ou pelo menos colocar sob um certo controle, também aquelas reações inconscientes, aquelas atitudes que se tornaram habituais e aqueles comportamentos que são hábitos pelos quais não nos sentimos responsáveis, mas que, em todo o caso, induzem e difundem a negatividade ao nosso redor.

 

 

É ao trabalho interior que nos confiamos para conseguir carregar o mal, a injustiça, o sofrimento, a fim de continuar sendo manifestações da ação de Deus em nós e de não trair a mensagem da qual queremos ser testemunhas, continuando a amar e a oferecer dons de vida na dificuldade das relações, nas garras do sofrimento, na angústia da injustiça, na tristeza do progressivo envelhecimento que nos debilita.

Porque sabemos que o dom de Deus sempre nos é dado, que a cada dia podemos nos tornar capazes de uma novidade de vida que ontem não conhecíamos, se a isso nos abrirmos com confiança para torná-la, de nossa parte, um dom para quem está perto de nós. Todos os dias, assim, consolidamos os frutos colhidos no nosso passado, alimentamos a nossa esperança e nos preparamos para acolher os dons que chegarão, confiantes de que nem a morte, nem a vida, nem qualquer outra criatura jamais poderá nos separar do amor de Deus (Rm 8,38-39). É assim que, dia após dia, cresce a vida em nós, até a meta última na qual nos tornaremos vivos, porque a Vida, de uma forma que nem sequer conseguimos imaginar, finalmente se tornará nossa.

 

 

Sempre achei muito original e interessante a perspectiva a partir da qual você abordou o problema da salvação e da vida após a nossa morte física. Mas todos seremos salvos porque a misericórdia de Deus é grande, ou alguns ou mesmo muitos se perderão? Talvez não na impensável eternidade do inferno imaginada por um deus malvado...

Nós não sabemos em que consiste a vida nova, aquela que nos espera como cumprimento ao término desta existência. As expressões que normalmente utilizamos – ressurreição, subida ao céu, paraíso e inferno – serviram às primeiras comunidades cristãs para expressar a grande e profunda experiência de fé que a vida e o ensinamento de Jesus suscitaram nelas e nas suas comunidades.

Para expressar a permanência neles da esperança de uma vida além do presente, eles não podiam ter outra linguagem senão a da ressurreição do corpo, da subida ao céu e do iminente retorno de Jesus. Em tudo isso, nós devemos ver a tentativa para nos contar e nos transmitir uma experiência de fé profunda, não a sucessão de eventos históricos que, entre outras coisas, não correspondem exatamente entre os diversos autores.

Nós hoje temos conhecimentos, referências culturais e linguagens muito diferentes; por exemplo, sabemos que, depois da morte, o corpo está destinado a se dissolver no ambiente. É necessário, então, que desenvolvamos, mediante o trabalho interior, um nível de vida espiritual, isto é, de consciência, de capacidade de doação, de desapego das coisas, que permita ao nosso espírito entrar na nova dimensão da vida e, assim, alcançar o cumprimento, o nome escrito nos céus de que Jesus fala, ou seja, a nossa definitiva identidade de filhos de Deus.

A pergunta que surge, assim, é o que ocorrerá caso não se chegue a desenvolver a nossa dimensão espiritual. A resposta só pode ser o desaparecimento da existência, uma tentativa de vida que não se enraizou e não chegou a bom termo. Certamente, é uma posição opinável, mas acredito que valoriza a história e lhe dá um sentido.

 

 

E a própria imagem que nós criamos de Deus ou que está presente dentro da própria Escritura não deve ser posta em discussão? Não há muitos, demasiados elementos antropomórficos? E a teologia, acima de tudo, não deveria talvez destruir as falsas imagens de Deus? O que você acha da reflexão de muitos teólogos cristãos que estão desenvolvendo um pensamento pós-teísta?

É inevitável que, de algum modo, se forme em nós uma imagem de Deus. Ou, melhor, ela é necessária, porque, caso contrário, sequer poderíamos pensar em Deus, nem consequentemente falar d’Ele. Os próprios mecanismos da nossa mente precisam disso.

Dito isso, é inevitável, além de necessário, que o nosso processo de crescimento cultural e o desenvolvimento da nossa experiência de fé ao longo do tempo nos façam mudar a ideia que temos de Deus: nenhum de nós tem mais a imagem que dele tínhamos quando criança. E não há dúvida de que essa mudança que ocorre em nível individual deve se refletir na imagem que é proposta em nível de comunidade eclesial.

A imagem antropomórfica de um Deus voltado a observar as vicissitudes humanas e a intervir é certamente inadequada, tanto pelo nível alcançado pela reflexão teológica hoje, quanto pelas intuições que se enraizaram em visões bem mais consoantes de Deus séculos atrás, no coração da própria tradição cristã.

De fato, a realização das coisas e a sua evolução não requerem intervenções visadas de Deus, pois o potencial de desenvolvimento das coisas já está inscrito na sua própria natureza. Deus não faz as coisas, mas faz com que as coisas se façam.

Trata-se de um modelo que surgiu de uma intuição profunda, de Tomás e em parte já prefigurada em Agostinho, presente há séculos na tradição cristã, embora não tivesse a força para se afirmar em relação ao modelo bíblico tradicional e consolidado. Porém, é um modelo que agora obtém da perspectiva evolutiva um elemento fundamental de apoio e situa a imagem de Deus ainda mais longe de qualquer representação antropocêntrica que possa ser dada dela.

 

Em uma parte da sua obra, você fala dos desafios do pensamento ateu. Pode explicar-nos como, na sua opinião, é possível responder a eles e dar razões credíveis para a esperança que há em nós? Em suma, como ter uma fé adulta que não fuja das perguntas?

O pensamento ateu merece uma grande atenção por parte do teólogo. Mesmo quando acabamos discordando, o fato é que a emergência de novos dados científicos só pode aportar novos desenvolvimentos que lançam mais luz sobre a criação e sobre a história.

A dificuldade de interação com o pensamento ateu reside totalmente no que diz respeito à transcendência, ao fim último das coisas e às razões da nossa esperança, e depende do fato de que, se cremos em uma Força que nos transcende e que desperta em nós o conhecimento da verdade e do amor, é porque nós experimentamos essa força na nossa vida.

Trata-se de uma experiência de novidade que, embora veiculada por aquilo que está ao nosso redor, vai além e nos indica um além. E é a experiência que fazemos todos os dias que nos faz crer que nem tudo é uma ilusão, mas sim a resposta a uma ordem maior do que o mundo, que nos chama e à qual sentimos que queremos corresponder com tudo o que somos.

 

Dentro do horizonte planetário de que você fala, como Jesus pode ser para nós hoje a raiz de fundo da nossa fé, a razão da nossa esperança, a ancoragem firme que nos faz dizer “se não tivéssemos a caridade...”?

Jesus, que crescia em sabedoria, idade e graça (Lc 2,52) e foi constituído Filho de Deus em virtude da ressurreição dos mortos (Rm 1,4), também nos indica, com a sua vida humana, a sua fé, a sua oração, o caminho que somos chamados a percorrer hoje.

Como à época, é com o silêncio e a oração que podemos chegar a uma compreensão profunda das necessidades da humanidade e do mundo hoje; necessidades que são diferentes das do tempo de Jesus e que requerem respostas novas para problemas que, por si sós, são de uma amplitude até agora desconhecida na história.

Este é o caminho que Jesus traçou: chegar a nos abrir ao Verbo eterno, a ponto de poder dizer, com ele, “eu o Pai e eu somos um” (Jo 10,30); o que não deve ser entendido em sentido ontológico, mas no significado operacional de: as obras que eu faço, os pensamentos que eu desenvolvo, o amor, o perdão, os dons que eu ofereço não são meus, mas do Pai.

Porque é nesse abandono confiante e total a Deus que Jesus chegou a compreender o caminho, embora trágico e doloroso, que ele devia percorrer para permanecer fiel e dar testemunho do amor de Deus que salva.

Nós vivemos em circunstâncias muito diferentes. Devemos, portanto, encontrar caminhos novos para chegar a testemunhar o mesmo amor de Deus. Não são as obras de Jesus que somos chamados a imitar hoje; nós devemos assumiu o seu sentimento em relação ao mundo, a sua atitude e a sua disponibilidade à escuta, o seu modo de se relacionar com os irmãos com compaixão e misericórdia, o seu convencimento da necessidade de uma conversão e de uma oração contínua, a sua confiança no Reino que vem, o seu abandono total nas mãos do Pai que cresceu nele na oração e na fidelidade em todas as circunstâncias: ele aprendeu a obediência a partir daquilo que sofreu (Hb 5,8).

E é esse mesmo abandono confiante em Deus, mesmo nas circunstâncias mais negativas como a cruz, que, hoje como então, alimenta a nossa capacidade de acolher a sua ação em nós.

Assim, podemos chegar à oferta daqueles dons de amor e de reconciliação hoje exigidos: essa é a nossa esperança de contribuir, desse modo, com o caminho da humanidade rumo ao Reino ao qual é chamada. Jesus mesmo nos diz que isso é possível: “Quem crê em mim também fará as obras que eu faço e fará maiores do que estas” (Jo 14,12), palavras que permanecem em nós como o fundamento da nossa esperança e do nosso compromisso de identificar as novas formas de fraternidade hoje necessárias para o próprio futuro da espécie humana.

Só assim nós, a exemplo de Jesus, permitimos que o Verbo continue se encarnando, isto é, se fazendo progressivamente carne em nós, aquela carne que oferecemos como “ato sagrado”, sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, como diz Paulo em Rm 12,1.

 

Obrigado, Pe. Carlo, essa sua contribuição será preciosa para a nossa reflexão e a dos nossos leitores, e continuará sendo, como tem sido nestas décadas de fiel colaboração com a revista Rocca, um estímulo para pensar e viver a fé no contexto e no tempo da nossa existência. E das perguntas novas que ele nos dirige.

 

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