A espiritualidade é uma sinfonia. Entrevista com Carlo Molari

Foto: Pixnio

30 Setembro 2021

 

“Caro Pe. Carlo, em primeiro lugar, gostaria de lhe dizer uma palavra de gratidão em nome da revista Rocca e dos seus leitores, que apreciam, há tantas décadas, a sua voz livre e fiel, corajosa e profética. E obrigado também por este livro que reúne tantos aspectos da sua reflexão humana, teológica e espiritual, 'Il cammino spirituale del cristiano, la sequela di Cristo nel nuovo orizzonte planetario' [O caminho espiritual do cristão, o seguimento de Cristo no novo horizonte planetário, em tradução livre] (Verona: Gabrielli Editori, 2020, 555 páginas).

 

Publicamos aqui o diálogo de Carlo Molari – teólogo italiano, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana, em Roma – com Mariano Borgognoni – professor de Sociologia no Instituto Teológico de Assis e ex-presidente da Província de Perugia, na Itália.

 

A conversa foi publicada por Rocca, n. 18, 15-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Na primeira parte, você aborda o grande tema do exercício interior e da importância do silêncio. Dois termos-chave, hoje tão decadentes, nas nossas sociedades tão atentas e obcecadas pela aparência e tão assustadas pela solidão e pelo silêncio. O que significa, nesse contexto, exercita-se no silêncio e na vida interior? E também como fazer isso? Onde fazer isso?

 

Hoje, há um interesse generalizado pelos temas da espiritualidade. Ora, a vida do espírito, para poder se desenvolver, requer duas condições bem específicas: a consciência da própria dependência em relação a uma força que está fora de nós e que é maior do que nós, e o desejo de uniformizar a própria existência a ela. Não nos movemos exclusivamente no nível das religiões e da fé, mas, mais em geral, no nível de todos aqueles valores de justiça, solidariedade, honestidade, aos quais muitos sentem que devem dedicar a própria vida.

 

O silêncio é a condição na qual é possível entrar em contato consigo mesmo de uma forma profunda, deixando de fora o ruído que enche a nossa mente e sobre o qual não exercemos nenhum controle nos nossos dias. É o ruído dos pensamentos e dos estados de espírito que nos são induzidos pela interação cotidiana com o mundo, pelas ilusões e pelos ídolos em que nos aninhamos, pelos hábitos do passado que nos levam a comportamentos fora do nosso controle.

 

É somente no silêncio que se pode realizar o trabalho espiritual, que é introspecção profunda, recuperação do passado e abertura para acolher as novidades que a Vida nos oferece. É um exercício com o qual vamos modificando concretamente as conexões cerebrais que a vida anterior, desde a mais tenra infância, construiu em nós sem que tivéssemos consciência disso.

 

Para o cristão, tudo isso tem um fundamento sólido: a consciência da Ação criadora continuamente em ação em nós, com a oferta de novos dons de vida a serem acolhidos. Não podemos saber com certeza quais serão, nem quando se manifestarão, mas sabemos que estamos em um processo de aquisição de fragmentos de perfeição que, pela nossa natureza criada e necessariamente limitada, só podem ocorrer progressivamente ao longo do tempo.

 

A fonte de tudo isso é o contexto das relações no qual a pessoa está inserida, pois a relação é o âmbito no qual a ação criativa se manifesta com aquela oferta de dons de vida que devem ser acolhidos e compartilhados. A relação está no centro desse intercâmbio de dons recíprocos, porque não há outra forma de a ação de Deus se manifestar, senão por meio das criaturas.

 

De fato, a ação de Deus só pode se manifestar na Criação como ação das criaturas que a acolhem e fazem dela um dom. Deus não intervém de fora, não acrescenta nada além do que as criaturas podem aportar para o âmbito da existência delas e do mundo; mas toda a Perfeição é continuamente oferecida à criatura para ser acolhida ao longo de um caminho que só pode ser progressivo.

 

Tudo isso pode ser bem resumido na feliz expressão de Teilhard de Chardin: Deus não faz as coisas, mas oferece às coisas a possibilidade de se fazerem. Ou, analogamente, do Papa Francisco na Laudato si’ no número 80: “O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo”.

 

Por fim, é necessário reafirmar o valor concretamente transformador da experiência do silêncio que, por isso, é constitutivo daquele caminho que nos leva, em termos cristãos, a nos tornarmos filhos de Deus, isto é, a haurir a nossa plena humanidade. É um exercício que envolve as nossas energias, é invocação, é oração que nos faz nos tornarmos quem somos.

 

E é por isso que nós rezamos: não para pedir a Deus que faça algo no nosso lugar, mas para pedir a Deus que nos torne capazes de fazer aquilo que a vida hoje nos pede.

 

Outro tema essencial é a especificidade da espiritualidade cristã e a sua relação com outras espiritualidades religiosas ou seculares. Quais podem ser os caminhos comuns e também um enriquecimento recíproco? Henri Bergson falava da exigência de um “suplemento da alma” dentro da iminência, na época, da sociedade hipertecnológica. Como você lê essa exigência, que pode até ser conjugada em termos políticos?

 

Nós, seres humanos, totalmente imersos na dimensão do espaço e do tempo, não temos as categorias existenciais, antes ainda que mentais, que nos permitam conhecer a Deus, pois ele é radicalmente diferente de nós e de tudo o que podemos experimentar diretamente.

 

Porém, nós experimentamos os pensamentos, os sentimentos, os desejos, os anseios, as intuições que a vida e as suas manifestações, na história dos seres humanos e do universo, suscitam em nós e desde sempre suscitam na humanidade. E é a partir desse patrimônio de experiências que, na história da humanidade, se desenvolveu progressivamente a consciência de um além, de uma força que nos transcende, mas cujos reflexos podemos entrever nos eventos da história dos seres humanos e das criaturas. Algo que definimos como “infinito”, com um termo derivado da nossa experiência da dimensão do espaço, e “eterno”, com referência a uma dilatação ilimitada do tempo, para dizer a sua excedência em relação a qualquer conotação humanamente concebível.

 

Isso faz com que nenhuma experiência humana seja, por si só, capaz de esgotar o seu conhecimento: o mistério de Deus é, e continuará sendo, o que é para toda expressão da experiência humana, inclusive a experiência espiritual, que, no entanto, se situa no ápice da experiência existencial da humanidade e da qual as religiões históricas são uma emanação.

 

Mas qual é a parte específica que cabe aos cristãos, à sua espiritualidade, ao fato de serem aqueles que tentam seguir Jesus ao longo dos caminhos da vida?

 

A experiência cristã, a partir desse ponto de vista, não abre exceções: ela não pode, por si só, esgotar o mistério de Deus ou, em outras palavras, não pode haurir da Verdade plena.

 

Nisso, ela se situa dentro da “sinfonia” das espiritualidades humanas, à qual cada uma aporta aqueles elementos específicos de verdade, experiências vitais e conquistas do espírito que o próprio percurso histórico-cultural pôs em foco e que, nas outras, encontraram uma proeminência menor ou diferente.

 

O porte específico da espiritualidade cristã consiste na tensão teologal em relação a um Deus pessoal (nisso em sintonia também com outras religiões) e no fato de ter o olhar fixo em Jesus, isto é, no acontecimento que, para os cristãos, representa o ponto culminante da manifestação da ação de Deus na história.

 

Essa é a especificidade da espiritualidade cristã: a ação de Deus que se manifesta na história – daí o grande valor do tempo como um processo real no qual a presença de Deus se desdobra, uma sucessão de passos nos quais os fragmentos da perfeição divina são adquiridos – por meio da acolhida do ser humano que a ela se abre e assume, segundo o modelo de Jesus que deu o seu testemunho supremo na cruz e a atestação mais alta na ressurreição.

 

A vida de Jesus é a expressão suprema da acolhida do Verbo eterno que se desdobra ao longo de toda a existência, que se alimenta na oração contínua – a sua retirada para um lugar deserto e a sua oração (Mc 1,35) – até ao drama final da dilaceração interior no Monte das Oliveiras, à aceitação do trágico destino a que a rejeição dos homens o tinha condenado e ao testemunho último daquele amor de Deus que salva, por meio do perdão.

 

Essa é a contribuição que todos nós, especificamente como cristãos, trazemos como dom à humanidade: o perdão de Jesus na cruz, que é reconciliação vital com o nosso mal que se consubstancia na oferta de perdão pelo mal alheio.

 

Essa é a parte da partitura que a espiritualidade cristã toca na sinfonia das espiritualidades do mundo, enquanto outras tocam partes diferentes que enriquecem a espiritualidade humana com outras contribuições, também necessárias para fazer crescer a compreensão da ação de Deus no mundo que nós podemos ter e, portanto, a profundidade da experiência que dela podemos fazer. Um enriquecimento para a humanidade e para todos nós.

 

Daí nasce a convicção, por parte de diversos teólogos e que eu compartilho, da importância do diálogo com as outras grandes tradições espirituais e as religiões históricas da humanidade, pois cada uma é depositária de porções de verdade que, no conjunto, enriquecem a nossa própria experiência de fé.

 

Pe. Carlo, não se corre o risco de uma queda no sincretismo e no relativismo, admitindo-se, é claro, que são riscos a se evitar? Como você vê isso?

É preciso esclarecer que a participação nesse diálogo só pode ocorre a partir da e com base na própria tradição, precisamente porque tudo o que temos para dar aos outros não é senão os frutos maduros da nossa tradição. Que, também, está destinada, pelo debate, a alcançar novos níveis de aprofundamento e de compreensão de si mesma, e, portanto, para se enriquecer também dentro do seu próprio sulco e da sua direção.

 

Portanto, não sincretismo, mas diálogo e enriquecimento recíproco, pois a comunhão fortalece as várias identidades, precisamente porque cada uma acolhe os dons que recebe das outras do modo que lhe é específico. Assim como nós, embora comamos todos os mesmos alimentos, nos desenvolvemos seguindo, cada um, a sua própria natureza. E, de novo, não relativismo – que nega que exista uma verdade para a qual todas as posições são ao mesmo tempo verdadeiras e falsas – mas, pelo contrário, a certeza de que uma Perfeição, um Bem, um Amor existe e nos transcende, junto com a humildade de reconhecer que, diante do Incomensurável, nenhuma cultura, tradição, religião humana, por si só, esgota o caminho que leva a Ele. No entanto, cada uma, pelos dons da ação criadora, acolhe fragmentos de verdade e perfeição e, por sua vez, faz deles um dom às outras espiritualidades. Assim se desenvolve o caminho da humanidade.

 

Penso que as implicações humanas, sociais e políticas de tal processo de diálogo entre diversas espiritualidades são evidentes e só podem ir na direção de uma maior fraternidade entre as pessoas e os povos. É preciso acrescentar mais uma consideração no que diz respeito ao pensamento científico: uma teologia que não adquira e não se meça com os dados que a ciência submete ao nosso conhecimento está destinada a perder progressivamente a sua credibilidade e, consequentemente, a sua comunicabilidade no contexto da cultura contemporânea.

 

Além disso, há um elemento ainda mais decisivo que deve nos levar a um debate sério com os desdobramentos do pensamento científico, que é o fato de que a aquisição de novos conhecimentos sempre leva a esclarecer o nosso próprio modo de conceber e, portanto, de viver a experiência de fé. Trata-se de captar todo o potencial do desenvolvimento dos conhecimentos da razão e de colocá-lo a serviço de um desenvolvimento do nosso caminho de fé, em um processo que certamente conhece viradas e, consequentemente, a necessidade de mudanças até mesmo conturbadas, mas que, citando Teilhard de Chardin, devem ser enquadradas entre as dores do parto daquelas novidades de vida que a própria ação criadora aumenta.

 

(Continua...)

 

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