Reflexão para o Dia dos Mortos: “Num mundo onde a experiência fundamentalista ensina o fiel a olhar o outro como inimigo, tudo se torna bestial”. Entrevista especial com André Chevitarese

“É muito normal você ouvir que Jesus está para voltar. Mas quem está no púlpito dizendo que Jesus está para voltar está fazendo aplicações em ações ou investimentos futuros, porque nem ele mesmo acredita que Jesus está para voltar”, afirma o historiador

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Por: Thiago Gama | Edição Patricia Fachin | 01 Novembro 2025

Neste domingo, a Igreja celebra o Dia de Finados. Viúvas, órfãos, pais e mães que perderam seus filhos na última terça-feira, 25-10-2025, no massacre mais letal da história do Rio de Janeiro, ainda estão consternados. Para além de todas as discussões sociopolíticas envolvendo o combate ao tráfico de drogas, o melhoramento da segurança e a urgência da implementação de políticas públicas, manifestam-se no centro desse acontecimento a perpetuação da violência e o desejo de vingança, de ódio, de ressentimento. Patologias que estão sendo alimentadas pelas lideranças políticas.

As reações evidenciam a complexidade sociocultural de um país como o Brasil. Mais de 80% da população se autodenomina cristã, segundo os dados do Censo de 2022, mas as atitudes nem sempre coadunam com a crença religiosa. Em algumas situações, segundo o historiador André Chevitarese, é possível observar “uma escolha deliberada, por um campo extremamente autoritário, de se pensar e se colocar em prática uma política autoritária, na medida em que essas lideranças, a partir dos seus púlpitos, fomentam cristãos a odiarem, a agredirem, a não aceitarem conviver com diferentes”. Nos ambientes em que o desejo de ódio é cultivado, afirma Chevitarese, “Jesus, seja o histórico, seja o da fé, já não está mais aqui. Num mundo onde a experiência fundamentalista ensina o fiel a olhar o outro, que é diferente, como inimigo, tudo se torna bestial, tudo se torna absolutamente terrível”.

Chevitarese, professor de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se dedica ao estudo da história do cristianismo e à paisagem e cultura material da cidade do Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, ele reflete sobre a hermenêutica em torno do Jesus histórico e o Jesus da fé e questiona o que tem sido ensinado em púlpitos cristãos que se espalham por todos os cantos do país. “Eu, que vivo de pensar experiências cristãs, experiências religiosas em geral, cristãs em particular, fico me perguntando o que as lideranças religiosas cristãs nesse país ficam fazendo nos púlpitos. Ensinando amor? A maioria não está mais ensinando. Também não estão ensinando a Palavra de Deus. O que eles estão fazendo? Estão ensinando as pessoas a se isolarem, a serem radicais, a serem estúpidas, a serem desqualificadas, a não terem o respeito como premissa das suas leituras e análises. Lamento, mas temos que resistir, porque o que está em jogo é a democracia”. 

André Chevitarese (Foto: Arquivo Pessoal)

André Chevitarese é graduado em História e mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em Arqueologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A entrevista é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ. Foi cedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU pelo entrevistador.

Eis a entrevista. 

O senhor é uma voz destacada na academia sobre os estudos do Jesus da fé. Qual a diferença entre o Jesus histórico, muito trabalhado na academia, e o Jesus como uma pessoa altamente sagrada, como filho de Deus, particularmente para o cristianismo? 

André Chevitarese – Vamos por partes. Muito antes de existir o Jesus histórico enquanto objeto de estudo na longuíssima tradição de uma história do cristianismo ou dos cristianismos, Jesus sempre foi visto como Cristo. Jesus Cristo é um título messiânico: Jesus Cristo como filho de Deus, como Deus.

Jesus foi visto como um milagreiro, como um consolador, como alguém com quem pessoas que têm fé colocam seu joelho em terra e conversam sobre todos os assuntos que essa pessoa que tem fé deseja conversar. Então, existe um Jesus que é da fé, um Jesus que perpassa praticamente dois mil anos de história. Esse Jesus traz consigo uma enorme subjetividade. Subjetividade por quê? Porque é a relação em que o indivíduo, que é cristão, se sente muito à vontade em conversar com alguém que se encontra no mundo metafísico, ou seja, ele vive e conversa com Jesus. Nesse sentido, esse indivíduo não depende da ciência nem depende da razão. Ele só depende da fé que deposita em Jesus, para poder estar ali dialogando com ele.

No entanto, alguma coisa aconteceu no século XVI, que começou a colocar um certo problema e um incômodo nessa relação tão próxima e direta que sujeitos têm com suas divindades. Em meados do século XV, o cônego católico chamado Copérnico está, de alguma maneira, dizendo que a tese de Ptolomeu – de um geocentrismo, de que a Terra é o centro do universo e que, portanto, se a Terra é o centro do universo, o universo inteiro gravita em torno dela – não é 100% correta. Aliás, ela não tem nada de correto.

Copérnico observa que, na verdade, o centro do universo está muito próximo do Sol. Então, ele vai propor a tese heliocêntrica, o heliocentrismo. E isso terá um impacto enorme nas relações como sujeitos históricos dialogam, não apenas com a divindade cristã, mas com qualquer outra divindade dispersa pelo nosso planetinha. 

Novidades

O século XVI vai trazer novidades importantes, como a descoberta de um novo continente, a América. Marinheiros que estavam nas caravelas que descobriram o continente americano, fossem eles holandeses, franceses, ingleses, portugueses, espanhóis, que aqui aportaram, retornaram para a Europa e levaram junto espécies de plantas, de animais, de silvícolas. Eles estão, de certa maneira, pasmos, porque a Bíblia, que constituía, na perspectiva judaico-cristã, uma dimensão de verdade eterna e absoluta, falava de três continentes: a Europa, a Ásia e a África. Então, de imediato, havia um problema posto: esse continente, a América, não estava na Bíblia. Eles também se perguntavam se aquelas espécies de animais e aquele tipo de ser humano, civil, estavam na arca de Noé. E se estavam na arca de Noé, como é que atravessaram o oceano e foram morar do outro lado? Começa a existir, a partir de uma experiência mais cotidiana, uma certa decepção com um pressuposto de verdade que já vinha atravessando séculos.

O corpus neotestamentário (Novo Testamento), por exemplo, para uma perspectiva cristã, não é algo do século I. Ele não nasce com Jesus. Ele guarda uma relação mais estreita a partir da vida de Constantino, de Eusébio. Constantino faz uma demanda de que era necessário que a autoproclamada ortodoxia cristã tivesse um conjunto de livros, um corpus neotestamentário para chamar de seu, para buscar uma unidade, tal como o império se constituía como uma unidade. Aquele campo do cristianismo majoritário, que chamo de autoproclamada ortodoxia cristã, precisava ter um corpus neotestamentário. Essa demanda vai produzir, mais para o fim do século IV, num outro contexto, em 380 em diante, os 27 livros do Novo Testamento. Nunca foram plenamente aceitos todos os livros, mas, de alguma maneira, se tinha um ponto de partida. Então, desde o século IV em diante esse corpus neotestamentário foi ganhando contornos de sagrado, de palavra sagrada, de palavra revelada pela própria divindade, e ganhou uma aura de verdade eterna e absoluta. Somada com as escrituras judaicas, constituía um livro eterno.

Transformações 

Porém, coisas simples, como a descoberta de um continente, começam a produzir vazios. Os séculos XVI e XVII são de profundas transformações dentro de uma dimensão mais europeia. Até então, numa dimensão mais histórica, havia uma civilização islâmica muito pulsante, em grande expansão, dominando partes do continente europeu. Havia também uma civilização chinesa muito forte do ponto de vista oriental. De alguma maneira, a Europa estava se reconstituindo naquilo que chamamos de “Idade Média”. Esse é um momento de muito fervilhar de ideias, mas, de alguma maneira, a Europa estava encolhida diante de civilizações bem maiores do que ela. Mas, no processo histórico, os europeus começam a ganhar uma dimensão e começam a se ver como lideranças do nosso planetinha, justamente a partir dos séculos XV e XVI em diante.

Um aparato tecnológico vai permitir a esses europeus, em primeiro lugar, expulsarem os islâmicos da Europa e, depois, começarem a conquistar territórios e a se tornarem um padrão hegemônico. Tudo isso à luz de um novo paradigma que está sendo construído: o heliocentrismo.

No século XVII, surgem indagações, como a chamada teoria do conhecimento, segundo a qual tudo o que existe só existe se puder ser provado. Nesse contexto, como fica a questão da metafísica? Como fica o mundo dos deuses ou do Deus único? Existe céu? Existem divindades? Existe inferno? Essas tensões começam a produzir pequenas fissuras num pressuposto de verdade que parecia muito bem constituído pela teologia. No bojo do século XVI, da Reforma Protestante, da Contrarreforma, todos esses movimentos vão se tornar subalternos ou ficarão numa situação de inferioridade diante da teoria do conhecimento, da razão. 

Questionamentos 

No século XVII, começam a aparecer os primeiros fósseis. Mamutes são descobertos. Eles são parecidos com elefantes, mas não são elefantes. E isso gera uma indagação sempre de fundo religioso: se o mamute é um animal extinto, seria o ato da criação divina dotado de imperfeição? Porque, até então, acreditava-se que aquele mundo que Deus criou continuava existindo absolutamente igual desde o período da criação. Mas os fósseis mostravam, talvez, uma falha na criação, ao menos numa perspectiva científica.

A geologia, em meados do século XVII e no XVIII, destacava que os estudos das rochas deixavam claro, inequivocamente, que o mundo não tinha seis mil anos de criação; tinha bilhões de anos. Cada elemento desse foi se pondo como um pequeno problema, que, no somatório geral, produziu algo bem estranho: a religião não é dotada desse elemento de verdade absoluta. Assim, ela precisa ser reinserida num plano de subalternidade em relação à ciência e à razão.

Isto é o que se instaura na modernidade. Essa posição vai ser reforçada no século XVIII, quando o Capitão Cook chega a um novo continente, a Oceania. Aí surge a mesma pergunta de sempre. Os marinheiros voltam com aborígenes, com cangurus e perguntam: eles estavam dentro da arca de Noé? Se estavam, como foram parar lá? Que caminhos foram esses? 

Jesus histórico como fruto do desenvolvimento científico

Dito isto, diria que a figura do Jesus histórico é fruto desse processo da ciência do século XVIII. Para ser mais preciso, no fim do século XVIII começam a aparecer os primeiros estudos, cuja ênfase não era tanto no Jesus da fé, mas no Jesus da história, sempre a partir do argumento de que se trata de um Deus encarnado, um Deus que se fez homem.

Mas quem é Jesus de Nazaré? Com essa pergunta começam as pesquisas sobre o Jesus histórico no século XVIII. Elas são fruto de uma necessidade que a modernidade impõe-se enquanto critério pautado na teoria do conhecimento, de que tudo o que existe precisa ser passado pelo elemento da prova. Aquilo que é fé passa a ser subjetividade e não está sujeito à ciência. Logo, cada um que cuide da sua subjetividade.

Mas o Jesus histórico ganha uma dimensão extremamente significativa aí. Em resumo, o Jesus da fé atravessa dois mil anos de história. O Jesus histórico é resultado de algo absolutamente novo. É fruto de um novo tempo, de um novo espaço, de uma nova base paradigmática que se constitui a partir do que chamamos modernidade.

No PPGHC, a professora Leila Rodrigues e o professor Paulo Duarte, especialistas em alta idade média, advogam, através de outros historiadores, que, provavelmente, Jesus era um camponês, vivia no campo e não na cidade. Em função disso, o Jesus histórico não era uma pessoa que dominava grego, como a maioria das pessoas de fé e outras pessoas que também não têm fé acreditam. Não se tratava de um poliglota, partindo do princípio de que o grego, naquela época, é como se fosse o inglês hoje, uma língua franca, e que exigia um certo nível de erudição. A minha pergunta é a seguinte: o Jesus histórico que emerge com muita força e se torna paradigmático é um camponês stricto sensu, ou seja, não tem uma cultura que se possa dizer douta, que dominava o grego e estruturas do Talmud judaico, tal como dizem as Escrituras? 

André Chevitarese – Sempre vamos retornar ao elemento “prova”, muito específico e particular, ligado à modernidade. Do ponto de vista da fé, Jesus é Deus. Ele não é camponês nem citadino; ele é Deus. O fato de colocarmos, numa disciplina histórica, o olhar de Jesus como sendo camponês já pressupõe que o critério razão, e não fé, se instaura como fio condutor da nossa narrativa. Então, de fato, o Jesus histórico é um camponês, é um judeu camponês da Galileia

Estudos sociológicos mostram que as culturas camponesas têm pontos em comum, independentemente de onde possam estar situadas. Por exemplo, o padrão monetário de circulação de moedas dificilmente se encontra no interior de culturas camponesas. Na melhor das hipóteses, podemos encontrar um ou outro tesouro monetário enterrado em área rural, mas, basicamente, não é comum encontrarmos a circulação de moedas no ambiente camponês. 

Um segundo dado praticamente inexistente nas culturas camponesas é a escrita. Além disso, os camponeses tendem a ser mais refratários em relação ao progresso, ao avanço, em comparação com o espaço urbano. O elemento camponês tende a ser mais conservador quando olha para cidade e se depara com uma série de ideias e novidades que parecem colocar o mundo de ponta-cabeça.

Nesse sentido, os estudos sociológicos mostram um padrão do que é ser camponês, independentemente da geografia que se está estudando. Tanto faz se são culturas camponesas situadas no sudeste asiático ou no interior das Américas. Não importa se essas culturas camponesas estudadas estão, por exemplo, na alta ou na baixa idade média. O padrão é um só, o padrão é o mesmo. É possível constituir determinadas leis que se aplicam àquilo que nós chamamos camponeses. 

Interrogações 

Se Jesus é lido como camponês, há 99,999% de chances de ele ser analfabeto. Olha que situação um tanto quanto contraditória, quando não herética, porque o Jesus de Nazaré é o Jesus que é Cristo, que é filho de Deus, que é Deus, que está entronado e que vai voltar. Além disso, se Jesus de Nazaré é analfabeto, é um monoglota, ele só sabe, por exemplo, aramaico, não sabe nada de grego, de latim ou coisas do tipo. Mas eu coloco o meu joelho em terra e faço uma oração a ele e converso com ele em português. Será que ele está entendendo exatamente o que eu estou falando? 

Então, você vê que a partir do século XVIII a modernidade que faz emergir o Jesus histórico fez também emergir uma enorme contradição entre o que a imensa maioria das pessoas pensa, diz e fala sobre Jesus e o que a ciência escreve, fala e diz sobre Jesus. O Jesus poliglota sabe todas as línguas. Esse é o Jesus da fé. Mas o Jesus histórico é um camponês, que tende a ser refratário, conservador, analfabeto, monoglota. Então, são essas as tensões que surgem da modernidade.

Quando dois intelectuais, como a Leila Rodrigues e o Paulo Duarte, ponderam em suas respectivas salas de aula, eu também pondero exatamente o que eles ponderam: que Jesus é um camponês já está implícito, sem que eles precisem dizer, que o olhar sobre esse Jesus é o de Nazaré. Não é o Cristo da fé. Não é o Jesus que é Cristo, não é Jesus entronado, é uma outra pessoa que, na perspectiva teológica da autoproclamada ortodoxia, só tem valor pelo ato da encarnação e pelo ato de ter sido crucificado. A história não serve para mais nada.

Quem é Jesus?

Quando você sistematiza Jesus para as pessoas hoje, quem é esse Jesus? Seis elementos constituem Jesus: Jesus nasceu virginalmente, conheceu uma vida sem pecado, conheceu uma morte sacrificial, ressuscitou no terceiro dia, ascendeu aos céus e vai voltar, a sua segunda vinda, a chamada parusia. Esses seis elementos nada têm a ver com história. É . Entende?

Então, o que nós fazemos em sala de aula é o que determina o critério do fazer ciência em qualquer disciplina, inclusive da história. Só se pode falar de alguma coisa na medida em que se pode provar. Como Nazaré foi muito bem escavada e dela não veio nada referente à Escrita, nada referente à circulação de moedas, nada referente ao universo citadino, então Jesus é um camponês. E se Jesus é camponês, as leis sociológicas sobre o campesinato já definiram quem ele é. Olha como é tenso, né?

O senhor é um historiador e um arqueólogo. Essas são profissões irmãs e extremamente estratégicas porque uma ilumina a outra concomitantemente. Admitamos que Jesus fosse um dos vários candidatos a Messias naquela sociedade. Por que este, particularmente, vinga? Por que este se torna o Jesus a ser seguido ou o Messias a ser seguido? O que esse homem, a partir de uma chave weberiana de carisma, demonstrou de especial para ter uma adesão tão forte a ponto de homens morrerem por ele, de Constantino dar uma virada no Império e se associar a essa pessoa, ainda que haja componentes políticos envolvidos?

André Chevitarese – Escrevi Paulo: o que a história tem a dizer sobre ele (Menocchio, 2024). Chamo Paulo de o primeiro grande reformador das ideias de Jesus. Então, o Jesus que vai vingar não é o Jesus que instaurou o Reino de Deus em vida. O que seria esse Reino de Deus instaurado por Jesus? Um reino de justiça em oposição à injustiça de César. Um reino de paz em oposição ao reino de guerra de César. Um reino de comensalidade, onde pessoas diferentes se sentam à mesa para comer, em oposição à carestia, à ausência de comida na mesa dos indivíduos produzida por César. E, por fim, onde homens e mulheres eram engajados em levar essa boa nova do reino de Deus instaurado, em oposição à falocracia de César.

Isso é um reino majoritariamente dominado por homens. Essa proposta de Jesus de Nazaré, marcadamente de oposição ao Império Romano, é o que o fez parar na cruz. Quem são os crucificados? São os estupradores, são os falsificadores de testamentos, são os escravos que assassinam seus senhores, escravos revoltosos ou os indivíduos que atentam contra o Império Romano. Jesus nunca foi estuprador, nunca falsificou um testamento, nunca foi escravo que matou um senhor ou um escravo que participou de revoltas de escravos. Então, só se aplica a Jesus aquele elemento de alguém que se opôs ao Império Romano de forma aberta. Jesus é crucificado por fazer oposição ao Império, mesmo sendo uma liderança camponesa, cujo número de indivíduos que aderiu às suas ideias era ridiculamente pequeno. 

Então, na medida em que o movimento de Jesus com Jesus morre com ele, as gerações que estiveram com Jesus e as gerações que se seguiram a Jesus produziram inúmeros movimentos de Jesus sem Jesus. Por que Jesus deu certo, entre tantos candidatos messiânicos? Não foi por ele mesmo, mas pela capacidade da autoproclamada ortodoxia cristã negociar elementos centrais das teses desse Jesus de Nazaré com o império romano.

Ideia paulina

Então, em vez de se assumir um reino instaurado, esperando que André e Tiago entrem no reino para que o mundo possa ser transformado no aqui e agora, vingou a ideia paulina de que não tem reino instaurado. Jesus vai voltar. Só quando ele voltar é que se vai separar o joio do trigo. Até lá, mesmo reconhecendo o enorme sacrifício que Jesus fez na cruz para nos salvar, continuamos eternos menores, dependendo sempre de uma figura maior de idade para nos dar a mão e carregar.

Podemos fazer tudo de errado, porque até o último segundo temos possibilidades de nos arrepender e encontrar Jesus no Reino. Isto foi um longo processo de negociação. Nunca se questionou a instituição escravista, por exemplo. Alguém poderia lembrar: onde está o grito paulino na epístola a Filemon? Quando pede a soltura de Onésimo? Há uma proposta de se soltar escravos no Império Romano? Isso nunca existiu. Ao contrário, foi fruto de uma negociação: enquanto não vem o “sinal dos tempos”, somos peregrinos, mas virá o tempo em que nós iremos encontrar no céu Jesus, e lá não teremos mais escravos, lá não teremos mais dor nem sofrimento.

Pilatos é o responsável último pela morte de Jesus por decidir que o crucificassem como alguém que atentava contra o Estado. No entanto, Paulo, em Romanos, capítulo 13, diz que todos os cristãos devem se submeter a todos os magistrados, porque os magistrados não são escolhidos por eles mesmos. Deus é que os indica. Então, pagar impostos a um império injusto é bom para o Senhor. Mas, espera aí, não foi um magistrado romano que mandou crucificar Jesus? Então, as contradições entre o que você lê no texto e o que você experimenta na vida é algo absolutamente extraordinário. 

Isso também se revela hoje. É muito normal ouvir que Jesus está para voltar. Mas quem está no púlpito dizendo que Jesus está para voltar está fazendo aplicações em ações ou investimentos futuros, porque nem ele mesmo acredita que Jesus está para voltar. O que faz o “Jesus histórico” dar certo foi a capacidade de aderência e negociação com o Império Romano. Isto é, a igreja de Constantino, de Teodósio em diante, percebeu o quão estratégico é a posse do poder. E, naquela região, se solidificou.

Me corrija se eu estiver errado e se entendi errado as suas palavras, mas o senhor está dizendo que Jesus foi mais moldado por Paulo, o Apóstolo, do que qualquer outra coisa?

André Chevitarese – É, se pensarmos que você entendeu errado. Mas, se pensarmos que a experiência histórica tem um componente sincrônico e o elemento diacrônico, veremos que no momento em que Paulo produzia cartas – estamos falando de meados dos anos 50 do século I, onde outros grupos cristãos também estavam produzindo textos e também estavam vivendo suas experiências sobre quem foi Jesus, do que Jesus teria dito e fazendo suas vidas seguirem –, sempre existiram, em diferentes áreas geográficas, grupos que nunca se viram, que nunca se conheceram e que nem por isso deixaram de viver experiências cristãs. Só que elas não eram padronizadas; eram multifacetadas porque se considera que o Império Romano é multiétnico, multicultural. Uma nova experiência religiosa, quando chega à Síria, à Turquia, à Grécia e a Roma, encontra culturas diferentes.

Mas o que são culturas diferentes? Indivíduos que pensam diferente, que tiveram criações diferentes, que seguiram por estradas diferentes e que num dado momento converter-se-ão ao movimento de Jesus sem Jesus, sem renunciar ao que eram anteriormente. A conversão é negociar o que eu sou com o que eu serei. Você não se torna zero para receber alguma coisa nova. Então, inúmeras comunidades cristãs, de diferentes percepções do que viria a ser cristianismo, coexistiram na sincronia e coexistiram na diacronia. Essas comunidades estão produzindo textos na sincronia e na diacronia.

No entanto, o que a autoproclamada ortodoxia fez foi pinçar 27 livros e constituir o corpus neotestamentário à luz do que ela, autoproclamada ortodoxia, entendia ser o cristianismo nos séculos IV e V. Inúmeras comunidades cristãs que também produziram documentos, mas nunca toparam negociar com o Império Romano, ficaram de fora e são chamadas de heréticas. Precisam ser combatidas tanto na sincronia quanto na diacronia.

O que a Leila e o Paulo estão ponderando é que uma parte da Europa Ocidental era ariana e precisará ter um enorme esforço para se converter. Repara que nos processos sincrônico e diacrônico, duas dimensões diferentes de cristianismo coexistiram. No entanto, tudo que nós temos como resultado da longa duração do cristianismo é que Deus é Trino; Deus não é uno. Os arianos diziam: Deus Pai nunca teve filho. Nunca. Jesus não é Deus. Jesus, na melhor das hipóteses, é filho de Deus. Essa é a tese ariana. Mas o que vingou foi um Deus Trino: Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo.

Então, quem fez aliança com o Império Romano não foi o cristianismo nas suas múltiplas facetas, foi a autoproclamada ortodoxia cristã. Ela vai pinçar os textos, vai produzir uma teologia muito específica para dar sentido e iluminar o que interessa ser iluminado nos textos, e o que não interessa ela deixa na escuridão. 

A escola chevitareseana é considerada, pela UFRJ, um núcleo central de estudos sobre o Jesus histórico, porque dialoga de forma muito delicada com sensibilidades religiosas. Sabemos que a sociedade brasileira está conflagrada, e, pela primeira vez, a Igreja Católica Romana, que sempre foi hegemônica, está começando a perder a hegemonia, segundo o IBGE, para as igrejas neopentecostais. A escola chevitareseana se encontra numa posição muito delicada, porque, ao colocar ciência junto com historiografia e arqueologia, pode vir a ser atacada, porque o grande problema de algumas vertentes cristãs é ler a Bíblia literalmente e não admitir nenhum tipo de interpretação científica ou historiográfica. A pergunta é: a escola chevitareseana sofre ataques de outras denominações cristãs? 

André Chevitarese – Precisamos sempre desconfiar quando uma população inteira converge ou comunga de uma única experiência religiosa, como, por exemplo, quando se olha para a Arábia Saudita e se afirma que 100% dos sauditas são islâmicos. Ali está implícita a mais completa ausência de liberdade religiosa, porque se confunde a experiência religiosa com o Estado, e o Estado se confunde com a experiência religiosa, de modo que o próprio cidadão teme represálias. E ele tem razão em temer represálias. Não importa se a pessoa é católica, batista, assembleiano – não está em discussão a própria confissão. 

Liberdade religiosa 

Então, em países onde 100% dos indivíduos convergem e comungam uma mesma experiência religiosa, está implícita uma ausência de liberdade religiosa. Isso também foi regra no Brasil. Desde o Brasil Colônia e depois, com a Constituição de 1824, religião católica e Império eram uma coisa só. O catolicismo era a religião oficial. Com muita dificuldade se admitiu e se colocou em prática, a partir da abertura dos portos às nações amigas, em 1810, a liberdade religiosa nesse país, a começar por anglicanos, luteranos e outras denominações.

O Rio de Janeiro guarda ainda um tesouro belíssimo, que é o cemitério dos ingleses na Gamboa, onde, por força da Inglaterra, desde 1809 já tinha um espaço sagrado: um cemitério exclusivamente para anglicanos, de modo que eles não precisavam ser tratados como ralés num Brasil católico. 

Com a Constituição Republicana de 1891, houve foi uma liberdade de experiências religiosas. Claro que no início a imensa maioria dos brasileiros declarava-se católica, mas a possibilidade de experiências religiosas que se manifestavam mais abertamente, como as religiões de matriz africana, que atravessam a Colônia e o Império, continuavam a ter problemas, por causa dos artigos 157, 158, 159 do Código Penal, por praticarem a falsa medicina. Ali estava implícita a questão racial, o racismo para com essas religiões. 

As missões cristãs, das mais diferentes confissões, já estavam aqui. As principais eram anglicana, luterana e batista. Outras vieram a se constituir enquanto trabalho missionário no Brasil a partir do século XX. É absolutamente normal que, num espaço de liberdade religiosa, aqueles 100% deixem, gradativamente, de ser unanimidade. Com liberdade religiosa, as pessoas passam a escolher que caminhos querem seguir. Isso inclui desde não ser religioso até ser cristão ou pertencer a outra matriz religiosa. 

Catolicismo

O que percebemos, à luz dos censos decimais que o IBGE faz a cada 10 anos, é que o catolicismo chegará a uma acomodação que poderá gravitar entre 30, 40%, um pouco mais, um pouco menos. Mas ele tenderá a dividir espaços com outros campos religiosos, tanto cristãos quanto não cristãos. Isso faz parte de uma tradição que procura garantir a liberdade religiosa.

Claro que para boa parte do período republicano – quero insistir nisso –, liberdade religiosa nunca foi sinônimo de kardecistas, umbandistas ou religiões de terreiro terem suas portas abertas para que o indivíduo tivesse liberdade para estar ali. Não é bem isso. Mas, a partir de 1988, isso foi superado. O racismo ainda não foi, mas o direito de congregar numa casa religiosa de umbanda, sim. A polícia não vai lá prender as pessoas por causa disso. Contudo, ainda no século XX muitos foram presos. 

Fundamentalismo religioso 

De qualquer forma, o que observamos com o catolicismo era a ausência de liberdade do indivíduo. Esse é um ponto. O segundo ponto é uma questão que perpassa o fundamentalismo religioso cristão nesse país – e fundamentalismo religioso cristão não pode ser sinônimo de evangélico. Católicos também são fundamentalistas. Mas, muitas vezes, eles trabalham na surdina. Grupos mais pentecostais são mais explícitos no fundamentalismo religioso cristão. 

Eu recomendaria dois importantes intelectuais brasileiros que têm não apenas produzido textos sobre isso, mas também estão produzindo obras organizadas, onde convidam outros intelectuais interessantes a falarem sobre o tema. Um desses intelectuais é Tayná Louise Matos Moreira Souza de Maria, que está terminando o doutorado no Programa de Pós-graduação em História Comparada, orientada pela Iamara Viana, que estuda o processo de fundamentalismo religioso cristão. Outro é o professor e pastor batista Sérgio Duzilek.

Ambos têm produzido muitas coisas para mostrar que há uma raiz nesse processo que chamamos de fundamentalismo religioso cristão, que é a reação àquele estado de coisas que chamamos de modernidade. Isto é, o império da razão, o império da ciência, empurrando para o canto ou para os cantos, a religião. 

Fundamentalismo como reação à modernidade

A ideia da ciência de produzir um mundo novo, um mundo justo, fraterno, onde as máquinas produziriam e os seres humanos viveriam uma vida muito mais qualificada, foi um fracasso. Autores como Karl Polanyi dizem que o século XIX se encerra em 1918, com o término da Primeira Guerra Mundial, porque, de fato, uma guerra nunca tinha produzido tantas mortes, tantos feridos e tamanha destruição material. É nesse bojo que há uma reação cristã de sair dos cantos, de tentar assumir um protagonismo diante desse mundo pautado na ciência. É isso que observamos ao longo do século XX. Ou seja, tem muita gente boa mostrando que o fundamentalismo não é vanguarda; é reação. Ele reage àquilo que o mundo novo produz.

É dentro dessa perspectiva de um mundo fortemente fundamentalista que o ódio parece ser a palavra de ordem na cabeça de muitas lideranças religiosas cristãs. E há aí uma escolha deliberada por um campo extremamente autoritário, de se pensar e se colocar em prática uma política autoritária, na medida em que essas lideranças, a partir dos seus púlpitos, fomentam cristãos a odiarem, a agredirem, a não aceitarem conviver com diferentes. 

Talvez, eu tenha sofrido um pouco dessa rebarba nas redes sociais, porque não estou 100% do meu tempo nelas. Por acaso, tenho uma página no YouTube e uma página no Instagram. Mas, para termos uma ideia, no Instagram eu tenho quase 500 pessoas bloqueadas. Quase 500 pessoas bloqueadas. Afinal, em vez delas proporem um debate em torno de ideias, elas praticam aquilo que suas lideranças ensinam: agridem, xingam, odeiam – e tudo em nome de Jesus. Isso que é o curioso.

Reação 

Jesus, seja o histórico, seja o da fé, já não está mais aqui. Nesse mundo onde a experiência fundamentalista ensina o fiel a olhar o outro, que é diferente, como inimigo, tudo se torna bestial, tudo se torna absolutamente terrível. O que é que nós, democratas, precisamos fazer? Reagir. Não nas mesmas condições que esses cristãos, que mais se parecem bestas selvagens. Pelo contrário: precisamos reagir estudando mais, preparando-nos mais, reagir dizendo que é possível conviver com diferentes, desde que haja um princípio primeiro, que é o respeito.

Respeitar a dignidade de o outro existir, respeitar o direito do outro que é diferente. Exigir respeito. O achismo não tem base nas conversas, especialmente se se quer discutir com pessoas que passam a vida estudando, como é o meu caso. Não quero saber do achismo, não quero saber o que o outro acha. Quero saber de que bases o cidadão sai até chegar num determinado ponto. E aí percebemos o quanto a imensa maioria dos cristãos brasileiros está absolutamente despreparada. Não sabem absolutamente nada que tenha uma profundidade maior do que um milímetro de profundidade, ficam repetindo bordões e deixam de conhecer aquilo que é profundo. 

Eu, que vivo de pensar experiências cristãs, experiências religiosas em geral, cristãs em particular, fico me perguntando o que as lideranças religiosas cristãs nesse país ficam fazendo nos púlpitos. Ensinando amor? A maioria não está mais ensinando. Também não estão ensinando a Palavra de Deus. O que eles estão fazendo? Estão ensinando as pessoas a se isolarem, a serem radicais, a serem estúpidas, a serem desqualificadas, a não terem o respeito como premissa das suas leituras e análises. Lamento, mas precisamos resistir porque o que está em jogo é a democracia. É isso. 

Deseja divulgar seu instituto, algum livro de sua autoria ou fazer alguma consideração final?

André Chevitarese – Vou deixar à vontade do público, se interessar buscar o meu currículo, aquilo que ando pensando, falando e escrevendo. As pessoas saberão encontrar isso numa busca em torno do meu nome no Google.

Com relação às minhas páginas, basta escrever André Chevitarese e encontrarão tanto a página do Instagram quanto a do YouTube.

O que eu gostaria de dizer é que as divergências de ideias não precisam começar ou terminar com xingamentos, com ódios. Pelo contrário, elas precisam começar e terminar sempre pautadas no respeito à dignidade do outro, no respeito ao direito do outro de existir, deste outro que é diferente. Se esse nosso bate-papo convencer uma única pessoa que não pensava assim a pensar dessa maneira, para mim a entrevista já valeu muito a pena.

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