Democracias representativas esvaziadas e o estado de exceção permanente como técnica de governo. Entrevista especial com Sandro Luiz Bazzanella

Retomar o uso comum das coisas, do mundo e das experiências, promover uma outra relação com o tempo e o cultivo de formas-de-vida qualificadas são resistências que brotam a partir da filosofia agambeniana e que apontam para uma “democracia que vem”

Reprodução da obra Punições públicas na Praça Santa Ana, de Johann Moritz Rugendas, disponível no acervo do Itau Cultural | Foto: Wilfredo Rafael Rodriguez Hernandez / Wikimédia Commons

Por: Márcia Junges | 15 Agosto 2025

“A democracia é esvaziada de sua condição de poder constituinte, de espaço privilegiado de debate, de manifestação do dissenso, da pluralidade de ideias e concepções de vida e de mundo, para se tornar o lócus de decisões tecnocráticas vinculadas às exigências da lógica de mercado e suas demandas de desregulamentação, de flexibilização, de ajuste fiscal, entre outras tantas medidas e imposições características do estado de exceção e de precarização da vida em que nos encontramos inseridos”, pondera o filósofo Sandro Luiz Bazzanella na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. E complementa: “A Modernidade, ao elevar a economia à centralidade da esfera pública (Arendt), reduz a política a um mero meio sem fim. Ou, dito de outro modo: a Modernidade captura a experiência temporal da vida e a submete à lógica da produtividade”.

Reduzida à técnica de gestão social com o apoio do estado de exceção como dispositivo legal, positivado nas constituições, a democracia representativa liberal enfrenta o recrudescimento de novas formas de autoritarismo, em especial aquelas oriundas do registro da extrema-direita, que avança mundialmente e tem reflexos sobre a dinâmica política no Brasil, cujo ethos escravocrata e colonialista segue operativo na exceção tornada regra para parte significativa de nossa população. “A distopia das democracias liberais representativas também se apresenta no fato do poder constituído desvencilhar-se da vontade popular, do poder constituinte, tomando decisões políticas que incidem sobre a possibilidade de vida ou da morte de parcelas significativas da população, relegadas a condições de vida sub-humanas, expostas à miséria, à fome e a toda sorte de violências e degradação vital”, acrescenta Bazzanella. O nexo inconveniente entre democracia e totalitarismo espreita pelas frestas do sistema político que, paradoxalmente, tem a capacidade de gestar seus próprios algozes.

Sandro Luiz Bazzanella (Foto: Arquivo Pessoal)

Sandro Luiz Bazzanella é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco (FFCLDB), especialista em Gestão Colegiada das Escolas Católicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e mestre em Educação e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutorou-se em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com a tese A centralidade da vida em Nietzsche e Agamben frente à metafísica ocidental e a biopolítica contemporânea, publicada sob o título A vida como potência a partir de Nietzsche e Agamben (LiberArs, 2013). É professor titular da Universidade do Contestado (UnC), em Canoinhas/SC, palco da Guerra do Contestado entre 1912 e 1916.

Confira a entrevista.

IHU – O mecanismo da exceção é constitutivo dos ordenamentos jurídicos, como na Constituição brasileira. Quais são as principais formulações que esse expediente já teve em nossa Carta Magna e quais são as formulações atuais?

Sandro Luiz Bazzanella – Formalmente não encontramos nas constituições brasileiras (a primeira é a de 1824, promulgada dois anos após a Independência no contexto do Brasil Império) a terminologia “estado de exceção”. No entanto, encontramos dispositivos jurídicos excepcionais a partir dos quais direitos e garantias fundamentais podem ser suspensos temporariamente. Assim, na Constituição de 1988 em vigência, o artigo 136 subscreve que o “estado de defesa” pode ser decretado pelo presidente da República com anuência do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional. Este dispositivo legal se justifica a partir da necessidade de preservação e do restabelecimento da ordem pública, diante de instabilidades sociais, ou de catástrofes de significativas proporções. Os artigos 137, 138 e 139 prescrevem o estado de sítio. Este dispositivo jurídico à disposição do Estado brasileiro é previsto para situações de maior gravidade, quando comparado com o dispositivo do estado de defesa. Para implementação do estado de sítio, o Poder Executivo necessitará da anuência do Poder Legislativo, nesse caso o Congresso Nacional. Sua aplicabilidade se justificará diante de grave e extensa comoção nacional; diante da ineficácia do estado de defesa, ou então, diante de guerra e agressão estrangeira. O dispositivo do estado de sítio permite ao Estado brasileiro, na defesa de seu poder soberano, impor significativas restrições de direitos e garantias fundamentais aos cidadãos brasileiros.

Porém, considerando as pesquisas e reflexões do filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben (1), presentes ao longo de sua obra e sobretudo em seus livros: “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I”, publicado no Brasil em 2002, e “Estado de exceção”, publicado em solo pátrio em 2004, talvez se possa considerar que ao longo da trajetória do Brasil colônia ao Brasil republicano vivemos em permanente estado de exceção. Ou seja, a despeito do extenso e minucioso ordenamento jurídico que se propõe a justificar e a legalizar a ordem social, política e econômica vigente, parte significativa da população brasileira não tem seus direitos e garantias fundamentais efetivamente asseguradas.

Ethos escravocrata

A trajetória do Brasil, colônia de exploração, alicerçada na violência do trabalho escravo inicialmente dos povos originários e, posteriormente, sobre negros arrancados de sua terra natal, a África, forjou, ao longo de séculos, um ethos escravocrata que caracteriza o tecido social brasileiro até a atualidade. Referido ethos se manifesta no desprezo das elites em relação às demandas por justiça social (compreendida como a garantia de direitos básicos; restituição social das injustiças históricas impetradas; reconhecimento do direito à cidadania), manifestando-se também na violência com que os aparelhos repressores do Estado, em suas diversas instâncias federativas imprimem sobre moradores das periferias, sobre jovens, negros, sobre a população carcerária, sobre ativistas de movimentos sociais, sobre homossexuais, entre outros grupos sociais. Também se manifesta no patrimonialismo, a partir do qual determinados segmentos sociais se apossam e se locupletam com recursos públicos, entre tantas outras variáveis deste ethos que se apresenta como marca originária do tecido social brasileiro.

Ainda nesta direção e corroborando com o diagnóstico de Agamben, de que vivemos em um permanente estado de exceção, pode-se considerar que a promulgação de sete constituições (para alguns analistas seriam oito, pois consideram a Emenda Constitucional nº 1/1969, elaborada sob o regime ditatorial militar que reformulou a Constituição de 1967 sem a participação do Congresso Nacional como Constituição) demonstra as recorrentes rupturas políticas, institucionais e sociais vivenciadas pela sociedade brasileira dificultando, senão até mesmo impedindo, a participação social na afirmação de um projeto de desenvolvimento nacional amparado na justiça social. Tal condição, evidencia-se no fato de que 37 anos após a promulgação da Constituição de 1988 é flagrante a insegurança jurídica que assiste significativos segmentos da sociedade brasileira. A flexibilização e a desregulamentação de certas atividades econômicas para benefícios exclusivamente privados, a suspensão de direitos trabalhistas, previdenciários, assistenciais, exigências do ideário neoliberal, se efetivam na forma de um estado de exceção permanente que avança sobre o parco estado de bem-estar social brasileiro, constituído a duras penas após o regime militar, retirando direitos e promovendo o discurso do desmonte de serviços públicos vitais, como os serviços de saúde, educação, previdenciários e assistenciais, bem como outros serviços públicos e direitos ameaçados.

IHU – Quais as implicações e as possíveis derivas autoritárias que podem surgir a partir do uso do expediente do estado de exceção?

Sandro Luiz Bazzanella – Considerar a profundidade e a extensão desta questão requer que retomemos o argumento agambeniano apresentado na terceira parte da obra citada na questão anterior, “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I”, em que o filósofo anuncia o campo de concentração como paradigma das sociedades contemporâneas. Foi nos campos de concentração nazistas concebidos, organizados e gestados como fábricas da morte, que se realizaram as mais pavorosas experiências de descartabilidade da vida humana. O incômodo paradoxo que reside neste acontecimento hediondo se apresenta no fato de que os campos de concentração não resultam somente da insanidade nazista, mas se apresentaram como a expressão da racionalidade técnico-científica instrumental moderna, levada ao extremo da eficiência na produção do extermínio de seres humanos. Ainda nesta direção, incômodo e perturbador foi o silêncio da sociedade alemã, bem como das sociedades ocidentais diante do horror dos campos de concentração administrados pelo Estado nazista.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2), em “Modernidade e Holocasuto”, livro publicado no Brasil em 1998, refletiu a brutalidade dos campos de concentração como condição de normalidade ou de patologia inerentes à Modernidade. Ele argumenta, a certa altura de suas reflexões, que após décadas daqueles pavorosos acontecimentos há fortes indicativos de que não aprendemos nada com a barbárie dos campos de concentração. Sábia e dolorosa constatação. Neste momento, Gaza é a expressão cotidiana do estado de exceção, da produção ininterrupta de vida nua, de vidas submetidas aos cálculos de vida e de morte contabilizados pelo poder soberano, neste caso o Estado de Israel e seus aliados. Gaza é o mais recente experimento humano pavoroso, produzido pelas máquinas estatais e seus ordenamentos jurídicos, políticos e militares, que capturam a vida humana transformando-a em vida nua, em vida matável, em vida consumida, a partir dos interesses econômicos, estratégicos e geopolíticos articulados por poderes soberanos em disputa pela hegemonia global.

Estado de exceção permanente

Nesta direção, não há governo no mundo que, participando dos teatros que envolvem as negociações de paz em guerras e submetidos aos imperativos de interesses políticos e econômicos internos, e mesmo geopolíticos globais, não tenha as mãos sujas de sangue e que não reproduza a lógica dos campos de concentração. Assim, refletir sobre Gaza é urgente e inadiável na medida em que, nas sociedades contemporâneas em que estamos inseridos e, sobretudo, vinculados e acomodados na efemeridade da produção e do consumo de nós mesmos, dos outros, da natureza e do mundo, o genocídio de Gaza cairá no esquecimento e, por decorrência, na indiferença. Consumidas as informações, as imagens dos bombardeios, dos corpos de crianças, de mulheres e homens estraçalhados nas explosões esvaem-se, e adrenalina e novas experiências visuais e de consumo são exigidas pelos espectadores.

Mas o permanente estado de exceção em curso, a extensa máquina de produção de vida nua, gestada e executada de acordo com os cálculos de custo e benefício elaborados pelo poder soberano global, que a tudo e a todos pretende governar, controlar e administrar nesta quadra histórica, também se apresenta em outras tantas guerras como Rússia x Ucrânia, em conflitos internos como no Sudão, na Somália, no Iêmen, na Síria, em Mianmar. Ainda nesta direção, ressaltem-se as imensas levas de refugiados que desesperadamente tentam adentrar o chamado “mundo desenvolvido”, na violência policial contra as populações das periferias das cidades, na precarização das condições de trabalho, entre outras infindáveis situações de barbárie vivenciadas cotidianamente.

Se o argumento agambeniano, de que o paradigma das sociedades contemporâneas é o campo de concentração, apresenta-se sibilino, incômodo ou até mesmo controverso. Seu mérito reside no fato de chamar atenção para a profunda contradição vivenciada pelas sociedades modernas e contemporâneas, em que se multiplicam os protocolos, os ordenamentos jurídicos pátrios, as declarações internacionais de direito à vida, mas, ao mesmo tempo, se violentou e matou a vida em escalas absurdamente pavorosas – e o pior é que se continua a fazê-lo sob o olhar complacente, senão omisso, de lideranças econômicas, políticas, religiosas, governamentais e de parte significativa de indivíduos reduzidos à condição de consumidores e produtores no contexto de sociedades espetacularizadas.

As derivas autoritárias no uso cotidiano do estado de exceção produzem a afronta aos direitos humanos, a suspensão de garantias fundamentais, o enfraquecimento do estado de direito, a normalidade do estado de exceção e, sobretudo, talvez a mais deletéria condição que é a naturalização humana e social da violência promovida pelo modo econômico-estatal de controlar, gerenciar e destruir a vida considerada indesejável ao funcionamento eficiente do sistema mundo conformado sob as premissas do campo de concentração.

IHU – Quais são as relações entre poder constituído e poder constituinte como condição da democracia?

Sandro Luiz Bazzanella – A Modernidade foi terreno fértil para a elaboração de utopias políticas e econômicas. Pensadores como Thomas Morus (3), Tommaso Campanella (4) e Francis Bacon (5) demarcaram ideias e visões de mundo que circunscreveram de certo modo os fundamentos da modernidade ocidental. Nesta direção, a utopia da sociedade burguesa constituiu no liberalismo econômico e político. O liberalismo econômico pressupôs o princípio da propriedade privada; o trabalho como garantia da vida e da liberdade individual de escolha; livres relações mercantis ou mercado autorregulado. Por sua vez, o liberalismo político propôs o contrato social entre os indivíduos, transferindo ao Estado o legítimo uso da violência como garantia da propriedade privada, do livre comércio, da vida e dos bens pertencentes aos indivíduos. Assim, competiria ao Estado a manutenção da ordem econômica e social e, por decorrência, estabelecer um regime de governamentalidade, como teoriza Foucault (6), sobre os recursos humanos, indivíduos e população, bem como sobre os recursos naturais presentes no território e à disposição do exercício de seu poder soberano.

Portanto, é no contexto do liberalismo político que se apresenta a proposta das democracias liberais representativas, assentadas na relação entre poder constituído e poder constituinte. Tratava-se de conferir legitimidade à autoridade do Estado moderno concebido como poder constituído, ou como razão política, jurídica e administrativa sobre um determinado território e sobre indivíduos e a população. Assim, a legitimidade do poder constituído, do Estado, é derivada do poder constituinte, que se manifesta na vontade soberana do povo em conferir sustentabilidade social a partir da ordem constitucional que, ao legitimar o poder constituído, também lhe confere limites de ação.

É neste contexto que se estabelece a utopia das democracias liberais modernas, legitimadas pela soberania popular, que se expressaria no debate político sobre os interesses públicos, por meio da sociedade civil organizada, das instituições estatais, entre os partidos políticos e, periodicamente, por processos eleitorais regulamentados juridicamente pelo Estado, escolhendo por meio do voto os representantes políticos que governariam o Estado em nome da vontade popular. Ou seja, soberano é o poder constituinte, a vontade popular, que se manifesta na Carta Constitucional estabelecendo as regras da dinâmica democrática, bem como os limites e as funções dos poderes constituídos expressos na interdependência dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como nas demais instituições estatais, entre elas os partidos políticos.

Distopia das democracias liberais representativas

Sob tais pressupostos, as democracias representativas burguesas, legitimadas e assentadas no poder constituinte, confeririam legitimidade, estabilidade, limites diante de possíveis abusos por parte do poder constituído do Estado no exercício do poder soberano sobre as liberdades individuais, sobre direitos fundamentais e sociais. Também faz parte deste ideário utópico das democracias liberais burguesas, a possibilidade de, em momentos de instabilidades institucionais, acenos autoritários com possível ruptura da ordem democrática, a prerrogativa do poder constituinte em restabelecer, por meio das instituições legais, as salvaguardas democráticas e a legitimidade do poder constituído.

Ocorre que as utopias da sociedade burguesa, quais sejam, o liberalismo econômico e o liberalismo político, se apresentaram desde seus momentos iniciais como distopias. A utopia do mercado autorregulado se apresentou na distopia de profundas e graves crises econômicas das quais resultaram e resultam até a atualidade em guerras comerciais, senão em extensas guerras quentes (1ª e 2ª guerras, entre outras ao longo do século XX e, nestas primeiras décadas do século XXI), que deixaram um rastro de destruição no mundo, consumindo milhões de vidas civis e militares nos campos de batalha, culminando com o fato hediondo da explosão de duas bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, abrindo uma ferida incurável na trajetória dos seres humanos neste planeta. Ainda nesta direção, a liberdade individual de escolha se transformou na liberdade de indivíduos consumidores em consumir produtos e serviços escolhidos previamente pelo mercado, no contexto de sociedades espetacularizadas. Ávidos consumidores, que consomem a tudo e a todos sob imperativos comportamentais de descartabilidade e destruição ininterrupta das relações humanas, da vida e do mundo.

A distopia das democracias liberais representativas também se apresenta no fato do poder constituído desvencilhar-se da vontade popular, do poder constituinte tomando decisões políticas que incidem sobre a possibilidade de vida ou da morte de parcelas significativas da população, relegadas a condições de vida sub-humanas, expostas à miséria, à fome e a toda sorte de violências e degradação vital. Trata-se, sobretudo, do sequestro do poder constituído, do Estado, por uma plutocracia nacional e global, disposta a promover o permanente estado de exceção, a produção em massa de vida nua, de vidas descartáveis no interior do campo de concentração, paradigma das sociedades contemporâneas. É nesta direção que o argumento de Giorgio Agamben, apresentado na obra “Meios sem fim: notas sobre a política”, publicada no Brasil em 2015 (p. 100), assume significativa urgência e assertividade: “Hoje não há na terra um chefe de Estado que não seja, nesse sentido, virtualmente criminoso. Qualquer um que, hoje, vista o triste redingote da soberania sabe que pode ser um dia tratado como criminoso por seus colegas”.

IHU – Retomando Agamben, em que aspectos não sabemos do que estamos falando quando falamos de democracia?

Sandro Luiz Bazzanella – Diante do exposto na questão anterior e pensando com Agamben a partir de suas reflexões, de seus escritos e, sobretudo, considerando a incomoda assertividade de seu diagnóstico sobre os paradoxos, as fraturas ontológicas, políticas e jurídicas que circunscrevem o modo de ser das sociedades ocidentais modernas e contemporâneas, é possível apontar para alguns aspectos que demonstram que não sabemos do que estamos falando quando falamos, ou nos propomos a defender a democracia.

Um primeiro aspecto se apresenta ao tomarmos a democracia como uma forma de governo consolidada em esferas estatais, institucionais e governamentais e que, supostamente, afirmaria garantias de liberdades de opinião, de expressão, de votar e ser votado. Nesta forma de compreensão, desconsideram-se as relações de poder constitutivas de todo e qualquer tecido social e, que se manifestam na organização de grupos sociais que disputam o poder estatal. Tal condição é perpassada por contradições, por articulações discursivas, que muitas vezes comprometem a percepção, senão a compreensão dos jogos de poder e os interesses em disputa. Neste sentido, as fake news na cena política brasileira dos últimos anos são exemplos tácitos desta natureza, assumindo uma condição deletéria em relação ao debate político, comprometendo o espaço público como lócus por excelência de manifestação de ideias e propostas políticas. Esta forma procedimental de conceber a democracia reduzida à divisão de poderes, a forma de governo, as instituições, a processos eleitorais retira do cidadão a necessária compreensão das exigências vitais implicadas no debate político e, por decorrência das exigências de envolvimento qualitativo, no debate sobre democracia e seus impactos na qualidade da vida política de indivíduos e cidadãos.

Outro aspecto que demonstra de forma clarividente os limites compreensivos sobre as exigências políticas e sociais da democracia se evidencia na desconsideração do permanente estado de exceção em que estamos inseridos, multiplicando-se os discursos de lideranças políticas, sociais, mas, também de juristas, ou mesmo de cidadãos em defesa da democracia. Estado de exceção e democracia são instâncias antagônicas. Onde há estado de exceção não se apresentam condições suficientes para o exercício da democracia. Nesta direção, consideremos à luz do exposto acima o argumento de Agamben presente na obra “O Estado de Exceção”, publicado no Brasil em 2004 (p. 90): “Quando a exceção se torna a regra, a máquina não pode mais funcionar”.

Nesta mesma direção, a demonstração cabal de incompreensão das exigências qualitativas da democracia, segundo Agamben se apresenta nas demandas por parte de significativos segmentos sociais por um Estado securitário, que forneça de forma suficiente garantias de segurança, de vigilância, de controle e de gestão dos corpos biológicos dos indivíduos e populações. As experiências históricas e recentes demonstram que Estados que agem a partir de prerrogativas securitárias, bem como, sociedades que demandam por segurança encontram-se no limiar de afirmação de regimes autoritários, de cerceamento das liberdades sob o pretexto da garantia da lei e da ordem, da segurança.

Democracia como técnica de gestão social

Considerar a extensão do ordenamento jurídico, a contínua e prolixa produção de leis, de normas e de regras a serem implementadas, regulamentadas, como condição da ordem não se apresenta como compreensão suficiente da democracia, senão como judicialização das relações e do espaço público e, por decorrência, da incapacidade social de se estabelecer consensos sociais resultantes do respeito ao dissenso, bem como preservando-o em sua liberdade de expressão como condição inerente à democracia.

Ao considerar os limites compreensivos sobre o que se entende por democracia na atual quadra histórica, Agamben aponta para a condição inconteste de que a democracia representativa moderna estaria desprovida de conteúdo político suficiente, apresentando-se como mera técnica de gestão social. Ou seja, estamos diante de um esvaziamento compreensivo de que a política é constitutiva de nossa condição de seres humanos que compartilham o mundo e com qual é preciso comprometer-se, promovendo formas-de-vida respeitosas em relação aos direitos humanos, as demais formas de manifestação de vida, em função das presentes e, sobretudo das futuras gerações, que herdarão este mundo. Desprovidos das exigências de comprometimento qualitativo na promoção da democracia aprofundaremos o permanente estado de exceção, a produção da vida nua, da dor e do sofrimento humano, senão o aniquilamento da vida e do mundo.

IHU – A partir dessa constatação agambeniana, em que sentido o fascismo e o nazismo são inerentes aos fundamentos da democracia?

Sandro Luiz Bazzanella – A profundidade desta questão demonstra a pertinência do diagnóstico agambeniano em relação aos fundamentos da democracia liberal representativa em curso. Antes de tudo e, para evitar possíveis equívocos analíticos, é preciso considerar que fascismo e nazismo são experiências de poder totalitário, como aponta Hannah Arendt (7), historicamente situadas nas primeiras décadas do século XX. Mais especificamente, na Itália sob a liderança de Mussolini e de seu Partido Nacional Fascista e, na Alemanha, sob a liderança de Hitler e de seu Partido Nacional-socialista dos Trabalhadores Alemães. Também é preciso considerar que estas não foram as únicas experiências fascistas existentes naquele contexto. O fascismo também se manifestou em experiências de poder na Espanha, em Portugal, entre outros países europeus. Naquele contexto, também no Brasil houve a constituição de partido de inspiração fascista, a “Ação Integralista Brasileira” (AIB), criada em 1932 e liderada pelo escritor, jornalista e político Plinio Salgado. A Ação Integralista Brasileira terá milhares de membros espalhados pelo Brasil. Mas fracassa diante da repressão conduzida por Getúlio Vargas entre 1937 e 1938 à frente do Estado Novo.

Porém, para além das experiências históricas do fascismo e do nazismo, Agamben ao longo de sua obra, sobretudo, após a publicação de “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I” e suas subsequentes investigações, argumenta que as experiências fascistas e nazistas não foram resultado do desvario de suas lideranças e de seus partidos, mas são inerentes aos fundamentos jurídicos e políticos, sobre os quais se alicerçam as democracias liberais representativas. Tais fundamentos jurídicos e políticos admitem o estado de exceção, ou seja, que o poder soberano tem à sua disposição a possibilidade de suspender o ordenamento jurídico, as garantias legais que incidem sobre indivíduos e populações a qualquer momento que assim lhe aprouver em nome da manutenção da ordem, da segurança, senão da preservação do Estado.

Tal condição se evidencia na forma como Mussolini e Hitler ascendem ao poder em seus respectivos países por vias legais e, portanto, democráticas. Durante os 12 anos que governará a Alemanha (1933 a 1945) permanecerá em vigência a Constituição de Weimar, promulgada em 1919 e, considerada naquele contexto das primeiras décadas do século XX, uma constituição democrática e progressista. Hitler, os nazistas e seus apoiadores não rasgarão a Constituição democrática de Weimar. Pelo contrário: farão uso específico do Artigo 48, que lhes permitirá tomar medidas de emergência para salvaguardar a ordem pública e a segurança do povo alemão. A partir de dispositivos legais dessa natureza justificou-se legalmente o exercício do racismo de Estado. Estratégias de eugenia foram implementadas em pacientes comatosos internados em hospitais e clínicas sob tutela do Estado alemão, bem como em indivíduos portadores de anomalias físicas e psíquicas e que demandavam tratamentos específicos. Tais práticas “legais” de racismo de estado culminarão nos campos de extermínio, em que homossexuais, anarquistas, socialistas, comunistas e judeus foram sistematicamente executados, incinerados, apagados da face da Terra.

Categorias a serem repensadas

Fenômeno desta natureza, salvaguardadas as devidas proporções e diferenças temporais e interpretativas, se encontrará no Brasil, a partir do golpe empresarial, midiático, civil, religioso e militar de 1964. O referido golpe implantou durante 20 (vinte) longos e sofridos anos a famigerada ditadura militar. Os militares não rasgam a Constituição vigente. Promulgaram um conjunto de Atos Institucionais, dos quais o mais agressivo foi o famigerado Ato Institucional 5 (AI5), que instaurou um regime de exceção suspendendo garantias constitucionais, conferindo plenos poderes ao regime ditatorial para perseguir, prender, torturar até a morte dissidentes políticos, críticos e grupos de resistência ao regime ditatorial. Passados 50 anos do golpe e da nefasta ditadura militar, a sociedade brasileira em nome da democracia ainda aguarda a verdade dos fatos e as devidas reparações pelos crimes políticos levados adiante pelo regime em nome da ordem e da segurança nacional.

Assim, das análises agambenianas resultantes dos fenômenos nazista e fascista inerentes às democracias liberais, pode-se destacar a zona de indiscernimento em que opera o poder soberano e suas prerrogativas de decidir sobre o estado de exceção, implementando normas e práticas de caráter autoritário, sob a justificativa da preservação da ordem social, da ordem democrática, bem como garantir a segurança da nação. Sob tais prerrogativas, é inerente as democracias liberais representativas e, presente nas experiências totalitárias nazista e fascista a normalização do permanente estado de exceção, por meio da promoção de ordenamentos jurídicos de combate ao terrorismo, de implementação de estados de emergência, bem como de estratégias de vigilância e controle de indivíduos e populações, agredindo frontalmente direitos fundamentais, desconsiderando direitos humanos, entre outros institutos legais.

Também flagrantes nas democracias representativas hodiernas, expedientes fascistas e nazistas foram fartamente utilizados nas pavorosas experiências totalitárias, como a produção de vida nua, de seres humanos que, destituídos de sua condição humana, são condenados à morte, ao aniquilamento. Entre eles encontramos os refugiados, os habitantes da Faixa de Gaza, os migrantes, os prisioneiros de guerra, os presidiários, os negros, os pobres, entre outros grupos humanos submetidos à condição de vida nua. Ressalte-se, ainda, práticas nazifascistas inerentes a democracia liberal representativa, presentes nas estratégias biopolíticas de estatização e gestão dos corpos biológicos de indivíduos e populações a partir de cálculos de custo e benefício favoráveis a lógica concentracionária do capital assentada na força de trabalho saudável para plena produção e consumo.

Sob tais pressupostos argumentativos acima expostos, para o filósofo italiano, categorias analíticas da política como democracia, cidadania, direitos humanos, dignidade da pessoa humana, estado de direito, terão que ser repensadas. Para Agamben, torna-se imperativo “repensar todas as categorias da nossa tradição política à luz da relação entre poder soberano e vida nua” (Meios sem fim: notas sobre a política, 2015, p. 10).

(Foto: Divulgação)

IHU – Ao reconhecermos esse nexo entre a democracia como terreno de onde podem brotar o fascismo e o nazismo, como compreender a necessidade da profanação das novas formas publicitárias e espetacularizadas assumidas pela linguagem em um tempo de algoritimização da vida?

Sandro Luiz Bazzanella – A profundidade e urgência da questão requer um olhar sobre o conceito de profanação em Agamben. Este conceito pode ser considerado uma das ideias centrais de sua obra, ao lado de outros como forma-de-vida, uso, potência-do-não, inoperosidade, tempo que resta. Todos estes conceitos arrolados pelo pensador se apresentam como operadores de estratégias de paralização das máquinas políticas, jurídicas e econômicas que operam em constante estado de exceção produzindo vidas nuas, vidas descartáveis, vidas matáveis, vidas eficientemente administradas nos campos de concentração, que se apresentam como paradigma das sociedades contemporâneas. Assim como outros conceitos agambenianos, o conceito de profanação se constitui a partir de suas investigações arqueológicas e genealógicas, no intercurso dialógico entre filosofia, teologia, literatura, poesia, entre outros textos, conformando um campo paradigmático a partir do qual é possível constituir uma ontologia do presente que se caracteriza por um olhar ao passado em busca das assinaturas que se manifestam em nosso tempo.

O conceito de profanação indica inicialmente uma cisão, uma separação, a qual estão submetidas as coisas, objetos, ritos, conceitos, visões de mundo, entre o sagrado e o profano. A esfera do sagrado é a esfera da consagração, que se constitui pela retirada de algo do uso comum, do uso comunitário e remetido à esfera e domínio do sagrado, dos deuses. Por seu turno, o conceito de profanação se apresenta como possibilidade de reversão do sagrado, de devolução ao uso comum, comunitário, ao mundo humano daquilo que foi separado e remetido à esfera do sagrado.

Porém, na Modernidade, com o processo de secularização, a esfera da sacratio, do sagrado se dissemina por todas as esferas da vida, da política, da economia, do direito até aquela da linguagem. Habita a esfera do sagrado na Modernidade a economia financeirizada, o dinheiro, o tempo necessário à experiência, à potência do pensamento, a contemplação, o dispositivo da linguagem publicitária, os dados pessoais, a política, entre outras tantas questões.

Sob tais prerrogativas, profanar se apresenta como gesto político e ético, que implica em devolver ao uso comum aquilo que foi sacralizado e que incide sobre a forma como os seres humanos conformam formas-de-vida e compartilham o mundo comum. Trata-se, portanto, de profanar o tempo necessário à vivência da experiência, de encontrar formas de usufruir no tempo que resta da possibilidade de se fazer experiências vitais que não se reduzam aos experimentos efêmeros e aligeirados promovidos pela ideologia da plena produção e do pleno consumo constitutivas do tempo cronológico, das pragmáticas e utilitárias relações humanas, do consumo do outro e de si mesmo.

Profanar a experiência da linguagem

Ainda nesta direção, trata-se profanar a experiência da linguagem para além de sua condição instrumental, espetacularizada, publicizada, transformada mercadoria a ser curtida, instantaneamente viralizada e, ato contínuo, abandonada em busca de nova verborragia discursiva. Ou seja, trata-se de devolver a experiência da palavra, a experiência da linguagem como condição humana, demasiadamente humana, retomando o pensamento de Nietzsche (8) de conferir sentido, intensidade e veracidade ao discurso político que conforma possibilidades de compartilhamento do mundo.

Estamos novamente às voltas com fenômenos sociais que flertam com variáveis políticas que desencadearam outrora a violência fascista e nazista no seio das democracias liberais representativas. Por um lado, a sacralização publicitária do dispositivo da linguagem na disseminação da mentira, dos discursos de ódio à política, a minorias, entre outras situações. Neste contexto de sacralização, de sequestro da palavra, da linguagem do uso comum, discursos públicos, de ordem da política somente fazem sentido se puderem ser consumidos no contexto das sociedades espetacularizadas em curso, como propunha Guy Debord (9). Qualquer palavra pode ofender a sensibilidade dos consumidores, promover a desconfiança dos mercados, desencadear a ira da opinião pública paradoxalmente assentada no posicionamento dos indivíduos consumidores.

A algoritimização da vida e a reapropriação da linguagem

Por outro lado, vivenciamos a avassaladora algoritimização da vida que circunscreve as relações humanas no contexto de redes sociais, de plataformas digitais, de consumo imediato e irrefletido de informações. Multiplicam-se textos e discursos desprovidos de argumentos suficientes que possam gerar no leitor/consumidor o interesse em dispor de tempo necessário para a reflexão e a devida consideração a respeito das condições nas quais a vida e o mundo em seu entorno estão submetidos.

É neste diapasão de proliferação de discursos mentirosos (fake news), de ódio, de ascendência autoritária, de narrativas simplistas, de impulsionamento algorítmico de ideias e discursos preconceituosos, de incitação à violência e destruição dos laços comuns de convivência e que conforma a experiência de habitar coletivamente o mundo, que a experiência da profanação se apresenta como possibilidade de paralisar o dispositivo da linguagem transformado em mercadoria, em linguagem publicitária espetacularizada, em linguagem privatizada nas redes e plataformas sociais, em linguagem capturada pelos algoritmos para controle dos discursos, e orientação das preferências e escolhas políticas a que os indivíduos, habitantes de sociedades individualizadas (Bauman) “devem” fazer.

Neste contexto, profanar implica estratégias reapropriação da linguagem, de devolvê-la ao uso comum, ao uso comunitário como condição do diálogo, da comunicação humana diante das possibilidades inerentes às formas-de-vida que vem, do mundo que vem.

IHU – Como analisa o momento democrático brasileiro dentro do contexto mundial de acirramento do autoritarismo de extrema-direita?

Sandro Luiz Bazzanella – As promessas parecem fazer parte da trajetória do Brasil Colônia ao Brasil República. São mais de 500 anos de expectativas, de sonhos, lutas e, em certa medida, de frustrações. No contexto da “descoberta” e/ou “invasão” europeia/lusitana das terras tupiniquins, os colonizadores recém-aportados no litoral sul da Bahia, hoje Porto Seguro, acreditavam ter alcançado o Éden, o paraíso, o jardim das delícias. Terra farta, natureza exuberante, seres humanos expostos em toda sua naturalidade e espontaneidade.

Passados os deslumbramentos, iniciais abateu-se sobre a Colônia a voracidade metropolitana da exploração. A violência do trabalho escravo forjou ao longo de séculos um ethos escravocrata que caracteriza o tecido social brasileiro até a atualidade. No bojo do ethos escravocrata, do Brasil colônia à atualidade viceja no tecido social, como expressão do sofrimento, da violência, da ausência de reconhecimento, projeções políticas messiânicas. Em algum momento surgirá um “messias”, um salvador da pátria. Um brasileiro iluminado, geralmente “homem de bem” e, sobretudo de “bens”, que colocará ordem na política e levará o povo brasileiro à prosperidade, ao paraíso prometido.

A partir deste contexto, há que se considerar que a democracia representativa brasileira não é necessariamente uma democracia liberal representativa suficiente diante dos anseios populares que poderiam legitimá-la. Representa majoritariamente os interesses dos setores sociais privilegiados, interesses vinculados à lógica de mercado autorregulado de inspiração neoliberal. Assim, os discursos de determinados grupos sociais privilegiados, que se apresentam em defesa da democracia o fazem como estratégia de legitimação do sequestro do Estado, do patrimônio público, dos bens comuns, em detrimento de compromissos com o desenvolvimento humano e social em âmbito local, regional e nacional. É uma democracia cujo fundamento é o permanente estado de exceção.

Ela pode ser suspensa a qualquer momento (como reiteradamente aconteceu em outros momentos da história política e social brasileira) quando grupos, por ironia apoiados por parte da população, decidem que a representação por parte de governantes de interesses populares não mais serve à manutenção dos seus privilégios, de seus interesses. Isto é, não há aviso prévio de que a democracia será aviltada para impetrar um impeachment, um golpe de Estado, e para isso não parece necessário mais do que meia dúzia de corajosos golpistas e uma massa de apoiadores insuflados que não hesitam em, “democraticamente”, reivindicar um sistema que oprima, ou mesmo restrinja as possibilidades de manifestação democrática.

Fragilização democrática

Sob tais pressupostos, o momento democrático brasileiro historicamente instável e em certa medida desprovido de participação contínua e consistente, não desconsiderando as lutas históricas do povo brasileiro, a articulação dos movimentos sociais e de lideranças comunitárias, apresenta-se fragilizado em sua dinâmica institucional. O poder Executivo encontra dificuldades de governabilidade em seu amplo espectro de alianças partidárias diante das pressões do Congresso Nacional. O bloco de congressistas nomeado de “Centrão” sequestrou parte do orçamento público naquilo que foi chamado inicialmente de “orçamento secreto”, atualmente renomeado de “emendas de relator-geral”, ou “RP9”. O sequestro destes recursos orçamentários coloca em risco o desenvolvimento e mesmo a continuidade de programas e políticas públicas sociais articuladas pelo poder executivo.

Por seu turno, o poder Judiciário em seu recorrente ativismo judicial enfrenta resistências e até ameaças aos juízes do STF, sobretudo no que concerne ao julgamento dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, bem como ao processo movido contra o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e parte de seus ministros militares envolvidos na trama golpista.

No plano social o que se constata é continuidade, mesmo que tenha perdido força de expressão, de discursos de ódio em relação à política, bem como a continuidade da proliferação de fake news, de pautas políticas defendidas pelo universo evangélico, envolvendo questões morais, de valores, de afirmação de uma teologia da prosperidade, que reafirma a propriedade privada, a família, e tudo isto supostamente com as bênçãos de Deus. Não esqueçamos da pauta nacionalista, o amor à pátria, as cores da bandeira, o verde e amarelo, que flerta com a xenofobia, como o preconceito, senão com a manutenção das injustiças sociais e, sobretudo, práticas nazifascistas vivenciadas nas primeiras décadas do século XX.

Flertes fascistas

Ainda neste cenário, constata-se o esvaziamento dos partidos políticos reduzidos a meras siglas desprovidas de ideologia e da disposição de formular e apresentar à sociedade brasileira projetos políticos de desenvolvimento humano e social, alicerçados na justiça social. Por seu turno, significativos segmentos da sociedade brasileira, sobretudo as classes trabalhadoras, apresentam-se retraídas, afastadas das ruas e do debate político. Talvez se possa considerar que o grau de precarização, plataformização e pejotização das relações de trabalho contribuam para tal condição, entre outras variáveis. Mas também é preciso refletir que a retórica neoliberal do trabalhador empresário de si mesmo, empreendedor e inovador tenha ascendência nesta aparente desmobilização social diante das exigências democráticas e políticas que o tempo em curso vivência.

São evidentes os efeitos dos avanços da extrema-direita em termos mundiais sobre a dinâmica política e democrática brasileira. Os discursos de salvação nacional conflagram e intensificam as disputas de projetos políticos e democráticos antagônicos no contexto da sociedade de nosso país. Neste sentido, os movimentos de extrema-direita compreenderam suficientemente a importância da disputa política nacional, a partir da corrosão das instituições, de disseminação de ódio àquilo que nomeiam como “velha política”, acusando o establishment político de plantão de corrupto, de ineficiente diante dos desafios e das urgências patrióticas que o Brasil enfrenta internamente e mundialmente. Ou, dito de outra forma, salvaguardadas as devidas proporções, estamos em um contexto social e político que flerta pavorosamente com variáveis da violência fascista, que sequestra a política do uso comum, abrindo espaço para o permanente estado de exceção e em fundo último à afirmação da barbárie e da injustiça social.

IHU – Ainda que haja a possibilidade sempre iminente da democracia gestar seus próprios inimigos, como no caso da eclosão de regimes de exceção, além de outros limites de seu próprio desenho institucional, este é o melhor sistema político que temos. Quais são os principais desafios das democracias liberais frente à deriva da economia como preponderante à política?

Sandro Luiz Bazzanella – Ao que tudo indica, a democracia liberal representativa esta comprometida em seus fundamentos como uma certa concepção de economia-política, cujo resultado se apresenta na instauração do estado de exceção, na produção de vida nua, na afirmação do campo de concentração como paradigma das sociedades por ela articuladas, senão submetidas. Se considerarmos que a base material, o regime social de divisão e produção de mercadorias necessárias à manutenção e promoção da vida humana assume significativa ascendência na conformação nas relações de poder que moldam as instituições e formas de governo, que exercem regimes de governamentalidade sobre indivíduos e populações, então há que se questionar se a economia-política instaurada pela sociedade burguesa na aurora da Modernidade têm condições de promover outras formas de participação social e de exercício da democracia que não resultem em profundas crises, violências e guerras.

Nesta direção, é preciso considerar que a emergência climática, o genocídio na faixa de Gaza, a guerra no Sudão, na Somália, no Iêmen, entre a Rússia e a Ucrânia, o tarifaço de Donald Trump, a violência contra os habitantes das periferias, a condição brutal dos encarcerados do sistema penitenciários e tantas outras situações de desumanização, violência e morte que poderiam aqui ser anunciadas, não são acontecimentos isolados. Toda esta barbárie em curso, a ameaça à continuidade da vida no planeta, se apresenta como manifestação distópica advinda da utopia burguesa, de sua economia-política centrada na autorregulação dos mercados. As lições da história são contundentes: a liberdade irrestrita de mercado promove as mais perversas tiranias. O ideário neoliberal em curso é a expressão contemporânea desta condição histórica.

Aqui não se trata de desconsiderar os avanços científicos, técnicos e, por decorrência, na qualidade de vida de segmentos significativos da população de povos e países pela economia-política constituída a partir da Modernidade. Também não se trata de apostar no planejamento, ou em formas de controle dos mercados, afinal a trajetória histórica demonstra que distorções tão brutais quanto as experienciadas no contexto de mercado também foram efetivadas sob tais regimes políticos e econômicos. O desafio é articular formas de mediação de uma economia-política comprometida com a promoção da vida em sua diversidade e totalidade. Os desafios que estamos enfrentando na atualidade, sobretudo, as questões vinculadas à emergência climática, à profunda desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida, lançando milhões de seres humanos na miséria e na fome requerem a conformação de uma economia-política comprometida com o cuidado e a promoção da vida em sua diversidade de formas de manifestação. Chegamos ao ponto em que não se trata mais de preservar única e exclusivamente a vida humana, senão a vida em suas mais diversas formas, sem as quais não haverá possibilidade de manutenção da vida humana na Terra.

Repolitizar o cotidiano

Talvez se possa considerar que seja também em função destas urgências que Agamben, ao longo de suas obras se manifeste sobre a urgência da paralisação da máquina política, jurídica e econômica que governa o mundo e violenta a vida e, ao mesmo tempo, em que aponta para a urgência de se pensar uma política que vem, um direito que vem, uma economia que vem, como condição outra de formas-de-vida que vem no tempo que resta. Ou seja, não se trata tanto de propor uma nova utopia redentora da humanidade, de engenharias sociais reformadoras, ou revolucionárias, que prometem solucionar os problemas nos quais estamos inseridos.

A Modernidade foi criativa e intensa em estratégias desta natureza e os resultados políticos e sociais estão ameaçadoramente diante de nós: é preciso repolitizar o cotidiano, comprometer-se politicamente e democraticamente com ele, com o uso comum da vida, das coisas, do mundo, mas também com mudanças de concepções e ações possíveis ao alcance de cada ser humano no tempo e espaço em que vive, na comunidade em que se encontra inserido.

IHU – Em que aspectos o desenvolvimentismo e o paradigma do progresso ilimitado são falácias que problematizam o funcionamento democrático das sociedades?

Sandro Luiz Bazzanella – Em relação aos imperativos do desenvolvimento afiliados ao paradigma das filosofias do progresso ilimitado constitutivas da modernidade, Agamben argumenta no texto intitulado “O que é um povo?”, presente na obra “Meios sem fim: notas sobre a política” (2015) que o desenvolvimento se apresenta como uma obsessão própria do nosso tempo. Mais especificamente, assim se pronuncia o filósofo: “A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz no nosso tempo porque coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura” (p. 39). Diante do posicionamento desse pensador é mister nos questionarmos: Que exigências a obsessão do desenvolvimento apresenta à indivíduos, sociedades? De que forma se afirmou na contemporaneidade a obsessão pelo desenvolvimento? A obsessão pelo desenvolvimento é alcançável, ou apenas uma quimera a motivar sonhos, expectativas e, sobretudo, a consumir as energias vitais de indivíduos, sociedades e povos capturados por ela?

Evidentemente que não conseguiremos nos posicionar neste espaço em relação a estes questionamentos em função de sua profundidade e por decorrência das exigências reflexivas extensivas que requerem, mas é possível considerar que a Modernidade, ao elevar a economia à centralidade da esfera pública (Arendt), reduz a política a um mero meio sem fim. Ou, dito de outro modo: a Modernidade captura a experiência temporal da vida e a submete à lógica da produtividade. Trata-se de uma temporalidade vital meramente cronológica e com demanda teleológica de alcance do desenvolvimento em algum momento do futuro e que por isso mesmo requer inovação, capacidade de empreendedorismo. Se ainda não alcançamos o tão almejado desenvolvimento na forma da plena produção e do consumo é porque não fomos empreendedores e inovadores o suficiente.

Esta ideologia desenvolvimentista, caracterizada pela eficiência produtiva, instrumentaliza a vida e, sobretudo, impede a experiência com a vida a partir de uma relação com uma concepção de tempo diametralmente diferente do tempo da produção e do consumo. Trata-se de um esvaziamento do tempo presente, do tempo que resta em que transcorre a vida e a possibilidade de fazer a experiência do uso comum e comunitário da vida, tornando-a um simples meio a ser consumido na lógica da produção e do alcance do desenvolvimento.

Esvaziamento democrático

Outro aspecto inerente às falácias das filosofias do progresso e que incidem no ideário contemporâneo do desenvolvimento e que necessariamente se vinculam com o argumento anterior, podem ser consideradas a partir do esvaziamento da política remetida à condição de meio sem fim. Em outras palavras, a política passa a ser concebida como mera gestão econômica e técnica dos desafios do desenvolvimento e que incidem sobre o governo biopolítico de indivíduos e das populações compreendidos como “recursos humanos”, como “capital humano e social”, à disposição do poder soberano em suas demandas econômicas de potencialização de tais recursos à sua disposição como condição do desenvolvimento. Sob tais prerrogativas, a lógica do desenvolvimento flerta com estratégias de produção e administração da vida nua. Trata-se de garantir as condições mínimas de sobrevivência aos “recursos humanos”, a sua disposição para a reprodutibilidade da dinâmica do desenvolvimento. Neste contexto, a política reduzida a mero meio está desprovida de sua potencialidade de qualificação da vida por meio do compartilhamento da vida e do mundo.

Há que se considerar ainda que as promessas do desenvolvimento e, promessas exigem crença, convivem pacificamente com o permanente estado de exceção que suspende e retira direitos sociais, afronta direitos humanos, promove e justifica a produção de vida nua, intensificando a lógica do campo de concentração como paradigma das sociedades em que nos encontramos inseridos. Ou seja, há indicativos que as promessas do desenvolvimento naturalizam a vigilância e o controle sobre indivíduos e populações como condição necessária de alcance em algum momento do futuro das benesses do desenvolvimento advindas da obediência à lógica da plena produção e do pleno consumo no contexto de sociedades espetacularizadas em curso. Se ainda não alcançamos o desenvolvimento é porque ainda não obedecemos suficientemente aos seus imperativos produtivistas.

Sob todos estes aspectos, entre outros que ainda poderiam ser arrolados, a democracia como esfera da participação, do envolvimento com o debate público em função da garantia dos bens públicos comuns necessários à manutenção e qualificação política da vida, assume condição instrumental, meramente retórica. Ou seja, a democracia é esvaziada de sua condição de poder constituinte, de espaço privilegiado de debate, de manifestação do dissenso, da pluralidade de ideias e concepções de vida e de mundo, para se tornar o lócus de decisões tecnocráticas vinculadas às exigências da lógica de mercado e suas demandas de desregulamentação, de flexibilização, de ajuste fiscal, entre outras tantas medidas e imposições características do estado de exceção e de precarização da vida em que nos encontramos inseridos.

IHU – Por outro lado, qual é a importância da democracia no desenvolvimento regional das comunidades de forma sustentável e eticamente regulada?

Sandro Luiz Bazzanella – À luz dos argumentos expostos até o presente momento é exercício necessário considerar que é no plano local, entendido aqui também como regional, que a vida acontece em sua cotidianidade. É no plano local/regional que nascemos, nos reconhecemos como seres humanos na relação com os outros seres humanos, vivenciamos memórias afetivas, participamos de tradições, de crenças, de perspectivas de mundo. É no plano local/regional que a quase totalidade das pessoas constituem sua vida afetiva, familiar, profissional, comunitária e que escolhem para viver e usufruir os anos finais da vida. Também é no plano local/regional que se mantém a memória de acontecimentos passados, marcados por conquistas, ou mesmo por violências que impactaram a vida de indivíduos e da comunidade.

Exemplo desta condição – entre tantos outros presentes na história local e regional brasileira – é a região do Contexto no Planalto Norte Catarinense, onde se situa a Universidade do Contestado e o Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional em que atuo ao longo dos anos. Esta região foi palco do maior conflito de luta pela terra no Brasil no início do século XX, a chamada Guerra do Contestado (10). Neste conflito, o Estado brasileiro, por meio de seu aparelho coercitivo, o exército, a serviço de interesses de grupos econômicos sobre aquelas terras, bem como de interesses da empresa norte-americana Southern Brazil Lumber and Colonization Company, na exploração de madeiras nobres extraídas das matas da região, massacrou comunidades inteiras de seres humanos que ocupavam estas terras e dela arrancavam o sustento de suas famílias e de suas comunidades. Apesar dos esforços do Estado brasileiro, do exército e dos grupos econômicos e sociais diretamente envolvidos em apagar os vestígios do sangrento conflito, a memória da barbárie ecoa nos relatos dos sobreviventes, de seus descendentes, bem como de pesquisadores comprometidos com o resgate dos acontecimentos de seu conhecimento público.

Ainda é preciso considerar que é no plano local/regional que ecoam impactos de decisões políticas e econômicas nacionais e regionais. Mas é também neste plano cotidiano da vida que se podem estabelecer, de forma mais intensa e direta, laços de cooperação e solidariedade diante de desafios e situações que ameaçam a vida de indivíduos e da própria comunidade. Também é nesta dimensão comunitária local/regional, que talvez ainda se possa fazer alguma experiência com a vida que transcenda os efêmeros experimentos à que a sociedade do espetáculo, da plena produção e do consumo em âmbito global impõe diuturnamente para povos e países. Talvez é neste plano local/regional que em algum momento ainda se possa fazer experiência do uso livre das coisas, da vida, das relações humanas e com as demais formas de vida, desprovidos dos imperativos do valor de troca, ou imperativos utilitaristas do valor de uso característicos das sociedades de mercado hegemônicas no atual contexto de mundo.

Democracia que vem

Pensando com Agamben a partir de suas reflexões na obra “A comunidade que vem”, publicada no Brasil em 2013, talvez se possa considerar o local/regional como expressão de singularidades que resistem à captura pelas estratégias de hegemonização global promovida pela voracidade da expansão de mercados e consumidores. Talvez seja neste âmbito comunitário, local e regional que ainda se possa fazer uso comum da vida, que se possa manifestar o ser qualquer, a partir de suas experiências de inoperosidade, no exercício de sua potência-do-não diante dos dispositivos de captura de sua subjetividade. “O ser qualquer tem sempre um caráter potencial, é igualmente certo que ele não é apenas potência deste ou daquele ato específico, nem é, por esse facto, simplesmente incapaz, privado de potência, nem [tampouco] capaz de qualquer coisa indiferente, todo poderoso: propriamente qualquer é o ser que pode não ser, que pode sua própria impotência”.

Sob tais pressupostos, é permissível considerar a importância comunitária local/regional como lócus privilegiado de experiências com a democracia que vem. Ou dito de outra forma, a democracia que vem pode encontrar no âmbito local/regional formas de participação comunitária que promovam a qualificação política da vida; de formas de participação que se contraponham ao permanente estado de exceção que captura a vida e a reduz à mera condição biológica, ou de meros recursos humanos à disposição da lógica administrativa do campo de concentração; de formas de conceber o mundo em toda sua potencialidade, para além do reducionismo espetacularizado promovido pela miríade de produtos a serem meramente consumidos e descartados; de formas de participação que se suspendam o funcionamento de dispositivos estatais e econômicos que se contrapõem ao cuidado com a vida em sua diversidade de formas, de reciprocidade nas relações humanas, de uso comum da vida.

Assim, é no plano local/regional que experiências de uma democracia que vem possam surgir em toda sua singularidade, contribuindo para o exercício da potência-do-não, da inoperosidade necessária à paralização da máquina política, da máquina jurídico-punitiva, da máquina econômica promotoras do progresso, do desenvolvimento e, consequentemente, do rastro de destruição que diuturnamente tende a aumentar, como alertava Benjamin (11) levando aos limites as forças vitais, humanas e naturais que constituem o mundo.

Notas

(1) Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer. Formado em Direito, em 1965, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, participou dos seminários promovidos por Martin Heidegger, no fim dos anos 1960. De 2003 a 2009 lecionou Estética e Filosofia, no Instituto Universitário de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Em seguida decidiu abandonar a atividade de ensino nas universidades italianas. Atualmente dirige a coleção “Quarta prosa” da editora Neri Pozza. na Università IUAV em Veneza. A sua produção se concentra nas relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e, fundamentalmente, a política. Responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, foi professor visitante da New York University, antes de se decidir a não mais entrar nos Estados Unidos, em protesto contra a política de segurança do governo Bush. Sobre o pensamento de Agamben, confira a Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna.

(2) Zygmunt Bauman (1925-2017): sociólogo, filósofo, professor universitário e teórico social polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia, referência em estudos sobre pós-modernidade e criador do conceito de modernidade líquida. De acordo com Bauman, nos tempos atuais, as relações entre os indivíduos nas sociedades tendem a ser menos frequentes e menos duradouras. Uma de suas frases poderia ser traduzida, na língua portuguesa, como “as relações escorrem pelo vão dos dedos”. Segundo o seu conceito de “relações líquidas”, formulado, por exemplo, em Amor Líquido, as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser mero acúmulo de experiências, e a insegurança seria parte estrutural da constituição do sujeito pós-moderno, conforme escreve em Medo Líquido.

(3) Thomas Morus (1478-1535): filósofo, homem de estado, diplomata, escritor, advogado e homem de leis, ocupou vários cargos públicos, e em especial, de 1529 a 1532, o cargo de “Lord Chancellor” (Chanceler do Reino — o primeiro leigo em vários séculos) de Henrique VIII da Inglaterra. É geralmente considerado como um dos grandes humanistas do Renascimento. Sua principal obra literária é “Utopia”.

(4) Tommaso Campanella (1568-1639): frade dominicano, filósofo, poeta e teólogo italiano do Renascimento, autor de obra vasta, abrangendo gramática, retórica, filosofia, teologia, política e medicina. Para ele, as ciências descrevem os seres “como são”, enquanto à filosofia, sobretudo à metafísica, cabe explicar “por que são”. Sua obra mais célebre é “A Cidade do Sol”.

(5) Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo empirista, cientista, ensaísta inglês, considerado um dos fundadores da Revolução Científica. Como filósofo, destacou-se com uma obra onde a ciência era exaltada como benéfica para o homem. Em suas investigações, ocupou-se especialmente da metodologia científica e do empirismo, sendo muitas vezes chamado de fundador da ciência moderna. Sua principal obra filosófica é o “Novum Organum”, também autor de “A Nova Atlântida”.

(6) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Sobre seu pensamento confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia); Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, e Edição 119, de 18-10-2004, Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois.

(7) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975.

(8) Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, a filosofia e a ciência, exibindo certa predileção por metáfora, ironia e aforismo. É famoso por sua crítica à religião, em especial o cristianismo. Sobre seu pensamento, confira a Edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-24, intitulada Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo, e a Edição 529, de 01-10-2018, intitulada Nietzsche. Da moral de rebanho à reconstrução genealógica do pensar.

(9) Guy Debord (1931-1994): escritor marxista francês e um dos pensadores da Internacional Situacionista e da Internacional Letrista. Seus textos foram uma das inspirações para as manifestações do Maio de 68, especialmente a retorno que propunha à última das teses sobre Feuerbach de Karl Marx. A Sociedade do Espetáculo é o trabalho mais conhecido de Guy Debord. Em termos gerais, suas teorias atribuem a debilidade espiritual, tanto das esferas públicas quanto da privada, a forças econômicas que dominaram a Europa após a modernização decorrente do final da Segunda Grande Guerra. Ele faz a crítica, como duas faces da mesma problemática, tanto ao espetáculo de mercado do ocidente capitalista (o espetacular difuso), quanto ao espetáculo de estado do bloco socialista (o espetacular concentrado).

(10) Guerra do Contestado: conflito armado ocorrido de outubro de 1912 a agosto de 1916, que teve como partes beligerantes posseiros e pequenos proprietários de terras contra os governos dos estados de Santa Catarina e Paraná, além do Governo Federal brasileiro. O palco foi uma região rica em erva-mate e madeira, disputada por ambos os estados e que ficou conhecida como “Contestado”.

(11) Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico Gershom Scholem. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), Teses Sobre o Conceito de História (1940) e a monumental e inacabada Paris, Capital do século XIX.

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