08 Agosto 2025
"No plano político, a linguagem torna-se um instrumento de poder. Proibir o termo 'genocídio' visa evitar que se consolide, na opinião pública, a percepção de que Israel vem cometendo crimes muito mais graves do que meras operações militares ou de autodefesa."
O artigo é de Luciano Fazio, matemático pela Università degli Studi de Milão, especialista em previdência pela Fundação Getulio Vargas e consultor externo do DIEESE para assuntos previdenciários. É também autor de O que é previdência do servidor público (Loyola, 2020).
Desde o final de 2023, as ações militares israelenses em Gaza atingiram sistematicamente civis palestinos, suas casas e as infraestruturas essenciais para a sobrevivência: água, alimentos, medicamentos e energia. Não se tratou apenas de “danos colaterais” decorrentes de ataques a alvos militares: a própria população civil se tornou o alvo deliberado.
Nesse contexto a palavra “genocídio” se impõe: um termo pesado, que expressa a vontade de aniquilar um grupo humano enquanto tal. Desde o início desta guerra, as vítimas civis palestinas já superaram as 60 mil pessoas.
Ainda assim, em Israel, o governo e sua maioria parlamentar limitam a liberdade de expressão, proibindo a expressão “genocídio” para descrever as próprias ações em Gaza. Nesses dias, um deputado israelense foi retirado à força da tribuna do Parlamento por ter ousado qualificar dessa forma as operações do exército. E no exterior, diversas personalidades do mundo judaico tentam censurar o termo.
Mas o que significa, hoje, impedir de nomear o que está acontecendo?
O termo “genocídio” não é uma hipérbole retórica. É um conceito jurídico definido pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, que designa a intenção de destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Reconhecer um ato como genocídio não é, portanto, apenas uma questão de linguagem, mas de direito internacional: traz sérias consequências políticas e penais para o Estado acusado e para os indivíduos envolvidos.
Em dezembro de 2023, a África do Sul denunciou Israel à Corte Internacional de Justiça (CIJ) por violar a Convenção sobre o Genocídio. Em janeiro de 2024, a Corte julgou as acusações “plausíveis” e determinou medidas provisórias: proibir ações genocidas, garantir a entrada de ajuda humanitária e permitir investigações independentes. Israel, porém, não as cumpre.
Em novembro de 2024, o Tribunal Penal Internacional (TPI) — responsável por julgar indivíduos —emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro e o ex-ministro da Defesa de Israel, por ter usado a fome como arma de guerra e cometido vários crimes contra a humanidade.
O debate, portanto, já não é um simples confronto de opiniões: está nas mãos das mais altas instituições jurídicas do mundo.
No plano político, a linguagem torna-se um instrumento de poder. Proibir o termo “genocídio” visa evitar que se consolide, na opinião pública, a percepção de que Israel vem cometendo crimes muito mais graves do que meras operações militares ou de autodefesa.
Surge então um elemento muito delicado: a memória do Holocausto. Um trauma histórico real e imenso é evocado e, em parte, “monopolizado” para legitimar políticas atuais. As atrocidades sofridas pelos judeus durante a 2ª Guerra Mundial continuam a ser usadas como escudo moral, até para justificar ações de perseguição ou aniquilamento de outros povos.
A psicologia cognitiva nos ensina que as palavras têm um enorme poder na formação das percepções. Nossos pensamentos se estruturam por meio delas, mesmo quando não são pronunciadas. Termos fortemente carregados de significado, como “genocídio”, ativam esquemas mentais e emocionais poderosos. Proibi-los significa neutralizar essas reações. O próprio uso de eufemismos, como “operações militares”, já reduz o impacto emocional e favorece uma racionalização moral: aquilo que antes parecia inaceitável torna-se, gradualmente, “tolerável”, legitimando a escalada da violência contra os civis palestinos.
No plano ético e dos direitos humanos, impedir que se nomeie o genocídio palestino equivale a negar ou minimizar a dor das vítimas e a desacreditar as denúncias vindas da ONU, ONGs e testemunhas diretas. Esse silenciamento oculta abusos e violações graves, bem como destrói a confiança em quem o promove.
As palavras não são neutras: podem revelar os fatos ou escondê-los; podem defender os direitos humanos ou negá-los. Reivindicar o uso do termo “genocídio” não é um ataque à existência do Estado de Israel: é um apelo urgente para deter um massacre que acontece diante dos olhos do mundo.