05 Novembro 2025
"A saúde é um campo de emancipação coletiva. Falar em direito universal à saúde é afirmar o valor da vida acima do valor do lucro. E é aqui que a Bioética da Emancipação se diferencia das bioéticas meramente normativas: ela não se contenta em regular o que já está posto, mas questiona quem define as regras, quem se beneficia delas e quem é excluído de seu alcance."
Artigo de Marcos Aurélio Trindade, mestre em Bioética PUCPR e mestre em Antropologia Social UBA, membro da Sociedade Brasileira de Bioética.
Eis o artigo.
Em tempos em que a técnica tende a se sobrepor ao humano e a normatividade parece ocupar o lugar da escuta, pensar a bioética como um campo de emancipação talvez seja um gesto de esperança. A bioética nasceu para interrogar a vida suas fronteiras, suas dores, seus limites e possibilidades. Contudo, em sua trajetória, foi se tornando, em muitos contextos, um espaço de regulamentação, análise de dilemas e gestão de conflitos morais. É preciso, sem negar sua importância, recordar que antes de ser uma disciplina aplicada, a bioética é uma atitude de pensamento sobre o valor da existência e sobre a vocação humana de ser mais.
A expressão “ser mais”, formulada por Paulo Freire, carrega uma densidade ética e ontológica rara. Em Freire, o ser humano não é uma substância acabada, mas uma possibilidade em movimento. A existência se cumpre na medida em que o sujeito se reconhece como capaz de transcender as determinações que o oprimem, recriando-se em comunhão com os outros. O “ser mais” não é privilégio, nem promessa individual; é um processo coletivo de humanização, tecido no diálogo, na solidariedade e na consciência crítica. Freire nos lembra que educar é libertar, e libertar é criar condições para que o humano se reconheça como autor de sua própria história.
Se trazemos essa visão para o campo da bioética, ela nos convida a deslocar o olhar: da vida apenas como dado biológico, para a vida como experiência de dignidade e transcendência. A bioética pode, então, ser compreendida como espaço de amadurecimento humano, um caminho que une cuidado, reflexão e compromisso. Falar em uma “Bioética da Emancipação” é afirmar que a ética da vida não se limita a proteger ou a intervir, mas deve também despertar, nutrir e libertar. É uma bioética que não nasce do medo do erro, mas do amor à existência.
Tal perspectiva não rompe com outras vertentes da bioética, mas as amplia. A bioética da proteção, ao zelar pelos vulneráveis, já contém em si uma semente de emancipação, pois protege para que o outro possa crescer. A bioética da intervenção, ao propor justiça social, também abre caminhos de libertação. A proposta aqui é apenas deslocar o centro do discurso: pensar a emancipação não como etapa posterior, mas como essência da experiência ética. Emancipar é devolver ao humano a sua palavra, o seu tempo e a sua potência de transformar.
Nessa direção, as contribuições de Volnei Garrafa e Miguel Kottow, Thiago Rocha da Cunha ao pensarem a bioética latino-americana são fundamentais. A ênfase no contexto histórico, nas desigualdades e nas vulnerabilidades estruturais revela que não há ética sem mundo. A vida não é abstração universal, mas tecido social e histórico concreto. Pensar a bioética a partir do Sul global é reconhecer que o sofrimento humano tem causas localizadas, e que a dignidade só floresce onde há justiça e solidariedade. A emancipação, portanto, é também política e cultural: um movimento de libertação das estruturas que negam a vida plena.
Do mesmo modo, Schramm, ao falar em uma bioética de proteção, recorda que o primeiro gesto ético é o cuidado. Mas cuidar não é tutelar — é oferecer espaço, tempo e apoio para que o outro se torne sujeito de si. A proteção, compreendida assim, é a antessala da emancipação: um gesto que acolhe para que o outro possa caminhar com autonomia e consciência. O cuidado se transforma, então, em um ato político de resistência à desumanização.
Dialogando com o pensamento de Jan Helge Solbakk, que compreende a bioética também como poética — uma bio(po)ética —, podemos compreender que emancipar é também dar sentido à vida por meio da narrativa. A ética se torna linguagem e arte: não se reduz ao cumprimento de deveres, mas à criação de significados. O ser humano se emancipa quando narra sua própria história, quando reconhece que a vida é diálogo e que o cuidado é forma de poesia encarnada. A bioética, nesse sentido, precisa recuperar a dimensão estética da existência, onde o valor da vida se revela naquilo que comove, transforma e aproxima.
Susana María Vidal, ao defender uma bioética educadora e latino-americana, aponta para a necessidade de formar sujeitos críticos, conscientes e solidários. Sua visão ressoa com a pedagogia freireana e com a bioética da emancipação: ambas se alicerçam no diálogo e na formação integral da pessoa humana. Não há emancipação sem educação, nem bioética sem escuta. Vidal convida a pensar uma ética viva, comprometida com os contextos sociais e com as realidades que moldam o corpo e a alma dos povos latino-americanos. Nessa escuta plural, o “ser mais” se torna possível.
Uma Bioética da Emancipação não é, portanto, apenas uma nova corrente teórica, mas uma atitude diante da vida. É a disposição de ver o outro não apenas como vulnerável, mas como portador de potência. É uma ética que não teme a incerteza, pois sabe que a liberdade humana se constrói no encontro. Seu horizonte é o de um humanismo integral, que une saber, sensibilidade e solidariedade. Trata-se de compreender que emancipar é também cuidar, é abrir espaço para o florescimento do ser, é reconhecer que a vida é sempre inacabada, e que a dignidade se renova quando nos comprometemos com o crescimento do outro.
Em tempos marcados por desigualdades, guerras e desumanização, pensar a bioética como emancipação é recuperar a fé no humano. É acreditar que cada gesto de cuidado, cada palavra de reconhecimento, cada prática de solidariedade tem força para romper os muros da indiferença. É ver, no campo da saúde, da ciência e da educação, oportunidades de libertar e de recriar. A bioética, então, deixa de ser apenas um espaço de normas e se torna uma experiência de encontro: encontro com a vida, com o outro e com o próprio sentido de existir.
Talvez essa seja a maior herança de Freire à história da educação e agora trago para a Bioética: lembrar-nos de que o humano não é um dado, mas uma tarefa. Ser mais é aprender a ser com o outro. E nesse aprender, ético e amoroso, nasce a possibilidade de uma bioética verdadeiramente emancipadora — uma bioética que sonha, que educa, que cuida e que transforma.
Defendo a possibilidade e a urgência de uma Bioética da Emancipação — uma ética que não se acomode à passividade das estruturas impostas, mas que proponha rupturas com o paradigma de mercado que tem sequestrado o sentido humano da saúde. A saúde, nesse contexto, deixou de ser um direito e passou a ser tratada como um produto de consumo, regulado por lógicas de rentabilidade, competição e exclusão.
Vejo com inquietação o modo como o modelo estadunidense de saúde, e como o Conselho Federal de Medicina do Brasil e seus companheiros, bem como as escolas médicas têm tentado trazer esse modelo amplamente mercantilizado, transformando o sofrimento em oportunidade de lucro. O hospital, a clínica e até o corpo humano tornaram-se, muitas vezes, extensões do capital, e não espaços de cuidado. Nesse modelo, quem possui dinheiro sobrevive; quem não possui, adoece em silêncio. A ausência de universalidade e a privatização dos processos de cura configuram, a meu ver, um dos maiores fracassos éticos da contemporaneidade.
A Bioética da Emancipação, que venho defendendo, nasce como um contraponto a essa lógica. Ela não se limita à reflexão moral sobre dilemas clínicos, mas propõe uma ação libertadora diante da injustiça e da desigualdade em saúde. Inspirada em Paulo Freire e dialogando com o pensamento de Garrafa, Schramm, Solbakk e Susana Vidal, de Cunha na Bioética Crítica, essa bioética é um ato político-pedagógico: busca formar consciências críticas, capazes de reconhecer que o sofrimento humano não pode ser administrado como mercadoria.
A saúde, para mim, é um campo de emancipação coletiva. Falar em direito universal à saúde é afirmar o valor da vida acima do valor do lucro. E é aqui que a Bioética da Emancipação se diferencia das bioéticas meramente normativas: ela não se contenta em regular o que já está posto, mas questiona quem define as regras, quem se beneficia delas e quem é excluído de seu alcance.
Defendo que precisamos criar mecanismos concretos de humanização: formação ainda mais ética de profissionais sensíveis à dor do outro, mais políticas públicas que priorizem o cuidado integral e a redistribuição equitativa dos recursos sanitários. A técnica deve estar a serviço da vida, e não o contrário. Não é possível falar de autonomia se os sujeitos estão submetidos a condições de pobreza, fome ou abandono. A verdadeira autonomia nasce da justiça social.
Pensar em uma possível Bioética da Emancipação, portanto, não é apenas uma teoria, mas uma práxis libertadora. Ela convida à escuta, à solidariedade e à transformação das estruturas que perpetuam o sofrimento. É uma ética que olha para o mundo com indignação, mas também com esperança — a esperança de que ainda podemos reconstruir a saúde como espaço de dignidade e não de mercado. E assim reafirmo: a emancipação é o caminho possível para uma bioética que devolva à vida o seu valor inegociável.
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