O tiro e os renascimentos. Entrevista com Roberto Lima

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

05 Novembro 2025

A alma de um homem é um abismo intransponível. A de Roberto Lima, um abismo talhado no granito da História do asfalto da Av. Rio Branco.

A entrevista foi concedida por e-mail a Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ. O texto foi cedido ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU pelo entrevistador. 

O ano era 1986, um ano de fervor religioso e febril pela magia do jogo da bola, de esperança pintada nas ruas como não se vê mais, um Brasil todo colorido de verde e amarelo, cores que nos foram sequestradas. A Copa do Mundo realizar-se-ia no México. Lá o futebol de outrora iria mostrar o balé dos deuses terrenos.

Para Roberto, o campo de batalha seria outro. Nascido em 1961, este homem, filho de Zélia e Wilson, homem negro de vinte e cinco anos, decidira vestir o peso do Estado, não qualquer função pública, mas a que envolve o maior perigo possível – entrava para a Academia de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

Entrar não seria honesto com o homem, ele estreou na polícia. O revólver sempre fora secundário, a inteligência era a sua primeira arma, mais afiada que qualquer lâmina ou perfurante do que qualquer projétil.

O destino se encarregara de colocá-lo na 14ª DP, no Leblon. O coração da cidade partida, onde a opulência e a miséria se olham de soslaio, uma com ódio da outra. E o que encontra um homem em seu caminho? O amor! Essa flor que nasce nas frestas das pedras.

O nome dela era Izabel, tinha como cartão de visitas uma das profissões mais belas que alguém poderia ter: Assistente Social. E onde o destino fez seu trocadilho? Numa carceragem. Sim! Nesses corredores sombrios onde a humanidade é posta à prova, ele como policial, a ordem encarnada; ela, a estagiária, a compaixão viva da dor dos prisioneiros sem Direitos num Estado punitivista. Um Departamento de Polícia é treinado para vir o crime, ela viu naquele Departamento o homem por trás do sotaque do Distrito Policial. Ali, na antessala do inferno, suas mãos se tocaram, o destino foi um fato: casaram-se. Mas a vida é como se fosse um peão cego, ele gira e cai em qualquer lugar, nem sempre nos desejados. Roberto trabalhou sempre pela Virtù, faltou-lhe a Fortuna.

Era a noite de 02-05-1987, Roberto portava o distintivo que lhe enchia o peito de uma gravidade hispânica. A Avenida Rio Branco, veias de asfalto com placas esclerosadas de carros de dia, estava àquela hora, vazia. Na viatura descaracterizada, Roberto e seu companheiro, Guilherme de Souza, vigiavam a cidade, guardavam os portões de São Sebastião, o Santo que tem as chaves da cidade à beira mar.

Primeiro o som, o grito agudo do vidro a se estilhaçar num chão sujo de um boteco, choro de mulheres, e aquelas vozes graves, tóxicas, de homens bêbados, um bar, na altura da Sete de Setembro, três homens gigantes de fúria narcísica, quebravam o boteco. Roberto estava no banco do passageiro, como policial, era seu dever precípuo descer, averiguar, e, eventualmente, autuar, em nome da lei que servia.

Ele não sacou a arma primeiro, ele sequer a tirou do coldre, a polícia, para ele, ainda era a palavra, a autoridade que ordenava mostrando um símbolo com os distintivos do aparato protetivo da cidade. Ele avançou, a voz firme, o símbolo erguido como um escudo: “Polícia!” A palavra ecoou, mas a resposta foi o trovão maldito, a ira de um Olimpo pagão.

Um homem alto, assustado, talvez mais pela palavra “polícia” do que pelo homem negro à sua frente sacou do jeans surrado a sentença da noite de Roberto. Um revólver calibre 38, tão comuns em quaisquer cidades grandes do Brasil. Disparou sem piedade, mirando no peito.

Roberto não sentiu dor, não a dor que rasga quando se rala um joelho; sentiu o fogo arder sua pele, um queimor que subiu do peito e se espalhou, como um veneno, num formigamento que lhe roubou as mãos e os pés, seu corpo caiu sob o próprio peso. Os criminosos... Fugiram. É a expertise das ruas cariocas.

Guilherme viu o companheiro tombar, o sangue jorrava pela camisa amarela de Roberto e inundava o peito. A Academia de Polícia ensina o tamponamento, mas a teoria é uma coisa fria; a vida, principalmente a vida no Rio, é quente e tem cor vermelha. Guilherme, desestruturado, rasgou a própria camisa suada – fora um trapo de desespero, na esperança de que funcionasse, pressionou o buraco da frente, mas logo percebeu que o sangue borbotava nas costas de Roberto: a conclusão foi lógica, a bala transpassou o corpo, a vida de Roberto, Guilherme intuiu, a partir daquele momento, se equilibrava no vazio.

Como um pai que resgata um filho da água, Guilherme o tomou nos braços, o peso quase morto de Roberto no banco de trás. O carro cantou pneus. A Rio Branco era uma pista rumo à única esperança: Souza Aguiar. Aquele hospital a catedral sagrada dos feridos da guerra urbana da cidade que não admite que chegou num ponto insustentável.

Guilherme gritava – Fale comigo, Roberto! Não dorme, era instinto puro. No hospital, o primeiro rosto... um jovem médico de trinta e dois anos. Dr. Wiliam. Ele não precisou de mais que um olhar. A gravidade era máxima, a máscara de oxigênio separaria Roberto dos braços da morte. Roberto, enfim, entregou-se ao sono, o mundo se apagou.

O tempo é uma ilusão engendrada pela mente, para o mundo, ele seguiu. A Argentina ganhou a Copa do Mundo, Maradona fora sagrado Díos. Para Roberto, o tempo se partira em dois. Não havia futebol, companheiros, esposa, filhos nem sonhos. Estava tudo em suspenso, entre a vigília e o sono profundo, o bip irritante da máquina que o mantinha vivo.

Quando Dr. Wiliam, quinze dias depois, lhe falou, a voz ainda parecia vir de muito longe. “Três centímetros, Roberto. Três.” A artéria coronariana esquerda quase fora destruída, não teria dado tempo de chegar ao hospital, amigo. Continuou o médico: você tem duas datas de nascimento, o dia em que você nasceu, e o dia em que você entrou neste hospital, dia 2 de maio. Aquele ano de 1986 fora o ano das mãos invisíveis: a mão de Maradona no jogo no gol contra a Inglaterra, e a mão que desviou a bala da artéria ou do coração de Roberto. Maradona disse que seu gol fora feito pela mão de Díos, Roberto acredita no mesmo Deus, só que com propósitos um pouco mais efetivos que uma partida de futebol.

Duas semanas depois Roberto despertou, seu corpo era uma topografia de dores. Era como se fosse o Rio de Janeiro num dia de chuva, um mar de sofrimento entre a serra e o mar. Uma cidade impossível, assim como um salvamento impossível. Ao seu lado, os pilares de sua existência – Izabel, seu grande amor, os olhos fundos de noites em claro, a mão segurando a sua como se o prendesse à terra. Seu pai, Wilson. E sua mãe, Zélia.

A visita acabou, o silêncio do quarto de hospital é um silêncio que pesa, que rumina, e Roberto ruminou. O que era esta profissão? Este orgulho? Um distintivo que quase lhe custara o direito de ver o filho, o pequeno Raphael, de dois anos, crescer? A remuneração... irrisória. A sua vida era um troco? Ele tinha se convertido num escudo humano para um Estado que mal lhe dava o pão.

A decisão veio pela necessidade de compreender aquele estado de coisas para não enlouquecer. Ele vinha de uma família pobre, tinha pais a ajudar, tinha Izabel, tinha Raphael de dois anos, abandonar o ofício de policial não era uma opção; era um luxo que ele não podia pagar. O idealismo da Academia, no entanto, morria um pouco ali, naquele leito, substituído pelo aço frio de uma cama que mal lhe cabia.

Ele decidiu continuar, mas o homem que voltou às ruas não era o mesmo. Dois anos se passaram. A bala não ficara alojada no corpo, mas na memória. E o que ele via? Mortes e as carceragens, depósitos de homens pretos e jovens, como ele mesmo, ele via os presos, amontoados, sem sequer ver um juiz – a tal “audiência de custódia” era um sonho distante.

E ele começou a ouvir o que antes lhe passava despercebido, o som das bocas dos advogados. Aquele dialeto estranho, hermético. Habeas corpus. Caput. Inciso. Data venia. Uma linguagem que parecia mágica, um feitiço que abria grades, ou as fechava para sempre. Ele percebeu como aquela língua trancava homens que atiravam friamente, e como, por outro lado, alguns policiais faziam “justiçamento”, passando por cima de todas as leis que juraram guardar. Servir e Proteger era uma frase totalmente vazia na boca da instituição.

Ele, o homem da ação, sentiu a necessidade de entender a palavra, aquele mecanismo infernal de papéis, carimbos e latim: Data venia. Habeas Corpus. Ele, o homem da rua, o homem do tiro, precisava entender a engrenagem que movia o destino dos homens. Ele encontrou a saída: Tornar-se, ele mesmo, advogado. Não se importou quando ouviu de seu próprio chefe que advogado não era coisa para pretos. Procurou um Pré-Vestibular para jovens carentes, e o encontrou na Ilha do Governador. Seria ali, à noite, após o expediente, quando o corpo pedia descanso, que Roberto renasceria mais outra vez.

Ele, que vivia o caos todos os dias, agora decorava a ordem: o diagrama de Linus Pauling. A mecânica de Newton. As orações subordinadas... A História e a Geografia, essas ele já trazia no sangue. Em cada simulado, seu nome estava lá, entre os dez primeiros. O deboche dos que diziam que preto não havia nascido para ser advogado era a sua disciplina.

Veio 1989. O nome na lista – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, a Universidade idealizada e feita pelas mãos de Darcy Ribeiro (1922-1997), a histórica Escola de Direito, a forja magma dos Ministros do Supremo. Ele, Roberto Lima, o policial, o negro, o sobrevivente, atravessou os portões numa época sem Prouni, sem cotas, sem ajuda. Não que todas estas conquistas não sejam históricas e que não sejam marcos civilizatórios do Brasil, mas ele cavou com as unhas sua entrada na então elitizada UERJ.

Enfim a Polícia Civil fora obrigada a reconhecer o talento de Roberto tirou-lhe do perigo das ruas, e alojou-lhe no serviço burocrático, no interior da delegacia. Dali para frente, a vida de Roberto converter-se-ia numa arquitetura de exaustão – o plantão de 24 horas de polícia, a folga de 72 horas. Não folga. Sua folga denominava-se UERJ. Três dias livres para se algemar aos livros. O objetivo estava cristalizado: tornar-se advogado. Por dever, ele precisava entender por que aqueles labirintos levavam sempre aos mesmos rostos, aos mesmos jovens, às mesmas cores, a superlotar as carceragens. Por que homens ficavam presos por anos aguardando julgamento?

O Direito ensinava o “como”, não o “porquê”. Até que ele topou com uma disciplina. Sociologia Jurídica. E aqui temos outro ponto de virada, outro renascimento. A ontologia. O ser da prisão. A causa de existir. E os nomes – Foucault, Bourdieu, Latour. A paixão foi imediata. Uma nova fome, como conciliar o Direito, o trabalho policial, e as Ciências Sociais? O homem ousou mais uma vez; resolveu ser ele mesmo Maradona. Driblar não o time inteiro de uma Copa que ele não pode vir, mas driblar o destino inteiro.

Negro, num país racista. Pobre, num país classista. Policial, num país que mais mata policiais no mundo. Ele fez outro vestibular, e já estamos em 1990, e em outro lugar – a grande Decana do Brasil a UFRJ, foi aprovado, nos anos 90, o impossível era permitido: acumular duas matrículas públicas.

E então o ideal do polímata, o homem intelectual orgânico: Direito na UERJ à noite, Ciências Sociais na UFRJ pela manhã, junto ao trabalho extenuante na polícia. Some-se a isto a função de pai, marido e filho. Ele entrava naquelas salas de aula, seja na UERJ ou na UFRJ, e o espanto e o dissabor o enchiam do mais amargo fel. Em ambas as turmas, ele era o único negro, apesar de Roberto ser expansivo e alegre por natureza, os trabalhos em grupo amargavam a solidão, sempre havia uma maneira sutil de os colegas o “esquecerem”. Ele fazia sozinho, isso não o quebrou, foi mais um desafio para o homem que nasceu duas vezes, três, quatro vezes (...) – do ventre de Zélia em 1961, e do asfalto da Rio Branco em 1987 – o olhar de desprezo dos “filhos da cidade partida”? Era o costume, a carne barata do mercado.

Ele sabia o seu valor em libra esterlina em onça de ouro, não o medido por posição ou raça, mas por ancestralidade. Naquela solidão, ele se olhava, e pela sua cor, ele não se via como um pária. Ele se imaginava um príncipe etíope. E é exatamente isto o que ele é.

Roberto Lima formou-se duas vezes – Bacharel em Direito e Cientista Social, com o peso da Ciência Política Weberiana, o homem que fora alvejado nas ruas agora dominava a lei que regia essas ruas, e a ciência que explicava por que elas eram como eram. E o real significado de morar numa “cidade partida”.

Na polícia ele também ascendeu, aquele que entrou como detetive, o alvo, tornou-se Comissário de Polícia Civil. Mas o que é um título? O que é um distintivo? Roberto aprendeu a lição mais amarga, a que não está nos códigos nem nos livros de Foucault. A lição da pele sendo negro, o distintivo que carregava não valia muito, e ele sabia com a carne.

As pessoas custavam a acreditar: o quê? Este homem? Comissário de Polícia? Um Bacharel em Direito? Um Cientista Político? O espanto nos olhos alheios era a sua ofensa diária. A sociedade que o armara para defendê-la era a mesma que não o enxergava sob suas vestes. Roberto via tudo como um antropólogo, um observador-participante privilegiado, um etnógrafo da sociedade brasileira.

A vida, contudo, não é feita só de batalhas públicas, ela é feita no lar, Izabel formou com Roberto uma aliança de trinta e quatro anos. O amor que nasceu na carceragem provou-se mais forte que o tempo. Raphael, o menino que quase ficou órfão, cresceu. E veio outro, um segundo filho, Bernardo.

A vida parecia assentar, mas os historiadores sempre têm razão, a vida não tem coincidências, a vida tem trocadilhos. Roberto, o Comissário de Polícia, o Doutor em Leis, o homem que viu a morte, resolve fazer caratê a fim de manter a forma e relaxar a mente na disciplina, sua companheira. E onde o destino o leva? À AcademiaShotokan”, na Rua José Linhares, no mesmo bairro do Leblon da 14ª DP, onde tudo começou.

Ali, naquele dogô, entre o suor e a disciplina, ele conhece um mestre, não apenas da arte marcial, mas do pensamento. O afamado e imenso sociólogo, jornalista, o polímata: Muniz Sodré. A amizade floresceu ali, no respeito mútuo do Kumitê. Tornou-se intensa. Eram a dupla escolhida. O policial-pensador e o professor-lenda. Saíram da Academia. E nas mesas dos bares do Leblon, a amizade se aprofundou. O suco de abacaxi com hortelã. O pingado. E as confidências. Como só os grandes amigos fazem.

Essa amizade rendeu a Roberto a imortalidade. A imortalidade que a literatura concede. O Professor Sodré escreveu "Bola da Vez". Contos policiais. E ali, numa das páginas, com a devida licença poética, estava Roberto, transfigurado: “(...) fazia pouco tempo que eu estava na polícia, um dos meus colegas foi baleado. Assaltado na rua por marginais, reagiu, tentando tirar a arma do próximo, a bala passou pertinho do coração (...)” O próprio Sodré lhe dissera: “Foi inspirado em você, Roberto.”

Os encontros continuaram, as trocas, o suco de hortelã, até que um dia, o professor emérito da UFRJ, Muniz Sodré, olhou para o Comissário, Bacharel em Direito, Cientista Político, e lançou a semente final. A pergunta que reabriria tudo (de novo): “Nunca pensou em fazer Doutorado?”

Aí, caros leitores, outra virada: O Dr. Wiliam do Souza Aguiar se enganara. Roberto não nasceu duas vezes. Ele renasceu na UERJ, contra os que lhe disseram que preto não podia ser advogado, ele renasceu enfrentando os olhares tortos, o único negro na sala de aula. Ele renasceu quando se tornou cientista político, o homem que entendia Foucault e o conceito de saber-poder e governamentalidade. Ele renasceu no Caratê, sob a tutela de Inoki, ele renasceu em Izabel, cada um dos trinta e quatro anos, ele renasceu em Raphael, que ele pôde ver crescer, ele renasceu em Bernardo, ele renasceu para seu pai Wilson, e para sua mãe Zélia, provando que o choro dela não fora em vão. Ele renasceu para seu mestre, Muniz Sodré. E ele renasce, agora, para este doutorando – este colega de bancos universitários que vos narra.

Um homem de muitas vidas. Um homem que, assim como Paulo, o apóstolo, pode olhar para trás, para a fumaça da Avenida Rio Branco, para as pilhas de processos, para o desprezo nos olhos alheios... e dizer, com a serenidade dos que viram o abismo:

Eu combati o bom combate.

Antigo distintivo de Roberto Lima, agora aposentado (Foto cedida pelo entrevistado).

Eis a entrevista.

Roberto, fale um pouco sobre seu lado acadêmico e suas áreas de interesse.

Bem, atualmente sou doutorando no programa de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientando do Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes e tenho interesse na área de História, com ênfase em Direitos Humanos, Imigração, Construção e Reordenamento de Identidades, Memória, História Intelectual e Política da África e de suas diásporas, principalmente nos séculos XX e XXI. O tema da minha tese de doutorado são os imigrantes africanos, latino-americanos e caribenhos que atuam no comércio informal nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

Com relação aos imigrantes, como você analisa a prática cruel da xenofobia em nosso país?

A situação é preocupante, o Brasil, embora se trate de uma nação que tem suas raízes firmadas na diversidade cultural e na recepção de diversas comunidades, a xenofobia –- que se caracteriza pelo desprezo e pela discriminação em razão da origem, da cultura ou da nacionalidade – se apresenta como uma das formas mais prejudiciais de discurso de ódio. É importante compreender que migrantes e refugiados são parte integrante da nossa sociedade, com direitos assegurados em nossa Constituição. Além disso, em um cenário marcado por graves instabilidades políticas ou econômicas, a crise migratória se acentua, é importante que brasileiros e migrantes se mantenham unidos na defesa de seus direitos e de políticas públicas que tenham por objetivo a inclusão. Os migrantes, assim como os refugiados trazem uma bagagem diversa que enriquecem cultural e economicamente os países que escolhem como destino. Não podemos esquecer que eles fazem parte da essência do que somos hoje como nação. No entanto, a xenofobia não é um fenômeno local e homogêneo, ela é sim global e heterogênea. Ele se apresenta de vários modos, a depender do momento histórico, econômico e social.

Analisando o contexto global os exemplos são muitos. Em nosso país, durante a pandemia da Covid-19 foi atribuída aos chineses a responsabilidade pela disseminação do vírus, na contemporaneidade temos assistido a muitos exemplos de aversão a estrangeiros. Nos EUA os imigrantes latinos estão sendo caçados, presos e deportados, na Europa o alvo são os imigrantes do continente africano e os da Ásia ocidental, principalmente aqueles que têm o Islã como religião. Eu acredito que uma das causas da xenofobia é a nossa incapacidade, enquanto seres humanos, de estabelecer diferenciações. A xenofobia é um preconceito e parte do princípio de que temos um saber preestabelecido a respeito do outro, sem que nada precise ser provado. Basta ver e não aceitar, nesse caso alguns sinais diacríticos contam, por exemplo roupas e cortes de cabelo. É suficiente que o outro seja visto como um não igual. Ou seja, discriminamos porque ignoramos, excluímos o outro porque não sabemos lidar com a diferença.

O tema da sua Tese são os imigrantes na cidade do Rio de Janeiro. Poderia nos dar algum exemplo no qual atos de xenofobia tenham acontecido?

Um exemplo emblemático é o do imigrante congolês Moïse Muegnyi Kabagambe, ele nasceu na República Democrática do Congo em 1998. Chegou ao Brasil na condição de refugiado, em 2011, aos 13 anos, acompanhado de três irmãos. Estudou no Colégio Estadual Compositor Maneceia José de Andrade, no bairro de Madureira, mas precisou interromper os estudos na segunda série do ensino médio para trabalhar e, assim, conseguir se manter ajudando no sustento de sua família. Desempenhou as funções de ajudante de cozinha e/ou garçom em restaurantes, lanchonetes e em alguns quiosques na orla das praias do Rio de Janeiro. Residia com sua família em um conjunto habitacional conhecido como “tijolinho” no bairro de Barros Filho. Esse ano marca o terceiro ano da morte do refugiado congolês. Moïse foi vítima de uma agressão covarde e fatal no dia 24 de janeiro de 2022 em um quiosque no bairro da Barra da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro, Brasil.

Antes de continuar, é necessário tratar de um tema importante, a decolonialidade, entendo que dessa maneira o contexto em que Moïse se encontrava ficará melhor esclarecido.

A decolonialidade pode ser entendida como um conjunto de categorias explicativas e analíticas, cuja função é fazer uma crítica ao sistema moderno colonial e a colonialidade.

O conceito de decolonialidade parte do pressuposto de que o fim do colonialismo histórico, aquele que organizava a sociedade colonial do ponto de vista econômico, político e social, não significou o fim das soluções e práticas coloniais. Isso acontece porque, a partir do momento em que a estrutura colonial está montada e que organiza a sociedade de uma maneira específica, podemos observar uma interferência muito forte na organização do espaço, na composição do imaginário de um povo. Ela está presente até mesmo na linguagem, tem uma implicação direta na forma como essas sociedades pensam ou elaboram seus critérios estéticos e morais, na forma como esse povo entende o que é verdade e o que não é verdade, na forma como essas sociedades enxergam a si próprias. Tudo isso para estabelecer a diferença entre colonizador como superior e colonizado como inferior.

O caso brasileiro é um caso exemplar, nós tivemos uma estrutura escravocrata em todas as nossas instâncias sociais. O racismo ao negro sempre foi um grande dispositivo de regulação da desigualdade social no Brasil. Podemos perceber práticas racistas que ainda permanecem. É uma realidade ainda presente entre nós.

A certeza de que a colonialidade não desapareceu faz surgir a necessidade de uma intervenção teórico e prática. Aí surgem os pensadores decoloniais. Vale uma ressalva que esse termo engloba pensadores e pensadoras de matizes muito diferentes. Os intelectuais que fazem parte do que chamamos hoje de pensamento decolonial não pensam da mesma forma. Eles podem ter influências distintas e, muitas vezes, vêm de campos epistemológicos diferentes, mas tem sempre um ponto de vista em comum, eles pautam em suas teorias e nas suas práticas uma crítica intensa e contundente contra o sistema mundo capitalista, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista.

Um dos efeitos da colonialidade na produção do conhecimento é o que chamamos de racismo epistêmico, um conceito que foi forjado dentro de correntes de pensamento denominadas epistemologias do sul. Percebemos que outras correntes começaram a usar essa expressão para enunciar e denunciar uma predominância de um tipo de pensamento criado, geralmente, por homens brancos europeus que acabam dominando os currículos em todas as áreas do saber dentro da academia de países colonizados. Excluindo, praticamente a possibilidade do lugar de fala para que outras vozes possam contribuir na produção de conhecimento.

Em nosso entendimento, esse ponto requer atenção, estamos falando de epistemicídio na medida em que não se permite que outros povos falem, que outras culturas se manifestem, que possam ser ouvidas, que possam se expressar, falar de suas realidades, ou da maneira como entendem o mundo em que vivem; ou seja, “após 500 anos de colonização do saber, não existe qualquer tradição cultural ou epistêmica, em um sentido absoluto, que esteja fora da Modernidade eurocêntrica” (Grosfoguel, 2016, p. 44).

A colonialidade se caracteriza por um pensamento exclusivamente masculino, branco, europeu que permanece dentro da academia para estabelecer o que é a verdade, nos colocando diante de uma produção que reflete um pensamento parcial. A realidade, como entendemos, não pode ser compreendida exclusivamente através de um único ponto de vista. O padrão de pensamento estabelecido por poucos, e que não representam o todo, é contraproducente, indo de encontro às principais teses que nos ensinam a realidade verdadeira como a síntese de muitos entendimentos. Sabemos que precisamos de muitas perspectivas para conseguir entender a realidade. Não podemos de modo algum dar predominância para uma perspectiva, excluindo a possibilidade de soluções, de experiências, e de vivências de outros povos. A multiplicidade cultural é enriquecedora.

A decolonialidade enquanto um caminho de resistência, é uma corrente de pensamento que vem ganhando muitos adeptos. Cada vez mais pensadores e pensadoras estão revendo uma série de verdades tidas como absolutas, construídas ao longo do tempo e que nos impedem de conseguir fazer minimamente uma compreensão do mundo e intervir para a construção de uma sociedade equânime. É nesse contexto que Moïse se encontrava, vamos retomar sua trajetória.

Moïse e seus irmãos chegam ao Brasil enviados por sua mãe Ivone Lotsove Lolo Lay, a intenção era livrá-los da violência dos conflitos étnicos na República Democrática do Congo, seu país de origem. Vieram em busca de segurança e acolhimento. Mas, ao invés de acolhimento, encontraram a face mais cruel e brutal da realidade brasileira.

Quando chegou ao Brasil, Moïse certamente não imaginou encontrar irmãos que não se reconhecem. Afinal de contas seu destino era o país onde 54% da população se declara negra. Aqui, durante aproximadamente 350 anos, chegaram milhões de escravizados oriundos da região onde, no século XIV, existia o reino do Congo, na África centro-ocidental. Hoje, nessa região, se encontram Angola, República do Congo e República Democrática do Congo.

O Brasil concedeu à Moïse o status de refugiado em 2014. Isso significa dizer que, à exceção de votar e ser votado, ele tinha asseguradas, em tese, as mesmas prerrogativas de qualquer cidadão brasileiro, entre elas o direito à educação, ao trabalho digno, à segurança e à vida. Mas, todos esses direitos não lhe foram garantidos. Lembramos que isso não é um “privilégio” exclusivo de Moïse, observamos que na prática o Estado brasileiro não é capaz de garantir esses direitos nem mesmo a seus cidadãos natos. Embora falasse quatro idiomas (português, francês, lingala e um pouco de inglês) e tivesse concluído o segundo ano do ensino médio, ele jamais conseguiu inserção no mercado de trabalho formal.

Acreditamos que, depois de algum tempo no Brasil, Moïse tenha se dado conta que, ao longo da história, o Estado brasileiro sempre tentou se eximir da obrigação de promover a reparação necessária à sua população negra. Negou e nega as consequências nefastas do período escravocrata, sem garantir dignidade e direitos aos negros e seus descendentes. Promove até hoje políticas que, de alguma forma, retomam a elementos da escravidão e a violência que ela carrega em si. Essa manutenção oficial e deliberada das desigualdades sociais e raciais é uma das faces do racismo. Moïse veio procurar refúgio e proteção exatamente no Brasil, país que nunca pretendeu ser negro e que conhece muito pouco sobre as Áfricas, apesar da sua evidente africanidade. País que promoveu uma falsa abolição e teve como política de Estado o embranquecimento da população com políticas de miscigenação racial (1888-1920). Adotou o mito da democracia racial com a ideia de que o Brasil é um país cordial e amigável, mas, na verdade, até hoje normaliza a violência policial, que elimina, em sua maioria, jovens negros.

Improvável encontrar abrigo em um país com índices de violência altos como o Brasil, marcado por séculos de atrocidades e genocídios. Temos uma sociedade que é, mas não se reconhece, racista, em que 78% das pessoas assassinadas são negras, assim como 67% das mulheres mortas também são negras, onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Somos o quinto país em número de feminicídios, o primeiro em número de assassinatos de homossexuais e pessoas trans. Certamente, não somos o país mais indicado para oferecer algum tipo de proteção às pessoas negras que tentam escapar da guerra e da violência em seus países de origem.

Apesar de ser regido por leis que estabelecem proteções e direitos o Estado brasileiro não consegue, ou não quer, garantir sua efetiva implementação. Moïse foi uma das vítimas deste Estado ausente.

No entendimento de Thomas Hobbes, não havendo Estado o homem viveria em um constante estado de guerra. Ora, esse entendimento pode ser também aplicado para as hipóteses onde o Estado exista formalmente, mas que experimente a realidade factual de conflitos armados, na luta de todos contra todos, como hoje acontece em regiões da República Democrática do Congo. No Brasil, onde o Estado igualmente existe de maneira formal, entendemos que o estado de guerra no molde hobbesiano também se aplica, pois, quando o Estado se mostra ausente para Moïse e seus iguais, ele entrega essa parcela da população de forma comissiva ou omissiva à sua própria sorte, expondo-as a todo tipo de violência. Posto desta forma, com essa argumentação teórica, a morte de Moïse se faz compreensível, mas ainda assim inaceitável.

Estou tratando dos quinze minutos que ainda não terminaram. Quinze minutos, esse foi o tempo que a câmera de segurança do estabelecimento onde Moïse trabalhava registrou o crime do qual ele foi vítima. Ele foi imobilizado, teve as mãos e os pés amarrados às costas, foi agredido por cinco pessoas com chutes, socos, pedaços de madeira e um taco de beisebol, sem nenhuma chance de defesa. Sem socorro e sozinho em seu suplício não teve outra opção a não ser aguardar a morte. Mas o que motivou tamanha descarga de ódio contra Moïse?

Moïse trabalhou informalmente, por algum tempo, como garçom em num quiosque, situado no bairro da Barra da Tijuca. No dia 24-01-2022, ele foi ao quiosque com a finalidade de receber duas diárias que totalizavam R$ 200,00 (duzentos reais). Segundo familiares, com esse valor pretendia adquirir uma caixa de isopor, comprar e revender bebidas e desta forma não precisaria mais trabalhar para outras pessoas. Quanta ousadia em cobrar o pagamento de seu trabalho sendo quem ele era, africano, refugiado, jovem e negro, o Estado necrorracista jamais iria permitir tamanha afronta.

Ele sofreu uma ação extremamente violenta, coletiva e que contou com a participação ativa de um grupo de pessoas que se formou apenas para aquele ato. Não houve organização prévia. A ação aconteceu em um local público. Podemos perceber que houve naquele ato a intenção de deixar um exemplo para as pessoas que se comportam fora dos limites aceitáveis e estabelecidos por uma sociedade racista e xenófoba. Essa é a definição para linchamento.

As imagens das agressões sofridas por Moïse são estarrecedoras, mas constatamos que durante o linchamento, assistido por várias pessoas, nenhuma delas tentou fazer com que a agressão cessasse. Isso diz muito sobre quem somos. E, como se não bastasse, depois de Moïse estar morto ao lado do quiosque, a atividade comercial não foi interrompida. Não houve qualquer comoção. Alguns clientes, mesmo diante do corpo, continuaram a consumir os produtos servidos pelo estabelecimento sem nenhum constrangimento. Essas pessoas estão no “meltig pot” em que nossa sociedade se transformou, uma sociedade violenta e racista e que ainda não está curada dos efeitos da escravidão.

O ocorrido com Moïse nos mostra que as vítimas de linchamento não são aleatórias. Os corpos preferencialmente atingidos refletem um repertório social a respeito de quem são os extermináveis. É impossível dissociar o linchamento de Moïse de sua condição como imigrante africano, negro, pobre e jovem. Esses marcadores o colocam na posição mais baixa de nossa pirâmide social e, portanto, em condição de grande vulnerabilidade com sistemática negação de direitos, não só pelo Estado, mas também pela própria conjuntura das relações que o cercava.

Foram identificadas inicialmente cinco pessoas apontadas como autores das agressões contra Moïse. Dois deles já foram julgados e condenados. Interessante perceber que entre os agressores havia trabalhadores iguais a Moïse, mas que, mesmo assim, o enxergam como “outro”. Executaram uma ação irracional e extremamente agressiva, censurável em todos os aspectos. Eu entendo que nesse caso existe nexo de causalidade entre a ação dos autores do linchamento contra Moïse e o então governo brasileiro. E, neste caso, eles atuavam como sua “longa manus”, isso porque na medida em que aquele governo tinha como política o incentivo ao uso indiscriminado da violência, eles estariam implicitamente legitimados a fazê-lo. Esse episódio demonstrou, da maneira mais sombria, nossas controvérsias relativas a direitos humanos, justiça, e principalmente aquilo que se refere às concepções de cidadania de nossa sociedade.

Podemos entender que a presença de Moïse foi suficiente para desencadear as agressões e sua consequente morte?

Eu respondo que sim, mas justificarei minha resposta considerando o corpo de Moïse como um território. Para se pensar o corpo-território é preciso entender que nosso corpo não é constituído única e exclusivamente de matéria física, ele é também um corpo onde a perspectiva da ancestralidade está contida e se manifesta. Neste sentido, a simples presença de Moïse seria indesejável, na medida em que seu fenótipo remete aos agressores a imagem do escravizado, o sub-humano, a quintessência do mal.

“Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, nunca habitaram, o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética. Ausência de valores, e também negação de valor. Nesse sentido, ele é o mal absoluto” (Fanon, 2005, p. 58).

Entendemos que os autores do crime, enquanto representantes da branquitude - termo que é utilizado para categorizar a racialidade das pessoas brancas - apesar de não serem brancos, acreditamos que se entendiam como tal, como socialmente brancos e a partir deste ponto passaram a enxergar Moïse como “outro”. Para entender melhor este conceito vamos utilizar a frase dita por René Descartes:” penso, logo existo”. Ora, quem tinha o direito de pensar naquele período, e ainda hoje julgam ter são os que defendem e/ou se beneficiam da estrutura do Estado necrorracista. Neste sentido, Moïse é “outro”. Seu corpo passa então a ser visto como um corpo subalternizado, colonizado, animalesco, um corpo não humano, um objeto.

“O único ser dotado de uma episteme superior era o homem ocidental (...) De acordo com Maldonado-Torres (2008b), o outro lado do "penso, logo existo" é a estrutura racista/sexista do "não penso, não existo". O último expressa uma "colonização do ser" (Maldonado-Torres, 2008b), pela qual todos os sujeitos considerados inferiores não pensam e não desfrutam de uma existência inteira, pois sua humanidade é questionada. Eles pertencem à zona que Fanon denomina "zona do não ser" e que Dussel chama de "exterioridade" (Grosfoguel, 2016, p. 43).

As ações que se seguiram são a materialização da negação das garantias mais elementares e inerentes ao ser humano, tais como a integridade física e o direito à vida. Ao atingir o corpo de Moïse a intenção foi de humilhar, infligir dor, fazer sofrer, marcar inferioridade, despojar o corpo de qualquer humanidade e, por fim, eliminar. É forte, sob a ótica do colonialismo moderno, a ideia de ver como objeto qualquer corpo que estivesse fora dos padrões epistemológicos e dos limites geográficos da Europa. Dessa maneira, os corpos encontrados nas Américas, nas Áfricas e na Ásia, são corpos que, na perspectiva do colonizador, são vistos naturalmente como objetos, não tendo sequer direito a existir.

A banalização da violência, o ódio assim como o desejo em eliminar o “outro” foi posta em prática pelos assassinos de Moïse. Aplicando a analogia entendemos que eles desempenharam a função de prepostos do Estado necro-racista. A violência e o desprezo a vida se apresentam claramente neste caso, onde os agressores argumentaram que queriam apenas “extravasar a raiva” e que estão “com a consciência tranquila”. Quando eles fazem referência a “extravasar a raiva” entendendo que manifestam não apenas o direito soberano de matar (necropolítica), eles ultrapassam todos os limites, é possível perceber que os golpes que ceifaram a vida de Moïse estavam carregados de ódio, desejo de eliminar aquele que para eles sequer tinha o direito de existir.

No entanto, para os agressores a violência que praticaram é considerada uma ação justificada, como se quisessem nos fazer crer que a responsabilidade das agressões é da própria vítima. Moïse teria sido insolente o suficiente para cobrar por seu trabalho, como se tivesse direitos, como se fosse um cidadão, teve a ousadia de importunar e de exigir como se fosse gente e, em contrapartida, foi tratado como se fosse um inseto indesejável. A violência se inscreve como uma resposta, uma forma de colocar tudo em seu devido lugar. No corpo de Moïse ficou a mensagem do Estado necrorracista e xenófobo para todos os “outros” iguais a ele, assim a hierarquia foi restaurada e a ordem restabelecida.

Uma questão, que pode ajudar a entender as origens do racismo, como ele se apresenta hoje, tem como ponto de partida o racismo científico. Essa teoria surge em meados do século XIX, para determinar as diferenças entre os seres humanos, o critério científico. A teoria evolucionista de Charles Darwin, baseada na seleção natural, afirma basicamente que as espécies transmitem às gerações futuras características que as tornariam melhores; e, assim, estaria assegurada a sobrevivência de algumas espécies em detrimento de outras. Baseados nesta teoria, firmou-se o entendimento de que da mesma forma como havia várias espécies de animais, havia também diferentes raças humanas e, dentre estas algumas superiores e outras inferiores, com o argumento de que a espécie humana mudou após um processo genético e biológico complexo, onde algumas raças teriam evoluído mais que outras. E isso vai potencializar as teorias racistas, que baseadas no evolucionismo de Darwin, vão contribuir para o surgimento de ideias de dominação, e até mesmo, eliminação das raças tidas como inferiores.

“A Ciência tinha ganho contra a Igreja a dura guerra pela prerrogativa de falar a verdade sobre a natureza e a sociedade, tinha se associado à técnica e à indústria, tinha criado instituições poderosas nas quais produzia-se um discurso que era sinônimo de pertinência e potência. Este discurso com seu raciocínio abstrato, sua linguagem descritiva e argumentativa, suas quantificações, técnicas e métodos específicos estabeleceu “objetivamente” a superioridade racial das elites europeias, o que conotava sua superioridade cultural, religiosa, moral, artística, política, técnica, militar e industrial. Tudo cientificamente comprovado. As doutrinas racistas exerceram, em seguida, uma fortíssima influência sobre os meios de comunicação de massa emergentes, sobre a indústria cultural nascente, sobre a educação pública e as diversas manifestações artísticas, legitimando a mais ambiciosa arrancada imperialista de que se tem notícia” (Silveira, 1999, p. 90).

O racismo científico foi uma parte importante na estruturação de um poder hegemônico que pela primeira vez foi global. Os cientistas, homens brancos europeus, na segunda metade do século XIX, remodelaram a ciência até então conhecida e passaram a ditar novos dogmas que contribuíram direta ou indiretamente para a legitimação do racismo.

Essa teoria ajudou, por exemplo, a estabelecer legalidade e legitimidade à partilha da África, que viria a desestruturar toda a sociedade, a economia e a cultura do continente africano. Isso perdura até nossos dias e é uma das principais causas do incessante fluxo migratório cada vez maior, obrigando milhares de famílias africanas, como a de Moïse, a abandonarem seus países indo buscar abrigo em outros continentes onde sonham sobreviver com dignidade. Ou seja, a pseudociência certificou a suposta inferioridade racial dos negros porque assim preenchemos um vácuo. Isso ilumina o quadro atual e nos faz ver com mais nitidez a situação dos negros no Brasil, sejam cidadãos natos, imigrantes ou refugiados, como no caso de Moïse. Nossa realidade é consequência dessas construções.

Diante das pesquisas feitas até agora, você entende que os atos de ódio contra imigrantes são pontuais, direcionados a algum grupo específico?

Entendo que todos os imigrantes podem ser alvo de atos de xenofobia. É como se os imigrantes possuíssem a marca da diferença, vamos imaginar que todos fossem vermelhos. Moïse é apenas um exemplo que ilustra a situação de milhões de outros imigrantes e refugiados no Brasil, eles carecem de políticas públicas consistentes para sua efetiva inserção em nossa sociedade. Uma parte considerável desses refugiados e imigrantes possui nível de escolaridade superior à média dos brasileiros, é o caso dos congoleses residentes no Brasil, que, em sua maioria, concluíram o ensino médio, sendo que parte deles tem curso superior; mas, mesmo assim, não conseguem encontrar colocações compatíveis com suas qualificações.

O relatório do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), feito principalmente com migrantes de Angola, Colômbia, Congo e Síria, revelou que quase 84% deles haviam completado o ensino médio e 34% concluíram o ensino superior. Mesmo assim, os empregos mais comuns destinados a essas pessoas são o trabalho braçal e o comércio informal.

Além da ausência de políticas públicas, o problema laboral dos refugiados deve-se ao crescimento da xenofobia em nosso país. Muitos deles não são formalmente contratados por serem vistos como menos instruídos ou civilizados, especialmente os oriundos da região subsaariana do continente africano. Mesmo quando conseguem o emprego, têm salários menores ou volumes de trabalho maiores do que os de outras pessoas com funções idênticas. Em muitos casos, esses estrangeiros são explorados desta maneira exatamente por serem imigrantes, é como se fossem uma espécie de "cidadãos de segunda categoria", como se não merecessem a proteção que a lei garante a todos. Observa-se que o não aproveitamento desses recursos humanos capacitados redunda em prejuízo para os dois lados. Perde o Brasil que deixa de contar com profissionais capazes e perdem os imigrantes que deixam de ter oportunidades de avanço em nosso país.

Políticas públicas destinadas aos imigrantes poderiam minimizar essa dupla perda. Em dezembro de 2018, o Brasil, juntamente com outras 164 nações foi signatário do Pacto Global para Migração Segura, Regular e Ordenada. Um acordo estabelecido pela ONU com o objetivo de dar mais segurança e trazer dignidade aos imigrantes, procurando estabelecer um padrão mundial quanto às questões migratórias com a criação de um banco de dados internacional com informações sobre os fluxos migratórios.

No Brasil, o que ocorreu a seguir foi um retrocesso, pois menos de um mês após a assinatura do pacto, o país se retirou do acordo. O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, eleito para o quadriênio 2018-2022, executando sua política negacionista em relação aos direitos humanos agiu na contramão das políticas internacionais relativas ao tema. A saída do Brasil do pacto causou um “desconforto diplomático”, indicando uma alteração na postura do país em relação à tal questão humanitária, além de ter impacto significativo em relação aos milhões de brasileiros que moram no exterior, além de romper com uma abordagem histórica do país em relação às políticas de migração e refúgio.

Ao se retirar do pacto, o governo brasileiro à época deixou de participar de um importante fórum de debates sobre migrações, e, por conseguinte, deixou também de influenciar em regulamentos internacionais sobre esse tema. A falta de participação em um espaço internacional tão importante também empobreceu os meios para lidar de forma eficiente com o 1,3 milhão de estrangeiros estabelecidos aqui. Essa ausência de intervenção estatal na proteção dos direitos dos migrantes produziu efeitos cada vez mais deletérios. Entre esses efeitos está o aumento da animosidade contra os refugiados em terras brasileiras.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito para o quadriênio 2023-2026, em um claro sinal de reaproximação com as políticas humanitárias internacionais, reintegrou o Brasil ao Pacto Global para Migração Segura, Regular e Ordenada no dia 05-01-2023. Assim, o país retorna ao cenário dos debates e discussões do qual, em nossa opinião, nunca deveria ter sido retirado.

A morte de Moïse ganhou o noticiário internacional. A que você atribui tamanha repercussão?

Tudo poderia ter sido diferente. Após o crime permanecer ignorado pelo grande público por cinco dias, uma pequena manifestação da comunidade congolesa na Barra da Tijuca, provocou um congestionamento capaz de chamar a atenção da imprensa que, por sua vez, noticiou o linchamento. Não fosse isso, morte de Moïse provavelmente se somaria às estatísticas oficiais, seria só mais um número. As manifestações e protestos foram muito importantes para dar visibilidade a um cenário quase sempre invisibilizado.

Ao longo dos dias seguintes, diante da cobrança de organizações e de formadores de opinião, o caso ganhou destaque e gerou mobilizações, o que fez as investigações avançarem.

Não podemos dizer que a morte de Moïse é um caso isolado, isso porque são essas as experiências cotidianas vivenciadas por muitas pessoas que compõem a comunidade de imigrantes e refugiados em nosso país. Da mesma forma, não podemos afirmar que esse caso romperá com práticas violentas, isso porque elas, infelizmente, fazem parte de nossa herança escravocrata, estão perpetuadas em nossa sociedade atingida pelo racismo conjuntural. Quando observamos o cotidiano de imigrantes humanitários, refugiados, percebemos que suas rotinas são atravessadas por preconceito, dificuldades em diferentes graus e inúmeros problemas sociais como a moradia em periferias e favelas de grandes cidades, como o Rio de Janeiro. Além disso, estão destinados a eles os trabalhos mais precários como o de Moïse Mugenyi Kabagambe. O direito dos refugiados está previsto em lei e é um dever humanitário. Ninguém nasce refugiado. As pessoas se tornam refugiadas na medida em que são afetadas por guerras e outras adversidades, que as levam a sair de seus países a fim de preservar suas vidas.

O racismo, a xenofobia, assim como outras formas de preconceito e discriminação estão presentes na sociedade brasileira. Isso é fato. O combate à essas práticas é um dever diário de todos nós brasileiros e estrangeiros. A Constituição Federal garante a igualdade entre nacionais e não nacionais, art. 5º CRFB. O direito à vida, à liberdade e segurança, a valorização da dignidade humana, a prevalência dos direitos humanos, a não discriminação e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a execução desses direitos fundamentais em sua plenitude só será possível quando substituirmos a atual cultura da violência pela cultura de direitos humanos em nosso país.

O Brasil é signatário de tratados e convenções internacionais que tratam sobre direitos humanos, migração e refúgio. Há legislação específica para os refugiados, garantindo, entre outros direitos, uma acolhida humanitária e o repúdio à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação. Essas leis garantem direitos aos estrangeiros, tais como: a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (art. 26); o Estatuto de Refugiados de 1951; o Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados; a Declaração de Cartagena de 1984; o princípio da igualdade perante a lei e as garantias individuais a brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, nos termos do art. 5º. da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; as diretrizes da Lei 9.474/1997, conhecida como a Lei do Refúgio, passando pelos princípios e garantias da política migratória brasileira, estabelecidos na Lei 13.445/2017 (Lei de Migração). No entanto, a realidade nos mostra que ainda existem muitas dificuldades para a implementação destes dispositivos legais e, consequentemente, para a implementação de políticas públicas que efetivem o acesso a estes direitos.

Não podemos esquecer que Moïse produziu, gerou valor e não recebeu por seu trabalho. No exercício de seu justo e assegurado direito foi punido. Nossa herança escravocrata foi novamente posta em prática. Comparando, entendemos que o pelourinho esteve novamente montado, os golpes com pedaços de madeira e taco de beisebol substituíram a chibata, as cordas substituíram os grilhões. Moïse com pés e mãos amarrados foi “açoitado” impiedosamente até a morte. Considero que os quinze minutos de suplício de Moïse foram o epílogo no qual tudo seguiu sua ordem natural, visto pela perspectiva do Estado necrorracista.

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