12 Novembro 2025
"'A velha teologia liberal', disse-me com desdém um famoso sociólogo. Algo mais do que isso, acredito eu — mas, ainda que fosse, sempre melhor do que uma teologia reacionária ainda mais velha", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Settimana News, 03-11-2025.
Eis o artigo.
O “Ocidente”, entendido como aliança geopolítica e modelo ideológico de democracia liberal, perdeu centralidade e coesão sob o trumpismo, acentuando a crise europeia. As Igrejas reagem de maneiras diferentes: Roma projeta-se globalmente, enquanto o protestantismo recente se desenvolveu em diálogo — crítico, mas intenso — com a ideologia “ocidental” e, entre nós, com o projeto europeísta. Fulvio Ferrario é professor de Teologia Dogmática na Faculdade Valdense de Teologia de Roma. Artigo publicado na revista Confronti, em 14-10-2025.
Era uma vez o “Ocidente”: sempre se tratou, naturalmente, de um conceito muito impreciso, questionável de vários pontos de vista, mas suficientemente claro. Do ponto de vista geopolítico, o chamado “Eixo Transatlântico”: um duopólio econômico complexo, cheio de contrastes, mas, no fim das contas, funcional, garantido militarmente — mesmo após o fim da Guerra Fria — pela supremacia americana. Este último elemento determinou o que poderíamos chamar de “assimetria consensual” na política externa: uma Europa que conteve os gastos militares, confiando no aliado, e renunciando, em troca, a um papel realmente autônomo.
O “Ocidente”, contudo, também era uma grandeza ideológica, centrada em um modelo anglo-saxão de democracia liberal, com suas riquezas e suas enormes contradições: uma ideologia que também permitiu uma expansão significativa de vários direitos individuais e, especialmente na Europa — ainda que apenas em uma fase há muito encerrada — certa redução da distância entre riqueza e pobreza.
Já deveríamos ter aprendido há algum tempo a abandonar as celebrações triunfalistas do “Ocidente”; por outro lado, seus detratores — geralmente da extrema direita e da extrema esquerda — fariam bem em admitir que a comparação com outros sistemas, nos dois hemisférios, fala uma linguagem suficientemente clara.
O “Ocidente” foi varrido pelo trumpismo. Com o benefício da retrospectiva, é relativamente fácil observar que gravíssimos elementos de fraqueza já se alojavam havia tempos nos centros vitais do sistema; resta o fato de que a velocidade da dissolução surpreendeu a todos. Não sabemos se é definitiva, mas certamente caracteriza o nosso presente. O fim do sistema “ocidental” acentuou a crise do projeto europeu, concebido dentro desse horizonte.
A União Europeia é hoje um arranjo precário de Estados e interesses, onde prevalecem tons soberanistas e fascistoides — eficazes na crítica e, às vezes (como na Itália), bastante hábeis na gestão do poder — mas desprovidos, ao que parece, de um projeto comum. O que resta de “Europa” é encarnado pelo eixo franco-alemão, também ele, porém, exposto ao risco de desabar sob os golpes da extrema direita.
Como reagem as Igrejas ao fim do “Ocidente”? A melhor posicionada é Roma. Ela se pensa em perspectiva global e, há décadas, considera o “Ocidente” periférico, demograficamente pobre e ideologicamente suspeito, por ser a pátria da secularização e, como dizia Bento XVI, do “relativismo”.
O projeto wojtyliano de uma Europa “do Atlântico aos Urais” já não é central — não porque Kyrill não seja atualmente muito popular no Vaticano, mas sobretudo porque o centro de gravidade do cristianismo, inclusive o católico, deslocou-se para o Sul. A sintonia com a Ortodoxia (que não se reduz a Moscou, mas que, no médio prazo, não é pensável sem Moscou) é, porém, profunda, justamente porque incorpora reflexos antimodernos e antiocidentais bem enraizados no Catolicismo.
Essa santa aliança pós-ocidental poderia até mesmo englobar setores evangélicos, também críticos em relação a essa herança. O protestantismo recente desenvolveu-se em diálogo — crítico, mas intenso — com a ideologia “ocidental” e, entre nós, com o projeto europeísta. A crise dessa constelação soma-se às dificuldades que as Igrejas evangélicas enfrentam em outras frentes, e o resultado não pode ser outro senão uma marginalização ainda mais acentuada.
Em alguns ambientes, insinua-se a tentação de reconquistar um mínimo de visibilidade subindo no trem conduzido pelo Vaticano e aceitando, com certa leveza, uma subalternidade constrangedora. A alternativa só pode consistir em compreender o protestantismo como cristianismo contextual, naquela parte do mundo e daquela sociedade que consideram humanizantes — e não destituídos de aspectos “análogos” à mensagem evangélica — certos resultados da trajetória moderna: democracia, direitos individuais, paixão pela justiça social e de gênero.
“A velha teologia liberal”, disse-me com desdém um famoso sociólogo. Algo mais do que isso, acredito eu — mas, ainda que fosse, sempre melhor do que uma teologia reacionária ainda mais velha.
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