01 Novembro 2025
"O que o Brasil precisa é de mais democracia, da real democracia que se define como participativa com transparência radical, e um sistema de justiça eficiente. Equânime, e que não seja mais um 'peixe grande' blindando colegas de quadrilha do mesmo nível, neste tabuleiro sanguinário. O Brasil não carece de mais violência institucionalizada nem de nenhum tipo de repressão contra a sociedade por parte do Estado: exatamente, o que trouxe o País a esta situação", escreve Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor.
Eis o artigo.
Mais um sangrento teatro politiqueiro de mau gosto do Estado policialesco brasileiro. Tanto quanto o traficante é "peixe pequeno" do narcotráfico, a Operação Contenção em curso no Rio é uma efêmera guerra contra as drogas, mas bastante eficiente contra o povo. Guerra que possui três origens que deveriam, estas, sim, ser combatidas: as desigualdades sociais, a ditadura militar travestida hoje de "democracia representativa", e a endêmica corrupção enraizada no velho Estado putrefato.
A discriminação, outro mal fortemente enraizado nos órgãos públicos e na sociedade, é consequência natural disso tudo, que legitima esta guerra insana no Rio. E o assassinato da Marielle Franco foi mais um capítulo dessa guerra: há mais de sete anos, vítima dos três grandes males históricos que ninguém quer combater.
Por estar bem longe de atingir a raíz dos problemas do narcotráfico e pela maneira como está sendo realizado, os únicos resultados de mais este terrorismo de Estado denominado Operação Contenção no Rio de Janeiro supostamente para combater o Comando Vermelho (CV) serão: a intensificação da revolta dos moradores das favelas atingidas contra o Estado; automaticamente, a legitimação da facção criminosa nessas comunidades, que acabam buscando amparo não nas forças de ordem do Estado, mas nos narcotraficantes; um preparo ainda maior dos "peixes pequenos" do narcotráfico: os próprios membros do CV.
Com isto, o prenúncio de mais ataques sanguinários contra a sociedade de todos os lados, legitimados pelo Estado e aplaudidos pateticamente por uma multidão reacionária que parece ter um certo Globo sobre o pescoço, em vez de cabeça dotada de cérebro. Sobre cujo sangue os verdadeiros "peixes grandes" do tráfico de drogas armam seus palanques eleitorais.
O que ocorre no Rio nestes dias seguirá aumentando a polarização entre a sociedade, já intensa e carregada de ódio, e paradoxalmente fortalecerá ainda mais os vinculos do CV e de outras organizações criminosas similares com a máfia do Estado – policiais, militares e grupos de poder como a classe política, entre outros diferentes órgãos do Estado.
Contudo, nunca se tira lições. Infortúnio que não se deve a nenhum tipo de falta de imaginação nem por "políticas fracassadas de segurança pública", mas por utilizar-se a tal "guerra contra o narcotráfico" como mais um negócio lucrativo, e palanque eleitoral sobre o terror e a desgraça alheia.
Tanto quanto a poucos enganam certos políticos, bem conhecidos pelo alinhamento a milicianos, fazendo agora apologia excessivamente demagógica sobre a "guerra contra o narcotráfico" no Rio. Berrando como eficientes justiceiros de Estado.
O CV, assim como o Primeiro Comando da Capital (PCC), é consequência tragicamente natural do fracasso da "democracia representativa" e da corrupção nela enraizada. Tudo isso, também resultado dos 21 anos de ditadura militar cujas características remanescem fortemente no País hoje. E que executaram Marielle Franco em 2018.
Pois as comunidades sentem-se, em geral e em todas as partes, mais protegidas pelos criminosos que pelo Estado. Neste cenário, o velho filme: mais repressão apenas acentua este círculo vicioso. Para cuja conclusão não se requer graduação em Ciências Sociais. Até porque essas comunidades sabem quem é o "peixe grande" do sujo e bilionário negócio das drogas. Quem não sabe disso?
O que o Brasil precisa é de mais democracia, da real democracia que se define como participativa com transparência radical, e um sistema de justiça eficiente. Equânime, e que não seja mais um "peixe grande" blindando colegas de quadrilha do mesmo nível, neste tabuleiro sanguinário. O Brasil não carece de mais violência institucionalizada nem de nenhum tipo de repressão contra a sociedade por parte do Estado: exatamente, o que trouxe o País a esta situação.
Mas quem acredita que os bandidos engravatados que lucram com o narcotráfico, ou em muitos casos até mesmo comandam este negócio de dentro de seus gabinetes oficiais, têm interesse pela via da efetiva democracia? Haja ingenuidade para crer que o que eles dizem aos meios de comunicação, reflete o que fazem nos bastidores do Estado.
As favelas, depósitos do excedente humano neste vil sistema e escudos parciais das organizações criminosas como o CV (seus principais líderes não residem nas favelas, mas em mansões bem distantes dali), são outra natural consequência do capitalismo, desigual por natureza e cuja sobrevivência depende das desigualdades sociais.
Portanto, não há como superar estas barreiras e desmantelar o narcotráfico sem antes resolver as desigualdades em um dos países mais desiguais – e violentos – do mundo. E sem implementar uma efetiva democracia com instituições sólidas (o World Justice Project, renomado órgão internacional especializado em justiça, aponta há vários anos o sistema judiciário brasileiro como um dos mais corruptos do mundo: há como se falar em combate ao tráfico de drogas, sem colocar este amarga realidade em questão?).
No sentido oposto, justificar mais este espetáculo de sangue que nunca termina no País, significa negar que o Brasil é um narcoestado. E um Estado terrorista. Aproveitando este ensejo macabro do Rio: realidades incontestáveis. Por outro lado, o auto-engano é sempre fatal.
Não deveria supreender a ninguém que O Globo tenha publicado no último dia 29 fotos do governador do Rio, Cláudio Castro, em diferentes ocasiões abraçando fraternalmente o deputado estadual pelo MDB-RJ, TH Joias (Thiego Raimundo dos Santos Silva), preso em 3 de setembro deste ano por ser o maior fornecedor de armas ao CV.
“Quando se faz essa filtragem, diminui a chance de haver algum inocente na área de mata [da Serra da Misericórdia, entre o Complexo do Alemão e o da Penha]. Até por conta do horário — 5h30, 6h30 — dificilmente um trabalhador estará numa mata fechada, a não ser que esteja a serviço da organização criminosa que domina o território”, disse o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor dos Santos, para justificar – com base em suposições – uma já ilegal pena de morte, em série e centenária. A denominada Operação Contenção evidencia, uma vez mais, que a justiça é relativa no Brasil.
Opor-se ao massacre do Rio nestes dias, cujo terror atinge milhares de famílias, significa defender também a polícia: trabalhadores do Estado que acabam, em muitos casos, mortos; agentes que não podem mais ser expostos a uma guerra como esta, enquanto políticos posicionam-se no centro dos holofotes midiáticos para qualificar este velho filme fracassado sob mancha de sangue, de "sucesso".
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