26 Agosto 2025
"O seminário mostrou que esse debate implica um violento conflito contra o poder econômico, o poder político e até contra os poderes públicos, que contribuem para a formação de uma cidade injusta, onde grande parte da população vive em precárias condições de vida".
O artigo é de Sandoval Alves Rocha.
Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
Eis o artigo.
No dia 19 de agosto, o Fórum Amazonense de Reforma Urbana realizou um Seminário para apresentar à sociedade os resultados da Campanha Despejo Zero. O evento ocorreu no auditório da Defensoria Pública do Estado do Amazonas, reunindo diversos momentos sociais e organizações interessadas na melhoria das condições de vida na cidade de Manaus. A iniciativa visa comemorar cinco anos da mencionada Campanha e teve como tema “Despejo Zero: Solução fundiárias em defesa do direito à terra e à moradia”.
Na ocasião, fizeram usa da palavra Adnamar Santos (Associação Habitat para Humanidade Brasil), Thiago Rosas (Defensoria Pública do Amazonas), Cristiane Salles (Fórum Amazonense de Reforma Urbana), Hellen Greicy (Comunidade Nova Vida), Luíz Antônio (Ufam), Leandra (Ocupação Alcir Matos), Aluízio (Movimento dos Trabalhadores por Direitos), Elvis (Associação dos Moradores do Conjunto Armando Mendes), Rosália (União Nacional por Moradia Popular), Zilda (Associação Raimundo Mura), Matheus (Movimento de Luta nos Bairros e Favelas), Jaime (Movimento Nacional de Luta pela Moradia), Sandoval (Fórum das Águas do Amazonas), Manuel (Comissão Pastoral da Terra) e outros.
A Campanha foi lançada por mais de 200 entidades (inclusive internacionais) numa época em que o país passava pela crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19, em 2020. As orientações sanitárias de isolamento residencial trouxeram à tona de forma dramática o déficit habitacional no Brasil. Manaus foi especialmente afetada pela situação, mostrando as tristes consequências do negacionismo, da desigualdade social e da exclusão urbana instalada no tecido social amazonense. Diante deste cenário caótico, firmou-se um pacto social visando sensibilizar os poderes públicos executivos, legislativos e judiciários para evitar despejos de famílias que não tinham onde morar e estavam em situação de intensa vulnerabilidade social.
Uma moradia digna não é somente viver entre quatro paredes. Mais do que nunca, a Pandemia mostrou que moradia digna implica também ter acesso à água potável e saneamento básico, pois a ausência destes serviços impossibilitava o isolamento social e as práticas básicas de higiene necessárias para o combate à doença. Nesta ocasião veio à tona de forma especial a necessidade de discutir a política habitacional no Brasil, obrigando os poderes públicos tomarem posição frente à grilagem da terra urbana, à precariedade das moradias e ao racismo ambiental.
O seminário mostrou que esse debate implica um violento conflito contra o poder econômico, o poder político e até contra os poderes públicos, que contribuem para a formação de uma cidade injusta, onde grande parte da população vive em precárias condições de vida. Foi evidenciado que o modelo de desenvolvimento adotado provou ser inviável para a construção de uma sociedade sustentável, levando muitas famílias ao sofrimento e perseguindo todos os que a ele se opõem. A crise humanitária evidenciada pela falta de moradia digna mostra que a sociedade capitalista é incapaz de criar uma cidade justa e efetivamente democrática.
Por outro lado, o Seminário deixou claro que é necessário criarmos e fortalecermos instâncias que possibilitam a resolução de conflitos fundiários, legitimando a luta dos movimentos sociais em favor dos direitos humanos e sociais, frente aos grandes proprietários de terra. Neste sentido, o professor Luís Antônio frisou que a grilagem de terras públicas segue nas sombras das florestas sempre com a anuência de instituições que deveriam combatê-la. Grupos organizados se apropriam ilegalmente de terras, contanto com redes de proteção política e jurídica. O docente frisa ainda que não há grilagem de terras sem a participação de agentes públicos.
Pesquisas apresentadas no evento mostram que Manaus possui 43 mil imóveis desocupados, que não cumpram a determinação constitucional quanto à função social da propriedade. A capital amazonense tem mais 90 comunidades ameaçados de despejo; possuímos 33.578 famílias ameaçadas de despejo; temos 1.943 famílias indígenas ameaçadas de despejo; neste período, 354 comunidades indígenas foram despejadas; mais de 8 mil famílias vivem em ameaça iminente de despejo.
Adnamar Santos ressaltou na sua fala que a ausência ou a insuficiência de políticas públicas voltadas a dirimir o déficit habitacional e a expansão descontrolada do tecido urbano carece de planejamento e participação social. É necessário corrigir a abordagem segundo a qual a luta pela moradia constitui uma questão de polícia, que causa a discriminação e a perseguição de moradores e lideranças dos movimentos sociais. A articulação e esforços destes atores evidenciam a luta legítima da sociedade civil em prol da implementação de direitos constitucionais, que deveriam ser garantidos pelo Estado.
A despeito das dificuldades, é necessário comemorar as iniciativas exitosas através das quais os direitos saem do papel e são efetivados na vida das populações. Estas iniciativas são prenhes de esperança e alimentam na sociedade o sonho de construir uma convivência ética, democrática e ambientalmente sustentável.
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