12 Julho 2025
"Os tempos de crise exigem respostas corajosas dos cristãos. A melhor resposta é beber do poço do Evangelho de Jesus. Não será preciso inventar coisas novas, tecnológicas ou panfletárias, mas serenamente viver de maneira nova a mesmíssima compaixão de Jesus pelo humano", escreve Fernando Altemeyer Junior, em artigo publicado em seu Facebook, 06-07-2025.
Fernando Altemeyer Junior É graduado em Filosofia, pela Faculdades Associadas do Ipiranga (1979), e em Teologia, pela Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção (1983). Tem mestrado em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve na Bélgica (1993) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (2006). É assistente doutor da PUC-SP e pertence ao Departamento de Ciência da Religião (Faculdade de Ciências Sociais). Exerceu o cargo de ouvidor público da PUC-SP entre 2005 e 2009.
“Para bom entendedor, meia palavra basta”, dizia minha avó Dolores Müller Delgado (abuelita Lola), a cada um de nós ainda crianças. Quisera eu hoje ter a mesma capacidade de leitura, sem palavras que meus avós cultivavam com sabedoria e esmero. Saber ver o céu e já diziam se haveria bom ou mau tempo. Sentir o vento e dizer: lá vem uma tempestade. Tomar a temperatura do corpo com as mãos e o olhar maternal e antecipar-se ao resfriado ou virose. Ver o rosto entristecido e tomar as dores daquele parente sem que ele ou ela sequer abrisse a boca para exprimir um ai. Sinais do corpo, sinais da alma, sinais do coração, sinais de Deus e sinais dos tempos entendidos e decifrados.
Hoje contamos com inúmeros modelos matemáticos, estatísticas, teoria dos jogos, prognósticos e curvas exponenciais, existindo até mesmo uma área científica chamada de futurologia. Apesar de tudo que a ciência nos oferece, é pequena a capacidade de discernimento na leitura dos sinais da condição humana. Muitas vezes uma avalanche de sinais corrompe o diagnóstico. Somos hoje tragados pelo excesso e pela mentira. Há falatório demais. Há demagogia demais. Há feiticeiros demais. E, claro, há interpretações propostas por gente perversa que geram ainda mais sofrimento. A televisão mente, os jornais mentem e os políticos em geral mentem para defender os opressores.
Os vícios agem contra a interpretação correta dos sinais vitais na construção da esperança. O maior dos vícios foi chamado pelos gregos de “hybris”, ou seja, tudo o que é excesso, que é orgulho, aquilo que cai fora do copo e desborda a justa medida. Esse vício capital é a arrogância do humano pelo poder, pela religião ou pelo saber. A arrogância humana submete irmãos, natureza, a Casa Comum e, se crê no direito da pretensa domesticação do Deus Criador. Quando queremos tomar o lugar do divino, esmagando os outros seres e submetendo a vida com perversidade, perdemos a capacidade de interpretar o presente e exterminamos o futuro. O humano arrogante usa da mentira para manter um falso poder.
Cinquenta anos atrás escreveram os bispos católicos do Paraguai (1976): “Não nos esqueçamos de que a violência não vive só: está intimamente associada à mentira pelo mais estreito dos vínculos naturais. A violência encontra na mentira seu único refúgio e, a mentira, o seu único apoio na violência. Todo homem que escolheu como meio a violência, deve escolher inexoravelmente a mentira como norma. A violência exige um ato de aliança com a mentira, uma cumplicidade. E o simples ato de coragem de um homem simples ao recusar a mentira exaspera a violência. Do mesmo modo que repudiamos a violência, temos que repudiar a mentira. Não creiamos nela. Cedo ou tarde, cairá desmascarada (bispos do Paraguai, em 12/06/1976, cit. VV.AA. A firmeza permanente – a força da não violência, São Paulo: Loyola-VEGA, 1977, p. 130)”. Somado à arrogância há uma lista de pecados que nos impedem de ouvir a voz de Deus na história e responder com lucidez ao agora de nossa vida. São elas: avareza, blasfêmia, inveja, perversidade moral, dureza de coração e, a hipocrisia. Esses vícios aniquilam a justa visão no caminho da verdade. Eles nos afundam no lodo e na miséria.
Certamente, em lado oposto, há a conhecida lista de virtudes e de atos nobres que potencializam uma visão correta, plena de compaixão. Podemos elencar: Obediência, serenidade, disciplina interior, paciência para esperar o momento oportuno, confiança, honestidade, hospitalidade, lealdade, gratidão, continência, bondade, perseverança, tolerância, zelo, pureza na alma e nas palavras. Destacamos ainda duas das virtudes cardeais que mobilizam a vida: a justiça e a temperança. Deus fala no coração de cada ser humano. E alimenta nossa esperança por meio de sinais cotidianos.
Há no Evangelho de Mateus a célebre questão proposta por Jesus: “De que serve ao ser humano ganhar o mundo, se ele se perder a si mesmo? (Mt 16,26)”. Interpretar os sinais de Deus e dos tempos é uma tarefa crucial para não viver vidas vazias e deixar como herança aos nossos filhos um baú repleto de futilidades. O tempo de quarentena vivido na pandemia que assolou o mundo entre 2020 e 2021 foi propício para descortinar horizontes e novos caminhos. A cultura do hiperconsumo precisa ser superada por um novo projeto de vida humana. O silêncio pode ser fecundo.
Os textos da Bíblia Sagrada assumem essa questão de maneira inteligente e criativa. Lemos desde o relato original cantado no livro do Êxodo que a mão forte e poderosa de Deus sempre está ao lado do povo sofredor (Ex 3, 7-10). E que em situações históricas particulares a ação de Deus se fez compreensível e real. Pode ser a experiência coletiva na Assembleia de Siquém, a luta do profeta Moisés no monte Sinai, diante da sarça que ardia, ou na travessia do mar Vermelho, pode ser a escuta da voz divina pelo patriarca Abraão nas areias do deserto, e até o sussurro de Deus pela brisa leve ao anunciar ao profeta Elias o tempo de fartura depois de anos de fome, doenças e dor. Certamente os sinais do presente abriam frestas no futuro pela presença de profetas autorizados pelo próprio Senhor Deus. Não houve profeta que não falasse da vida concreta: corpo, trabalho, lutas, terra, partilha, justiça e pessoas vulneráveis.
Lembremo-nos de Amós e sua defesa do movimento dos camponeses, de Oseias e seu amor sofrido em favor de sua mulher, de Miqueias e a justiça nas portas das cidades, de Habacuque e das pedras clamando diante da morte imposta pelos opressores nas cidades construídas com sangue dos operários. A profecia é a própria fala de Deus usando de frágeis mensageiros. Deus fala por Jeremias, por Ezequiel, por Judite, por Miriam, por Isaias e Sofonias. Cada um dos/as profetas e profetizas insistem em que o povo seja fiel e coerente com os eventos fundantes da Aliança. Romper com o pacto original traz miséria e dominação. Ficar fiel garante coragem, esperança e uma vida digna. Os livros de Jó e do Eclesiastes, entretanto, insistem em dizer que não pode haver a falsa segurança de religiosos ou templos que manipulem Deus ou a fé do povo. Os desígnios de Deus estão sempre envoltos em mistério e exigem atitudes de silêncio reverente. O ser humano não pode compreender tudo que vê e vive. Há limites para a interpretação e a compreensão. Deus sempre é maior.
A fé sempre exige aposta radical. Muitas vezes o povo pobre quer milagres e salvação imediata e mágica. Os juristas e legalistas eclesiásticos se perguntam sobre salvação e perdição como se fossem os dois lados de um jogo de futebol. Quem ganha e quem perde? Estes burocratas das religiões reduzem a ação de Deus à salvação das almas no futuro. Escreveu o padre José Comblin: “O estado futuro do homem depende de sua atuação presente: o grande problema cristão é a salvação atual dos homens. A alma não é problema, já que a salvação futura da alma será consequência automática da sua salvação atual. A salvação diz respeito ao homem inteiro e não somente à alma (JOSÉ COMBLIN, Os sinais dos tempos e a evangelização, São Paulo: Duas Cidades, 1968, p. 190)”.
Conhecemos 35 sinais de Jesus nas narrativas dos evangelhos canônicos. Em Mateus se relatam vinte desses sinais da ação de Deus no mundo, Lucas relata 20, Marcos 18 e o evangelista João propõe sete. São dezessete curas físicas, nove ações de Jesus sobre as forças da natureza, seis exorcismos de demônios e três revivificações de cadáveres. Nenhum é apresentado como magia ou panaceia. Ao contrário: todos exigem fé e fidelidade. A fé produz os milagres, não o contrário. Hoje chamamos tais sinais de milagres, mas o povo que seguia Jesus sabia que eram sinais do Reino de Deus e manifestação concreta da compaixão de Jesus. Gestos profundamente humanos e radicais. Mudavam a vida das pessoas e exigiam respostas profundas de cada pessoa envolvida. Eram sinais que exigiam interpretação evangélica. Com um olhar torto e velho não se compreendia. Com uma visão nova e transformadora, sempre emergem como motivo de júbilo e alegria. Sinais movidos pelo amor uterino de Jesus pela humanidade.
Citemos alguns deles: água transformada em vinho (Jo 2,1-11); cinco mil pessoas se saciam com cinco pães e dois peixes (Jo 6,5-13); anda sobre as ondas (Jo 6,19-21); participa da pesca abundante (Lc 5,1-11); prevê a negação de Pedro (Lc 22,31-34); tira uma moeda da boca do peixe (Mt 17,24-27); seca a figueira infrutífera (Mt 21,18-22); cura o paralítico descido pelo telhado (Lc 5,17-25); cura da mão aleijada (Lc 6,6-10); cura a moça encurvada (Lc 13,11-13); cura homem dominado por legião de demônios (Lc 8, 27-35); cura a filha da Cananeia gritona (Mt 15, 21-28); revivifica o amigo Lázaro (Jo 11,1-44).
Diz o historiador belga Eduardo Hoornaert: “Jesus adverte seus discípulos contra o perigo de profetas enganadores. Há um clima de realismo no evangelho que não se encontra entre os reformadores exaltados da época, sejam estes zelotes ou essênios. O evangelho sintoniza com as grandes aspirações da humanidade: a justiça, a igualdade entre ricos e pobres, o combate à pobreza e marginalidade, a dignidade da pessoa humana, a consciência individual, a responsabilidade social, a paz alicerçada na justiça, a sensibilidade pelos marginalizados, a ideia do lugar central dos marginalizados nos planos de Deus (Eduardo Hoornaert, O movimento de Jesus, Petrópolis, Vozes, 1994, p. 103)”.
Os tempos de crise exigem respostas corajosas dos cristãos. A melhor resposta é beber do poço do Evangelho de Jesus. Não será preciso inventar coisas novas, tecnológicas ou panfletárias, mas serenamente viver de maneira nova a mesmíssima compaixão de Jesus pelo humano. O maior sinal (milagre) é a encarnação de Deus na carne humana. Fora do amor não há salvação. A salvação (saúde) deste mundo passa pelo mistério de Deus que propôs vida para todos. A ação de Deus acontece dentro da história pelas mãos humanas que ouvem o sopro do Espírito de Jesus. Mãos ativas como as mãos de médicos e enfermeiras que nos mostram Deus agindo. É preciso fazer um voto em favor da paz. E cumprir um voto de audácia vivendo a Igreja como perita em humanidade. Não é preciso saber tudo ou explicar tudo. É preciso ficar junto e perto na alegria e na dor. Na tristeza e na festa. Na quarentena e depois dela. Importante é ser fiel à viagem sem perder o mapa dado por Jesus em nome de Deus. “Aquele que perseverar até o fim, esse será salvo (Mt 13,13)”. A última palavra é sempre: ressurreição. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça!
Três sinais importantes hoje: a juventude nas periferias, as mulheres na política e os migrantes que constroem nova cultura em diálogo. Prestem atenção aos sinais de Deus mergulhados nestes sinais da vida do Espírito Santo. É hora de agir e agir coletivamente.