24 Junho 2025
Com o avanço da democracia, urbanização e pluralismo, o Brasil passou a ser um país religiosamente diversificado.
O artigo é de José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia, publicado por EcoDebate, 23-06-2025.
A história do Brasil está intrinsecamente ligada à presença da Igreja Católica. A hegemonia católica no Brasil até o final do século XX foi resultado de uma construção histórica, institucional e cultural. Durante muito tempo o brasileiro foi sinônimo de católico.
A Igreja Católica foi designada como religião oficial desde a colonização portuguesa. O Padroado (sistema pelo qual o rei de Portugal controlava a Igreja no Brasil) significava que a Igreja era parte do aparelho do Estado: padres eram pagos pelo governo e só a Igreja podia realizar casamentos, batismos, outros registros civis e até sepultamento.
Durante séculos, educação, assistência social e moral pública estavam nas mãos da Igreja. Havia presença obrigatória da Igreja nas escolas e eventos públicos, com influência direta sobre costumes e valores. Outras religiões eram proibidas ou discriminadas. O protestantismo, por exemplo, só cresceu lentamente entre imigrantes e em regiões marginais. Religiões afro-brasileiras eram perseguidas como crime ou feitiçaria.
A Igreja construiu uma rede capilar de paróquias por todo o país, especialmente nas áreas rurais, o que a manteve como presença constante na vida cotidiana. Ela era uma das instituições mais respeitadas e enraizadas da sociedade brasileira.
O primeiro censo demográfico brasileiro, realizado em 1872, na comemoração dos 50 anos da Independência, indicou que a Igreja Católica abarcava 99,7% da população brasileira. No segundo censo, em 1890, no primeiro ano da República, as filiações católicas representavam 98,9% da população.
Cerca de cem anos depois, em 1991, a Igreja Católica perdeu em média 1,5% de fiéis por década, mas continuava muito forte, alcançando 83,3% da população brasileira. A tabela abaixo mostra que, em 1991, Teresina – capital do Piauí – tinha 92,2% de católicos, 4,1% de evangélicos, 1,9% de sem religião e 1,8% de outras religiões. A maioria das capitais do Nordeste e do Norte tinham mais de 80% de filiações católicas e menos de 10% de evangélicos, além de baixas percentagens do grupo sem religião e de outras religiões.
Reprodução: EcoDebate
A maioria das capitais do Sudeste, Sul e Centro-Oeste tinham percentagens de católicos entre 70% e 80%. A cidade do Rio de Janeiro tinha a menor percentagem de católicos, a sexta maior percentagem de evangélicos e as maiores percentagens do grupo sem religião e de outras religiões. A capital fluminense tinha a maior pluralidade religiosa das capitais brasileiras.
Além da distribuição percentual do quatro grupos religiosos, a tabela abaixo mostra o índice de Gini foi adaptado para medir a concentração ou o monopólio religioso e, inversamente, o grau de pluralidade religiosa de uma população. O índice de Gini é mais utilizado para medir a desigualdade de renda. Ele varia de 0 a 1: onde 0 = igualdade perfeita (todas as pessoas ganham o mesmo) e 1 = desigualdade total (uma pessoa tem tudo e as outras nada).
Aplicando a mesma fórmula à distribuição religiosa, o índice de Gini mede quão desigualmente a população está distribuída entre as diferentes religiões: 0 = pluralidade máxima: todos os quatro grupos têm a mesma proporção de fiéis e 1 = monopólio total e 100% da população segue uma única religião.
Em 1991, todas as capitais (com exceção de uma) tinham índice de Gini alto e acima de 0,500. Para o Brasil o índice era de 0,613 e Teresina com Gini de 0,684 era a capital com a maior concentração religiosa, com 92,2% de filiações católicas. Além de Teresina havia mais 12 capitais com índice de Gini acima de 0,600.
A única capital com Gini abaixo de 0,500 era a cidade do Rio de Janeiro que tinha 69,3% de filiações católicas, 10,3% de filiações evangélicas, 11,5% de pessoas sem religião e 9% de outras religiões, com Gini de 0,455 em 1991. Mas em três décadas a situação mudou bastante.
Os dados da tabela acima também mostram que a única capital, em 2022, com índice de Gini acima de 0,500 foi Teresina, que continua a capital com a maior concentração religiosa, embora tenha aumentado o grau de pluralidade, pois o Gini passou de 0,684 em 1991 para 0,526 em 2022. Na capital do Piauí os católicos continuam fortes, com 70,2%, embora valor menor do que o percentual de 1991. Os outros 3 grupos também aumentaram, mas ficaram abaixo da média nacional.
O índice de Gini caiu no Brasil e em todas as capitais, mostrando que o avanço da transição religiosa tem contribuído para uma menor concentração religiosa e uma maior pluralidade e diversidade de crenças. As cidades de Boa Vista (RR), Salvador (BA) e Rio de Janeiro (RJ) apresentam os menores índices de Gini (em torno de 0,240) e o menor grau de desigualdade.
Embora o índice de Gini tenha caído em todas as capitais, foi no Nordeste que as quedas foram menores e foi na região Norte que as quedas foram mais significativas no período. No Centro-Oeste as quedas também foram expressivas.
De fato, a partir de 1991, o Brasil começou a viver uma aceleração da pluralização religiosa. Esse fenômeno ocorreu por uma combinação de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais: A Constituição de 1988 garantiu liberdade plena de culto e igualdade entre as religiões, encerrando formalmente qualquer privilégio da Igreja Católica. Isso permitiu o florescimento de grupos antes marginalizados ou reprimidos.
Igrejas pentecostais e neopentecostais, como a Assembleia de Deus e a Igreja Universal, expandiram-se rapidamente. Seu modelo é mais flexível e emocional, com foco em curas, milagres, mídia e inserção nas periferias urbanas.
A urbanização e a migração interna enfraqueceram a estrutura social tradicional — incluindo o catolicismo paroquial. A vida urbana favoreceu opções religiosas mais adaptáveis ao contexto moderno, como as igrejas evangélicas, espiritualistas e até o crescimento dos “sem religião”.
O catolicismo permaneceu importante, mas perdeu o monopólio da identidade religiosa. Muitos brasileiros passaram a escolher ativamente suas crenças, alternando entre religiões ou optando por não se filiar a nenhuma (crescimento dos “sem religião”).
A Igreja Católica teve dificuldades em renovar seus quadros e competir com a agilidade das novas igrejas, especialmente nas periferias. Seu discurso tradicional responde menos às demandas de consumo religioso contemporâneo. O gráfico abaixo resume como se deu a redução do índice de Gini no Brasil e capitais.
Reprodução: EcoDebate
Em síntese, a hegemonia católica foi sustentada por séculos de vínculo com o Estado e o domínio social, mas a partir de 1991, com o avanço da democracia, urbanização e pluralismo, o Brasil passou a ser um país religiosamente diversificado. A partir de então, vive-se uma transição religiosa, com forte pluralidade e declínio contínuo da participação católica e aumento dos outros três grupos, ainda que o catolicismo continue numericamente relevante. O Brasil ainda mantém o título de maior país católico do mundo.
ALVES, JED et al. Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil, Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 2, 2017, pp: 215-242
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI, Escola de Negócios e Seguro (ENS), (com a colaboração de Francisco Galiza), maio de 2022.
ALVES, JED. A transição religiosa no Brasil: 1872-2049, Ecodebate, 09/06/2025
ALVES, JED. Transição religiosa em Japeri (RJ) e no Brasil, Ecodebate, 16/06/2025