18 Junho 2025
"Para a cultura neoliberal, a pessoa não tem valor em si. Quem se importa com o pedinte estirado em um canto da calçada? É o produto que ela possui que lhe imprime valor", escreve Frei Betto, escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
Vivemos hoje a crise de paradigmas políticos, éticos, econômicos e religiosos. Se o paradigma medieval era a religião e o moderno, a razão – acompanhada de suas duas filhas diletas, ciência e tecnologia –, qual seria o da pós-modernidade, na qual ingressamos neste início do século XXI?
Gostaria que fosse a solidariedade. Mas o mercado, regido pela era digital, se impõe: a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza. “Fora do mercado não há salvação”, proclama o capitalismo neoliberal, indiferente ao drama de sobrevivência de quase metade da humanidade (44%; 3,2 bilhões de pessoas), segundo o Banco Mundial, com menos de US$ 7 por dia!
Em muitos países, o capitalismo mercantiliza a educação, a saúde e os demais direitos sociais, hoje apresentados como serviços privados ao alcance de quem dispõe de renda para adquiri-los. Mercantiliza também a natureza, exaurindo seus recursos ou utilizando-os predatoriamente, como denunciou o papa Francisco em sua encíclica “Louvado sejas – Sobre o cuidado de nossa casa comum”. Os resultados são os desequilíbrios ambientais e o aquecimento global. A Terra já perdeu sua capacidade de autorregeneração. Para se recuperar, depende, agora, de intervenção humana.
Porém, o capitalismo ainda não conseguiu mercantilizar o bem maior que todos buscamos: a felicidade. É verdade que estamos cercados de simulacros. A Coca-Cola oferece esse bem maior ao alcance da mão e da boca: “Abra a felicidade!” Ora, só os bêbados e os magos acreditam que a felicidade jorra do gargalo de uma garrafa.
Para o capitalismo neoliberal, a felicidade reside no hiperconsumo desenfreado. O produto lançado hoje é considerado démodé amanhã. E quem espera ser visto como in, e não out, tem a obrigação de portar o que há de mais novo e avançado no mercado.
Paradoxalmente, essa ideia mercantilista de felicidade produz enorme infelicidade, na medida em que suscita em pessoas consumistas o medo da pobreza ou da perda de seus bens, o agudo senso competitivo, a ansiedade diante do futuro, gerando patologias físicas e mentais, como úlcera, depressão, síndrome do pânico etc.
Enquanto esperamos a felicidade ainda não somos felizes. A felicidade está dentro ou fora de nós? Depende. Para quem canaliza o desejo para fora de si mesmo, reside em algo a ser possuído: riqueza, beleza, fama, poder... Quem se deixa agarrar por essa “isca” não se sente feliz enquanto não alcança o que almeja. E depois experimenta a infelicidade ao perder o que conquistou.
O dependente químico sabe que a felicidade está dentro de si, mas recorre ao caminho do absurdo e não ao caminho do absoluto. Se alguém der a um drogado uma fortuna para abandonar o vício, provavelmente ele irá gastá-la na compra de drogas. Contudo, embora possa não se dar conta, de alguma forma descobriu que a felicidade é uma experiência subjetiva, uma mudança do estado de consciência.
Para a cultura neoliberal, a pessoa não tem valor em si. Quem se importa com o pedinte estirado em um canto da calçada? É o produto que ela possui que lhe imprime valor. Bill Gates é tão pessoa quanto o pedinte da esquina. Porém, graças à fabulosa riqueza que o reveste, aos olhos alheios ele possui um valor tão alto que suscita inveja e veneração, enquanto o mendigo provoca repúdio e nojo.
O capitalismo não quer formar cidadãos, e sim gerar consumistas. Por isso, renega os valores que norteiam nossas vidas, como ética e solidariedade, e desloca-nos da subjetividade para centrar-nos na objetividade, naquilo que se consome. Se chego à sua casa a pé, tenho um valor Z. Se chego a bordo do último modelo Mercedes-Benz, tenho valor A. Sou a mesma pessoa, mas a mercadoria me imprime valor. Sem ela, talvez eu nem seja reconhecido.
Assim, muita infelicidade resulta do fato de as pessoas colocarem fora de si o talismã capaz de proporcionar-lhes felicidade. Incapaz de ser tão rica, bela, famosa ou poderosa quanto gostaria, a pessoa se sente diminuída, entristece, cai em depressão, deixa o coração corroer de inveja, amargura, ira. Em suma, a luta ansiosa por felicidade costuma trazer infelicidade quando centrada em alvos ilusórios e equivocados.
Meu confrade Tomás de Aquino definiu a inveja como “a tristeza de não possuir o bem alheio”. E Shakespeare teria dito que o ódio é “um veneno que se toma esperando que o outro morra”. Gente sábia, rara hoje em dia.