A utopia neoliberal do capitalismo digital

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

16 Março 2023

“O que está em jogo na economia digital é uma reconfiguração das relações sociais. Esta reconfiguração se manifesta através do ressurgimento da figura da dependência, que era uma figura central no mundo feudal. A ideia da dependência remete ao princípio segundo o qual existe uma forma de adesão dos seres humanos a um recurso”, escreve Alfredo Moreno, cientista da computação e professor da Universidade Nacional de Moreno, na Argentina, publicado por Alai, 10-03-2023. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Não podemos continuar ignorando o papel das grandes empresas tecnológicas digitais no fortalecimento da desigualdade mundial. Para reduzir as forças do capitalismo digital, precisamos de políticas públicas que cuidem e promovam o bem comum do conhecimento, a segurança dos dados e o acesso comunitário aos serviços baseados em software e internet.

A direita política e midiática regional repete slogans e preconceitos contra o Estado e sua presença nas políticas públicas de inclusão social e cuidado em saúde. Ignora o debate mundial que visa fortalecer a presença do Estado, não só pelo papel central ocupado na pandemia, mas também para enfrentar o avanço dos gigantes do mundo digital que abusam de sua posição dominante no mercado e do megafluxo de dados que alimentam seus algoritmos como “armas de destruição matemática”.

Vivemos em um feudalismo próprio dos tempos tecnodigitais, muito longe da liberdade e a igualdade prometidas pelos mentores das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). Sob o manto de uma retórica de democratização e acesso à informação, progresso e inovação, esconde-se o mais puro e antigo sistema de dominação. Como argumenta Nick Srnicek, em seu livro Capitalismo de Plataformas, “a internet se transformou em uma espécie de utopia neoliberal desregulamentada e com poucos ganhadores”.

A implementação política, social e cultural das TICs, a “inocência dos engenheiros da computação”, as corporações tecnológicas e seus modelos de negócios do “Vale do Silício” configuraram um “admirável mundo novo”, cujo saldo se verifica na transformação do cidadão em consumidor de um mercado concentrado nas plataformas digitais.

O ensaio publicado pelo pesquisador Cédric Durand, Tecnofeudalismo: crítica de la economía digital, demonstra como o capitalismo se renovou retrocedendo. Instalou-se no contexto medieval com as ferramentas e serviços da modernidade. Não deu e nem nos fez dar um salto para o futuro em termos de acesso e representação cidadã, ao contrário, regrediu e ressuscitou as formas mais cruéis de dominação e submissão.

O mito do Vale do Silício californiano se derrete diante de nós: escandalosa acumulação de lucros, empresários da tecnologia ditadores, desigualdades sociais indecorosas, desemprego crônico, milhões de pobres adicionais e um punhado de oligarcas da tecnologia que acumulam fortunas jamais alcançadas. A tão propalada “nova economia” deu lugar a maior concentração econômica da dominação e a desigualdade. Politizar as TICs é uma necessidade presente para viver no território digital.

Yanis Varoufakis afirma que as transformações radicais que tiveram repercussões importantes como a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, a Grande Recessão e a Longa Estagnação, posterior a 2009, não alteraram a característica principal do capitalismo: um sistema impulsionado por lucros privados e rendas extraídas através do mercado. No entanto, a extração de valor tem se afastado cada vez mais do espaço produtivo e se deslocado para plataformas digitais, como Meta (Facebook), Google (Alphabet Inc.), Apple, Amazon e a regional Mercado Livre que operam como feudos onde os dados são o valor de seus territórios digitais.

Nesse sentido, Varoufakis aponta: “As plataformas digitais substituíram os mercados como o lugar de extração de riqueza privada. Pela primeira vez na história, quase todo mundo produz gratuitamente o capital social das grandes corporações. Isso é o que significa postar coisas no Facebook ou transitar permanecendo conectado ao Google Maps”.

Varoufakis esclarece que não significa que os setores capitalistas tradicionais tenham desaparecido, uma vez que as relações capitalistas permanecem intactas, mas, sim, que as relações tecnofeudalistas começaram a superá-las.

As críticas progressistas ao setor de TIC se dão em um marco capitalista dominante centrado no antitruste (o direito de defesa da concorrência), nos direitos humanos e no bem-estar dos trabalhadores. Formuladas por intelectuais de elite, jornalistas, grupos de reflexão e responsáveis políticos dos países que compõem o norte global, promovem uma agenda reformista centrada na Europa-Estados Unidos e que assume a continuidade do capitalismo extrativista, que geram benefícios nulos nos países do sul global.

O reformismo antitruste é especialmente problemático porque assume que o problema da economia digital é simplesmente o tamanho e as “práticas desleais” das grandes empresas e não o capitalismo extrativista em si.

O que está em jogo na economia digital é uma reconfiguração das relações sociais. Esta reconfiguração se manifesta através do ressurgimento da figura da dependência, que era uma figura central no mundo feudal. A ideia da dependência remete ao princípio segundo o qual existe uma forma de adesão dos seres humanos a um recurso.

A pandemia de Covid-19 visibilizou ainda mais o poder concentrado das corporações tecnológicas, a partir do impacto que tiveram no plano da comunicação, na indústria do entretenimento e nos grandes monopólios farmacêuticos, entre outras atividades. As corporações financeiras (FinTech) potencializaram exponencialmente os seus lucros, sendo as principais investidoras de dinheiro não declarado (paraísos fiscais) em sua origem.

A Apple é uma dessas corporações que não parou de crescer. Tornou-se a primeira companhia a valer 3 trilhões de dólares (mais do que o PIB das 3 principais economias da América Latina). No entanto, o poder e a ramificação das corporações tecnológicas - com base em uma complexa rede de acumulação econômica e paraísos fiscais -, hoje, condicionam os governos e seus Estados. Debatem e impõem negócios nos próprios Estados que lhes deram vida, há várias décadas, como é o caso dos Estados Unidos.

Na Argentina, o caso exemplar é o decreto 690/20, por meio do qual o governo do presidente Alberto Fernández declarou a internet um serviço essencial e conferiu à entidade reguladora (ENACOM) a tarefa de regulamentar os preços da internet, telefonia móvel e TV a cabo. Regulamentação que o Estado não pôde implementar, devido, inicialmente, ao fato de que as empresas Telecom, Telefónica e Claro, posteriormente, conquistaram amparos judiciais para ignorar o decreto.

Três ideias estão sendo debatidas nos mais altos escalões políticos dos poderes, que necessariamente deveriam ter influência em países periféricos:

1. as multinacionais contabilizam lucros extraordinários e para financiar um Estado que destinou muitos recursos para enfrentar a pandemia, devem pagar um imposto adicional;

2. a posição dominante de grandes empresas monopolistas ou oligopolistas provoca aumentos excessivos de preços e falta de concorrência;

3. o cada vez maior poder de mercado e financeiro das grandes empresas está limitando a eficácia dos instrumentos tradicionais de política monetária, como o aumento das taxas de juros pelos bancos centrais para enfrentar as tensões inflacionárias.

Como afirma o economista argentino Alfredo Zaiat, os pontos expostos surgem como a reação de um sistema com forte presença estatal que, desde a sua origem, esteve aliado e promoveu o desenvolvimento das corporações digitais. Corporações que, ao mesmo tempo, condicionaram políticas estatais para decolar a uma presença global e que agora se tornaram independentes do tradicional circuito de controle político e econômico dos sistemas estatais, utilizando paraísos fiscais para pagar pouco ou nada de impostos em seus países de origem.

Os enormes lucros se tornaram visíveis no contexto da pandemia. Pela primeira vez, uma extraordinária crise econômico-financeira global não afetou negativamente os negócios nas bolsas das corporações tecnológicas. Ao contrário, o índice médio das principais bolsas mundiais está em patamares recordes, ao passo que as economias colapsam e tentam recuperar o que perderam, o desemprego disparou e o drama sanitário e social tem sido fulminante.

Esse comportamento divergente entre a economia real e a evolução das cotações das Big Techs é um – não o único – fator que reflete a nova etapa do capitalismo. Da mesma forma, a associação histórica entre os Estados e as corporações dominantes está se desvinculando do sistema tradicional de organização e controle das forças produtivas e financeiras.

As três menções acima indicadas sobre as multinacionais são apenas a reação do mundo político das potências, em especial as do Ocidente, para tentar não ver reduzida a capacidade de intervenção e influência dos Estados ou a pretensão de não perder importância nas relações de poder.

No seio do mercado, houve uma monopolização, por parte do capitalismo, dos meios de produção, mas esses meios eram plurais. Os trabalhadores tinham que encontrar trabalho e, de certa forma, podiam escolher o posto de trabalho. Havia uma forma de circulação que abria espaço para a competição. Nesta economia digital, neste tecnofeudalismo, os indivíduos e também as empresas aderem às plataformas digitais que centralizam uma série de dispositivos e elementos que lhes são indispensáveis para existir economicamente no território digital. O modelo extrativista aplicado aos recursos naturais de nossos países é aplicado à sociedade em seu conjunto para conhecer suas preferências e opiniões, a fim de manipular a informação e orientar o consumo.

Trata-se do Big Data, dos bancos de dados e algoritmos que possibilitam o tratamento dos dados e a produção de conhecimento. Aqui, estamos diante de um processo que potencializa a si mesmo: quanto mais as pessoas participam na vida das plataformas digitais, mais serviços indispensáveis oferecem, mais a dependência se acentua. Esse ciclo de centralização permanente acaba com a ideia de competição, valor central do capitalismo.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

A utopia neoliberal do capitalismo digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU