06 Junho 2025
"Esse é o nascimento da sociologia. Quando percebemos que o mundo não é destino. É construção. E, portanto, pode ser desconstruído e reconstruído".
O artigo é de Paulo Baía, sociólogo, cientista político e professor da UFRJ, publicado em seu Facebook, 24-05-2025.
Este texto é uma travessia poética, crítica e radical pela aventura do pensamento sociológico. Uma travessia que começa no estranhamento do cotidiano, atravessa os abismos da modernidade e da colonialidade, escuta as epistemologias insurgentes e, por fim, afirma que compreender o mundo não é apenas interpretá-lo, mas, sobretudo, transformá-lo. Da sociologia clássica às epistemologias do Sul, das cidades líquidas às favelas como centros de saber, este ensaio é uma declaração de amor e rebeldia. Porque pensar é ato de resistência. E a sociologia é uma lâmpada acesa no escuro.
Viver é muitas vezes atravessar labirintos invisíveis. A cidade, o trabalho, a escola, as regras e os afetos se apresentam como naturais, automáticos, inevitáveis. Mas há quem recuse. Quem transforma o desconforto em pergunta. A dúvida em método. E o estranhamento em caminho.
Esse é o nascimento da sociologia. Quando percebemos que o mundo não é destino. É construção. E, portanto, pode ser desconstruído e reconstruído.
Fazer sociologia não é um exercício neutro. É acender lâmpadas no escuro. É nomear o que foi silenciado. É compreender que aquilo que parece natural — as leis, os costumes, as desigualdades — são, na verdade, resultados históricos de relações de poder.
Aqui começa a aventura sociológica: um gesto insurgente, amoroso e profundamente político.
Peter Berger, em Convite à Sociologia [1], oferece a primeira chave: o estranhamento sociológico. Ver o estranho no familiar e o familiar no estranho. Desnaturalizar o cotidiano, percebendo que o que parece dado é, na verdade, construção social.
Por que chamamos de “acidente” o genocídio da juventude negra nas periferias? Por que aceitamos que uma mulher negra ganhe menos que um homem branco? Por que naturalizamos que a favela seja policiada e o condomínio protegido?
O estranhamento rompe o pacto da ignorância. Faz cair o verniz da normalidade.
Erving Goffman, em A Representação do Eu na Vida Cotidiana [2], compara a vida social a um teatro. Cada interação é uma cena. Cada pessoa é ator de um papel social.
Mas não se trata de falsidade. Trata-se de ordem. Para garantir estabilidade, as pessoas performam expectativas sociais. As máscaras são, portanto, instrumentos de sobrevivência.
O problema surge quando esses roteiros reproduzem desigualdades. Quando os papéis são distribuídos segundo gênero, raça, classe e território.
Norbert Elias, em O Processo Civilizador [3], desmonta o mito do progresso como linha reta. Para ele, civilização e barbárie não são opostos. São complementares.
A mesma Europa que produziu sinfonias, catedrais e universidades também promoveu genocídios, colonização e escravidão. O que chamamos de “civilização” é, muitas vezes, um projeto de domesticação dos corpos, dos desejos e dos afetos.
Marcel Mauss, em Ensaio Sobre a Dádiva [4], revela que não existe presente gratuito. Toda dádiva carrega consigo uma expectativa de retorno, um contrato não escrito.
No Brasil, isso aparece nas relações clientelistas, no patrimonialismo e na famosa frase: “Você sabe com quem está falando?”
Georg Simmel, em Sociologia: Estudos Sobre as Formas de Socialização [5], mostra que a cidade moderna produz, simultaneamente, liberdade e solidão.
Para sobreviver ao excesso de estímulos, o sujeito urbano desenvolve uma atitude blasé — um distanciamento afetivo. A cidade oferece conexão e desconexão.
Pierre Bourdieu, em A Distinção [6], introduz um dos conceitos mais poderosos da sociologia: o habitus.
O habitus é a gramática invisível que molda nossos gostos, gestos, preferências, formas de falar e de se portar. Ele reflete a nossa posição social.
Assim, as desigualdades se reproduzem não apenas por meio da renda, mas também pela cultura, pelo gosto, pela linguagem. O habitus faz com que a dominação pareça natural.
Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida [7], diz que tudo que parecia sólido derrete. O amor vira swipe. O emprego vira bico. A cidadania vira algoritmo.
Ulrich Beck, em Sociedade de Risco [8], alerta: vivemos em um mundo onde os riscos não são naturais, mas produzidos. O próprio desenvolvimento gera seu colapso — crises climáticas, pandemias, colapsos econômicos, vigilância algorítmica.
O IPCC (2024) [9] alerta: se nada mudar, o planeta ultrapassará 2°C até 2050, produzindo fome, migrações forçadas, colapso hídrico e mais de 1,2 bilhão de deslocados.
O Relatório da Oxfam (2024) [10] expõe que o 1% mais rico do planeta emite mais carbono do que os 50% mais pobres juntos.
A necropolítica, conceito de Achille Mbembe [11], mostra que a modernidade não é apenas biopolítica (gestão da vida). É também necropolítica — gestão da morte. Decide quem vive e quem morre.
Isso se manifesta nas chacinas nas favelas, no encarceramento em massa, nas mortes de migrantes nas fronteiras e na destruição de territórios indígenas.
Jason Moore [12] propõe trocar “Antropoceno” por “Capitaloceno”, pois não é toda humanidade que destrói o planeta, mas uma humanidade específica: colonial, capitalista e patriarcal.
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, em Dependência e Desenvolvimento na América Latina [13], demonstram que o subdesenvolvimento não é atraso. É projeto. É a face periférica do desenvolvimento dos centros capitalistas.
Alberto Guerreiro Ramos, em A Redução Sociológica [14], propõe romper com a sociologia colonizada. Uma sociologia que não copie a Europa, mas que pense desde o Brasil, desde a realidade negra, periférica, quilombola, indígena e latino-americana.
Octavio Ianni, em A Sociedade Global [15], mostra que a globalização não dissolve as fronteiras da desigualdade — ela as intensifica.
Florestan Fernandes, em A Integração do Negro na Sociedade de Classes [16], afirma que o racismo é pilar da formação social brasileira. A abolição não trouxe inclusão, mas a manutenção das estruturas de subalternização dos negros.
Clóvis Moura, em Sociologia do Negro Brasileiro [17], diz que a verdadeira história do Brasil não se escreve nos palácios, mas nas fugas, nos quilombos, nas insurreições negras.
Aníbal Quijano [18], com seu conceito de colonialidade do poder, explica que, mesmo após as independências políticas, permanece uma matriz colonial de poder baseada em racismo, exploração econômica e epistemicídio.
O sistema penal brasileiro, como revelam Daniel Hirata e Michel Misse [19], não combate o crime, mas controla a pobreza e a negritude. O encarceramento em massa é o novo pelourinho.
Gisálio Cerqueira Filho [20] denuncia que o sistema penal brasileiro é seletivo, racializado e parte da engrenagem de reprodução das desigualdades.
Boaventura de Sousa Santos, ao denunciar o epistemicídio [21], revela que o colonialismo não matou apenas corpos, mas também saberes, cosmologias e epistemologias.
Carmen Junqueira [22], em seus estudos sobre povos indígenas, e Yvonne Maggie [23], ao revelar o racismo religioso contra terreiros, mostram que esses saberes resistem.
Achille Mbembe, em Necropolítica [24], afirma que as periferias, as favelas, os campos de refugiados, as fronteiras militarizadas são hoje as câmaras de morte da ordem global.
Achille Mbembe, ao falar de necropolítica [25], mostra que o capitalismo colonial não apenas governa a vida, mas também a morte.
Patricia Hill Collins e Kimberlé Crenshaw, ao desenvolverem a interseccionalidade [26], demonstram que as opressões não são somatórias, mas se entrelaçam de modo a produzir experiências específicas e violências singulares.
Syed Hussein Alatas, em The Myth of the Lazy Native [27], desmascara uma das tecnologias coloniais mais eficientes: a ideia de que os povos colonizados são preguiçosos e incapazes, justificando, assim, sua exploração.
Boaventura de Sousa Santos, com o conceito de ecologia de saberes [28], propõe superar a monocultura do saber científico ocidental e reconhecer os saberes indígenas, quilombolas, afro-diaspóricos e populares como epistemologias plenas.
O conceito de Bem Viver, derivado das cosmovisões andinas (Sumak Kawsay) e das filosofias dos povos originários, propõe uma ruptura com o desenvolvimento capitalista. Aqui, viver bem não é acumular, mas viver em harmonia com o território, os seres e o cosmos.
Leanne Betasamosake Simpson [29], pensadora indígena canadense, afirma que defender o território não é apenas questão ecológica — é questão ontológica. A terra não é recurso. É parente.
No Brasil, Ailton Krenak [30] e Davi Kopenawa [31] reforçam que lutar pelos territórios indígenas é lutar pela continuidade dos mundos.
Angela Davis, em Mulheres, Raça e Classe [32], mostra que não há emancipação possível se não forem combatidos, simultaneamente, o capitalismo, o racismo e o patriarcado.
Lélia Gonzalez, com o conceito de amefricanidade [33], articula uma visão de mundo em que as epistemologias afro-diaspóricas se tornam centrais para compreender a América Latina.
Ochy Curiel e Françoise Vergès [34] constroem feminismos decoloniais, anticapitalistas e antirracistas, recusando os feminismos liberais que buscam apenas inclusão nas estruturas da opressão.
Michael Burawoy, em For Public Sociology [35], defende uma sociologia pública, insurgente e militante. A sociologia não deve servir ao poder, mas às lutas sociais, à transformação e ao cuidado coletivo.
José de Souza Martins, em Os Camponeses e a Política no Brasil [36], mostra que a modernização agrária no Brasil foi, na verdade, um projeto de expropriação, concentração fundiária e expulsão dos povos do campo.
Luiz Antonio Machado da Silva, em Sociabilidade Urbana [37], afirma categoricamente que a favela não é um erro da cidade. Ela é solução precária que o próprio sistema produz para gerir seus excedentes humanos.
O mercado informal — camelôs, ambulantes, motoboys, trabalhadores de aplicativo — não é desvio. É o modo dominante de funcionamento do capitalismo brasileiro.
Alba Zaluar, em Condomínio do Diabo [38], mostra que a violência urbana não é exceção. É regra. É engrenagem da sociabilidade brasileira.
O Estado não está ausente nas periferias. Está presente — na forma de bala, caveirão, cassetete, prisão, necropolítica.
Yvonne Maggie, em Medo do Feitiço [39], revela que o racismo religioso estrutura a perseguição às religiões afro-brasileiras. O avanço do fundamentalismo cristão não é apenas teológico — é projeto de apagamento epistêmico e existencial.
Edson Nunes, em A Gramática Política do Brasil [40], e Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis [41], mostram que o Brasil é governado por uma lógica patrimonialista, clientelista e racializada, onde a cidadania é mediada pelo sobrenome, pela cor da pele e pelas redes pessoais.
Maria Isaura Pereira de Queiroz, em O Messianismo no Brasil e no Mundo [42], revela que a cultura popular — festas, ritos, rodas, cortejos — não é alienação. É pedagogia, é cuidado, é resistência, é projeto político.
Machado da Silva sintetiza: a favela não é espaço. É epistemologia. É escola viva de urbanismo popular, de engenharia social, de redes de cuidado e de reinvenção da vida.
"A utopia não está na linha de chegada. Ela está no caminho." — Eduardo Galeano
"Enquanto houver luta, haverá futuro." — Sabedoria dos povos quilombolas e indígenas
O que a aventura sociológica nos ensina é simples e radical: o mundo não é destino. É construção.
Se é construção, ele pode ser desconstruído e reconstruído. O racismo, o patriarcado, o capitalismo, a colonialidade e a necropolítica não são natureza. São projeto. São engenharia social a serviço da acumulação, da exploração e da manutenção dos privilégios.
Desnaturalizar é o primeiro gesto da liberdade. Compreender é o segundo. Transformar é o único horizonte aceitável.
A utopia, aqui, não é fuga. Não é fantasia. É método. É recusa ativa. É prática insurgente. É imaginação política.
A sociologia, quando feita desde os territórios, desde os corpos, desde os afetos, desde a resistência, é arma, é marreta, é semente, é enxada, é palavra e é cuidado.
Acendamos, então, nossas lâmpadas no escuro. Porque uma vez que a lâmpada acende, não é mais possível fingir que não se vê. E quem vê, não pode ser cúmplice. Deve ser construtor de futuros.
[1] BERGER, Peter. Convite à Sociologia. Petrópolis: Vozes, 1986.
[2] GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
[3] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
[4] MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre a Dádiva. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
[5] SIMMEL, Georg. Sociologia: Estudos Sobre as Formas de Socialização. São Paulo: Ática, 2006.
[6] BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
[7] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[8] BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
[9] IPCC. Relatório Síntese 2024. Genebra: ONU, 2024.
[10] OXFAM. Relatório Desigualdade Global 2024. Londres: Oxfam Internacional, 2024.
[11] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
[12] MOORE, Jason W. Capitalism in the Web of Life. London: Verso, 2015.
[13] CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
[14] GUERREIRO RAMOS, Alberto. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
[15] IANNI, Octavio. A Sociedade Global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
[16] FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática, 1978.
[17] MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
[18] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
[19] HIRATA, Daniel; MISSE, Michel. Mercados Ilegais, Redes Criminais e Sociabilidades Violentas. Rio de Janeiro: FGV, 2019.
[20] CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A questão social no Brasil: crítica do discurso político. São Paulo: Cortez, 1982.
[21] SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2019.
[22] JUNQUEIRA, Carmen. Estrutura Social e Organização Cultural dos Índios Canela. São Paulo: USP, 1983.
[23] MAGGIE, Yvonne. Medo do Feitiço. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[24] SIMPSON, Leanne Betasamosake. As We Have Always Done. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.
[25] KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[26] KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[27] DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
[28] GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[29] CURIEL, Ochy. Sistema Sexo/Gênero e Descolonização. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 114, 2017; VERGÈS, Françoise. A Decolonial Feminism. London: Pluto Press, 2021.
[30] BURAWOY, Michael. For Public Sociology. American Sociological Review, v. 70, n. 1, 2005.
[31] MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1993.
[32] MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Sociabilidade Urbana. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
[33] ZALUAR, Alba. Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994.
[34] NUNES, Edson. A Gramática Política do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[35] DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
[36] QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Ática, 2005.