08 Mai 2025
Sete mil moradores esperam desde 2008 assinatura de decreto presidencial para titulação de área tradicional quilombola no Piauí; território é cobiçado por projeto de mineração de ferro, que tem apoio do PT e participação de ex-secretário estadual da Mineração entre os sócios
A reportagem é de Vinicius Konchinski e Diego Junqueira, publicada por Repórter Brasil, 05-05-2025.
O dia 20 de novembro de 2024 começou com expectativa e terminou com frustração para os cerca de 7 mil moradores do Quilombo Lagoas, no sul do Piauí.
Notícias vindas de Brasília davam conta de que aquele Dia da Consciência Negra seria também um marco histórico para a comunidade quilombola, a maior do Nordeste. O presidente Lula (PT) enfim assinaria o decreto de desapropriação de propriedades privadas dentro do quilombo, o que permitiria avançar no pedido de titulação da área, aberto em 2008. A rubrica, porém, não veio.
“Só pode ser por conta da mineração. Não tem outra coisa”, declara Claudio Teófilo Marques, 72, vice-presidente da Associação Territorial do Quilombo Lagoas. Ele é nascido e criado no local, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2009, mas ainda em processo de regularização. O apoio ao projeto minerário pelo governo estadual, comandado pelo PT desde 2015, estaria travando a titulação do quilombo, segundo pesquisadores e um defensor público ouvidos pela Repórter Brasil.
Recheada de jazidas de minério de ferro, parte da área do quilombo é cobiçada pela SRN Mineração S.A., uma holding paulista que incorporou várias empresas piauienses com direitos minerários na região. Um dos sócios da firma é um influente político local, Luís Coelho da Luz Filho.
Prefeito de Paulistana (PI) de 2005 a 2012, Coelho abriu várias empresas de mineração nesse período. Após deixar o cargo, ele participou da formação da SRN Mineração S.A. e de outras companhias nesse segmento, antes de assumir uma função-chave: a de secretário estadual de Mineração, Petróleo e Energias Renováveis. Exerceu o posto de fevereiro de 2015 a abril de 2018, durante o governo de Wellington Dias (PT), atual ministro do Desenvolvimento e da Assistência Social de Lula.
Para o defensor público federal Benoni Ferreira Moreira, que tem atuado junto aos quilombolas no processo de demarcação, políticos do Piauí estão pressionando o governo Lula para que o decreto esperado pela comunidade não seja assinado. “O governo do Piauí vê a demarcação como um obstáculo ao desenvolvimento do estado por meio da exploração de recursos naturais”, afirma.
A visão é compartilhada pelo pesquisador Judson Jorge, da Uespi (Universidade Estadual do Piauí), para quem é evidente o desinteresse do governo estadual na demarcação do quilombo. “Há uma opção declarada no Piauí pelo modelo de desenvolvimento primário exportador. O Quilombo Lagoas é visto como um entrave pelo governo”, diz o professor, autor de uma tese de doutorado acerca dos megaprojetos de mineração no estado.
“Votamos no Lula, fizemos campanha. Mas nunca imaginamos passar por uma frustração tão grande”, conta o líder quilombola Cláudio Marques. A expectativa era alta para a assinatura ainda do decreto ainda no ano passado, porque todas as exigências do governo federal haviam sido cumpridas.
Em 2023, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) publicou uma portaria reconhecendo o direito dos descendentes de escravizados àquelas terras. Uma reunião entre lideranças locais e servidores federais ratificou, meses depois, o cumprimento dos trâmites necessários para a assinatura presidencial.
Dez dias após o Dia da Consciência Negra, Lula chegou a firmar a desapropriação de propriedades em favor da demarcação de 15 quilombos em oito estados. Mas o Quilombo Lagoas não foi incluído. “Ficamos sem entender nada”, lembra Marques.
Procurado pela Repórter Brasil, o Incra confirmou que já cumpriu todas as etapas que lhe cabem no processo de titulação do quilombo e que, agora, “aguarda a assinatura do Decreto de Interesse Social”. “A competência da assinatura é da Presidência da República”, acrescentou.
A reportagem procurou a Casa Civil da Presidência, por e-mail, em 3 de abril. No dia seguinte, o órgão respondeu que o Ministério da Igualdade Racial se pronunciaria até o dia 8. Em 29 de abril, o ministério informou que enviaria uma resposta conjunta com a Casa Civil, mas não o fez até o momento.
A Presidência da República também foi questionada sobre o decreto. Não respondeu.
O governo do Piauí, por sua vez, declarou apoiar a política nacional de titulação de quilombos, tendo implementado diversas ações nos últimos anos. A gestão afirmou também que apoia “empreendedores que desejem atuar com respeito às normas ambientais vigentes” e “sem conflito com as comunidades tradicionais que estejam sobrepostas ou com as quais mantenham limites”. Confira mais respostas do governo do Piauí ao longo do texto e, neste link, a íntegra do posicionamento.
A Repórter Brasil tentou contato com Luis Coelho por meio da SRN Mineração S.A. e de outras empresas das quais é sócio. Também buscou contato com o ex-secretário por meio do diretório do MDB no Piauí, partido do qual ele foi filiado, e da assessoria de imprensa do senador Marcelo Castro, presidente estadual da legenda. Até o fechamento desta matéria, no entanto, a reportagem não conseguiu contatar o político. A SRN também não se manifestou até o momento. O texto será atualizado se os posicionamentos forem recebidos.
Médico obstetra, dono de hospital e servidor estadual da Saúde, Dr. Luís Coelho, como é conhecido, atuou nos últimos anos dos dois lados do balcão: como gestor público de mineração e empresário do setor.
Até 2008, ano da sua última vitória eleitoral, Coelho não tinha negócios no ramo, de acordo com sua prestação de contas à Justiça Eleitoral. Mas isso mudou em 2010, quando se envolveu na criação de várias mineradoras, segundo dados da Receita Federal compilados pelo Cruzagrafos, a plataforma de dados públicos da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).
Por volta de 2010, o Piauí despontava como a “nova fronteira da mineração no país”, com abundância de minerais diversos, segundo o Ibram. Coelho aproveitou o boom.
Entre 2006 e 2015, antes, portanto, de assumir a secretaria piauiense de mineração, Coelho e oito empresas das quais é sócio protocolaram 139 requerimentos na ANM (Agência Nacional de Mineração), para pesquisas de minérios de ferro, cobre, manganês, calcário, talco, arenito, diamante, entre outros, em várias regiões do Piauí. Dos 139 pedidos, 96 continuam ativos, segundo levantamento da Repórter Brasil no banco de dados da agência federal.
Algumas dessas empresas já foram extintas, outras foram incorporadas à SRN Mineração S.A. e pelo menos duas continuam ativas: a holding paulista e a Valverde Geologia. Em ambas, Coelho tem como sócio, entre outros, o empresário Marcelo da Silva Prado, presidente da SRN Mineração S.A.
Principal aposta do grupo, a mineradora recebeu sucessivos aportes financeiros de seus sócios ao longo da última década, incluindo de Coelho, segundo documentos registrados na Junta Comercial de São Paulo e acessados pela Repórter Brasil.
Em janeiro de 2015, dez dias antes de assumir a secretaria de mineração do Piauí, Coelho assinou documento em que se compromete a adquirir mais de R$ 270 mil em ações da empresa. A operação foi confirmada em reunião do conselho de administração de março de 2015, quando ele já era secretário estadual. Na ocasião, homologou-se o aumento do capital social da firma em R$ 3,5 milhões.
A situação se repetiu nos meses seguintes. Em maio e dezembro de 2015, em janeiro de 2016 e em maio de 2017, Coelho e seus sócios assinaram compromissos de novos aportes, segundo os documentos, sempre com objetivo de ampliar o capital da firma.
Enquanto o então secretário investia na SRN Mineração S.A., a companhia estreitava relações com o governo do Piauí. Em abril de 2017, executivos da mineradora foram recebidos pelo governador Wellington Dias no Palácio Karnak para apresentar os planos de instalação da planta piloto do projeto.
“Estamos numa fase de aperfeiçoamento de alguns detalhes, essa questão do licenciamento foi um dos assuntos tratados com o governador”, declarou Marcelo da Silva Prado, o presidente da SRN Mineração S.A., em entrevista à TV Assembleia, do Legislativo piauiense.
Também entrevistado, o então secretário Luís Coelho destacou a responsabilidade ambiental do projeto, do qual era sócio. “Esse é um trabalho de quase dez anos pesquisando e acreditando no potencial mineral do estado. Nós vamos tirar o minério atraído pelo ímã, porque nosso minério é a magnetita. Significa dizer que não vamos ter aquele problema que tivemos em Mariana (MG), de [rompimento da] barragem de rejeitos. Não vamos usar água.”
Já o governador Wellington Dias afirmou que a reserva de ferro era uma “prioridade” do estado, destacando a alta qualidade do minério, considerado “premium”. “Aqui acertamos um cronograma cuja previsão é já começar os investimentos, que passam agora por licenciamento, por regularização fundiária, a parte fiscal…”
Em outubro de 2018, quando Coelho já tinha saído do governo, os documentos analisados pela reportagem mostram que ele detinha 8% do negócio. Sua fatia era então avaliada em R$ 1,3 milhão, sendo o quarto maior entre 33 acionistas na época. Nas eleições de 2020, quando fracassou na tentativa de se eleger novamente prefeito de Paulistana, o político declarou a participação de quase meio milhão de reais na empresa.
Em 2019, um ano após Coelho deixar o cargo na gestão estadual, a SRN fez o pedido de licenciamento à Secretaria de Meio Ambiente do Piauí, concedido em 2021, na gestão Dias. Na época, a licença foi criticada pela Associação Brasileira de Antropologia, por ter sido emitida à revelia do processo de reconhecimento e demarcação do quilombo.
Em novembro passado, a SRN assinou acordo com a agência estatal de fomento Investe Piauí para “exploração sustentável do minério de ferro” em São Raimundo Nonato. “A Investe Piauí será responsável por prestar apoio institucional para viabilizar as operações da SRN Holding, incluindo o suporte na obtenção de licenças e autorizações ambientais”, segundo a agência estatal.
O projeto, que adentra parcialmente a área reivindicada do Quilombo Lagoas, prevê extrair inicialmente 300 mil toneladas por ano, mas com potencial de atingir 2 milhões de toneladas em cinco anos, segundo disse Prado ao jornal “Valor Econômico”.
A SRN foi procurada por telefone e mensagem enviada por meio de seu site para comentar os projetos no quilombo, sua relação com Coelho e sua eventual influência no atraso da titulação do quilombo. A empresa não retornou.
A reportagem procurou o ex-governador e ministro Wellington Dias para que ele comentasse a situação do Quilombo Lagoas e a relação do seu secretário com a SRN Mineração. Dias não se pronunciou nem por sua assessoria pessoal nem por meio do ministério.
Coelho se afastou da vida pública em junho de 2022, quando se preparava para disputar uma vaga de deputado estadual. Em comunicado nas redes sociais, ele afirmou ter tomado a decisão para estar mais perto da família e cuidar de negócios pessoais. “Atualmente sou sócio e executivo de uma das maiores empresas de mineração do Brasil, que em seu estatuto proíbe seus dirigentes de acumularem função pública. Diante da impossibilidade de conciliar a vida pública com meus negócios, e tendo o sentimento de realização enquanto político, retiro minha pré-candidatura a candidato estadual”, disse ele na mensagem, agradecendo a Wellington Dias e ao atual governador, Rafael Fonteles.
O Quilombo Lagoas tem 62,3 mil hectares, que se dividem entre seis municípios do sudoeste do Piauí: São Raimundo Nonato, Fartura do Piauí, Várzea Branca, São Lourenço do Piauí, Dirceu Arcoverde e Bonfim do Piauí. No território existem 119 comunidades, segundo o Incra, com 1.500 famílias.
Para o defensor público federal Benoni Ferreira Moreira, a eventual exploração de ferro na região é incompatível com a existência do quilombo e a subsistência de sua população. Moreira diz que a mineração não é expressamente proibida em áreas destinadas a quilombos, mas isso depende de consulta às comunidades, o que não aconteceu até o momento.
O defensor lembra também que o Quilombo Lagoas se organizou para produzir até 80 toneladas de mel orgânico por ano, com vendas ao exterior. A atividade minerária vizinha aos apiários tende a extinguir essa fonte de renda.
“Imagina a gente criando abelhas enquanto máquinas e caminhões cruzam o quilombo. Não tem como”, reforça Marques, um dos vários quilombolas membros da Cooperativa Mel do Sertão.
“Mineração não traz dinheiro para a gente”, acrescenta ele. “Não dá emprego para a comunidade. Ninguém aqui sabe pilotar esse maquinário. Só sabe lidar no campo.”
Bernardo Curvelano Freire, professor da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) no campus de São Raimundo Nonato, também vê o governo estadual do Piauí agindo para atrapalhar a demarcação do Quilombo Lagoas, chamando para si decisões de competência federal, como é o caso da titulação de territórios quilombolas.
“A Casa Civil e [o ministro] Rui Costa transferiram a deliberação sobre os territórios titulados para os governadores”, analisa o docente. “[O governador] Rafael Fonteles se aproveitou disso e ‘sentou’ sobre o processo de demarcação.”
À Repórter Brasil, o governo do Piauí informou que, “desde 2019, [o Instituto de Terras do Piauí] vem avançando a passos largos nessa importante política pública, tendo titulado até o momento 38 territórios, sendo que 23 nos últimos dois anos, reforçando a política nacional”.
A gestão estadual afirmou ainda que, num eventual conflito entre o Quilombo Lagoas e a SRN Mineração, é possível fazer uma negociação entre as parte, em prol do “desenvolvimento sustentável da região, que permitirá o funcionamento do empreendimento dentro da lei e a manutenção das tradições e modo de vida da comunidade tradicional”.
“É todo mundo do mesmo partido, do mesmo grupo político”, diz o quilombola Marques. “Ou faltou boa vontade de Lula. Ou alguém daqui pediu para não assinar [o decreto].”