07 Agosto 2024
À medida que as tentações artísticas digitais proliferam, Michelangelo e o apóstolo Paulo nos ensinam a buscar formas de arte mais humildes e fiéis. Nunca confie em uma imagem – ou em um salvador – sem feridas.
O comentário é de Matthew J. Milliner, professor de História da Arte no Wheaton College, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Christianity Today, 10-07-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por que rezar sozinho ou com sua família se você pode rezar com celebridades de bíceps grandes no aplicativo Hallow? Por que se limitar a ler ou ouvir os Evangelhos se você pode ter um Jesus com toda a emoção e o apelo de uma série da Netflix para maratonar? Por que cultivar a habilidade de oração inaciana da imaginação ativa quando você pode vivenciar passivamente uma exposição imersiva que dá vida a uma tempestade no Mar da Galileia [veja o vídeo abaixo]?
Por que se contentar com uma Igreja comum quando você pode fazer um tour digital pelas maiores catedrais da Europa ou ouvir pregadores famosos confortavelmente em casa? Ou por que se contentar com representações tradicionais de Jesus ou de figuras da Bíblia e da história da Igreja quando imagens daquilo que a revista The Atlantic apelidou de “Jesus sensual” e “santos sensuais” criados por IA proliferam agora na internet?
Essas são apenas algumas das perguntas levantadas pelas acelerações vertiginosas da nossa era digital, e os cristãos têm uma resposta melhor. Aqui, vou me concentrar nas representações de Jesus por IA e explorar como o exemplo do maior artista cristão da história, Michelangelo, pode nos ajudar a resistir às tentações da devoção artificial.
Imagens de Jesus criadas por IA e que repercutiram nas mídias sociais (Foto: Christianity Today)
A resposta mais fácil para as imagens de Jesus criadas por IA é dizer que os iconoclastas – os quebradores de ícones cristãos que alertavam contra (ou destruíam completamente) as imagens devocionais na Bizâncio do século VIII e na Europa do século XVI – foram finalmente justificados. Uma imagem gerada por IA como o “Jesus-camarão” certamente é o suficiente para fazer algumas pessoas esperarem que um equivalente moderno dos soldados destruidores de vitrais de Oliver Cromwell em breve cavalgue novamente.
Os iconoclastas modernos argumentariam que as igrejas deveriam ser limpas e sem imagens, mediante uma limpeza semanal cada vez mais necessária da nossa paleta visual digitalmente esgotada. Esse é um conselho venerável e antigo. “Quando estiver rezando”, escreveu o Padre do deserto do século IV Evágrio Pôntico, “não imagine a Divindade como uma imagem formada dentro de você. Evite também permitir que seu espírito seja impresso com o selo de alguma forma particular, mas, em vez disso, livre-se de toda a matéria, aproxime-se do Ser imaterial, e você alcançará o entendimento”. Em outras palavras, delete o aplicativo.
Outra resposta – do iconófilo ou amante de imagens – abraçaria esses novos desenvolvimentos com todo seu coração, canalizando-os para um efeito positivo. Pode-se argumentar que essa foi a abordagem de Michelangelo. Quando sua carreira começou, as esculturas clássicas visualmente impressionantes estavam sendo desenterradas do solo, provocando em muitas pessoas uma crise de fé: será que o cristianismo havia levado tal esplendor visual a um fim prematuro?
As primeiras esculturas de Michelangelo responderam a essa pergunta com um sonoro “não”, mostrando que a arte cristã podia ser tão bela quanto a do mundo clássico, ou até mais. Talvez devêssemos adotar uma abordagem semelhante ao novo meio da IA, adotando e também excedendo o que o mundo nos oferece hoje.
Eu mesmo tentei essa estratégia, passando meses usando a IA a fim de ressuscitar um santo africano perdido por meio de ícones gerados por IA. O resultado me deixou estarrecido. Verdade seja dita, a estratégia do abraço total também deixou Michelangelo estarrecido. “Enfim, bem sei quanto erro havia”, escreveu ele em um soneto tardio dos anos 1550, “na apaixonada fantasia que fez da arte meu ídolo e monarca, e em tudo aquilo que, a contragosto, todo homem anseia” [trad. Nilson Moulin].
Mas essa desilusão com a produção cultural não significa necessariamente que os iconoclastas ganhem o argumento. Michelangelo não desistiu completamente da arte. Em vez disso, ele retornou com nova intensidade a um interesse vitalício pela estética mais simples e pura dos ícones cristãos antigos, que ele tentou replicar ou ecoar em várias ocasiões.
O historiador da arte Alexander Nagel, em seu livro “Michelangelo and the Reform of Art” [Michelangelo e a reforma da arte, em tradução livre], argumentou convincentemente que Michelangelo pretendia “preservar tradições do imaginário religioso em um tempo em que os desenvolvimentos artísticos ameaçavam sua integridade e domínio”, e essa – acredito eu – também deveria ser a nossa estratégia hoje.
Michelangelo também minou ativamente as técnicas visuais que ele havia dominado. Influenciado pelas doutrinas da graça da Reforma, as últimas obras de Michelangelo são deliberadamente empobrecidas. Você pode ver essa mudança no contraste entre sua primeira e mais famosa Pietà, feita quando ele tinha pouco mais de 20 anos, e a Pietà Rondanini, executada quando ele tinha mais de 80 anos. Na primeira, uma Maria maior do que tudo e impossivelmente jovem segura Jesus; na segunda, deliberadamente áspera e inacabada, Jesus parece estar defendendo – até mesmo em sua morte – uma Maria apropriadamente envelhecida.
A primeira Pietà de Michelangelo (1498-1499) e sua última Pietà Rondanini (1564) (Foto: Wikimedia)
A confiança de Michelangelo nas formas de arte antigas e mais humildes, e sua adoção deliberada da pobreza visual o ajudaram a navegar no tumultuado século XVI, e pode nos ajudar a navegar no nosso próprio tempo também. Inundados com imagens de Jesus lúbricas e sexualmente sugestivas criadas por IA, podemos nos beneficiar da sabedoria de iconoclastas fiéis sem abandonar completamente as imagens devocionais.
Assim como Michelangelo, podemos escolher fazer e contemplar imagens cristãs que sejam humildes, talvez pouco impressionantes, mas criadas de modo deliberado e fiel. Podemos buscar uma arte que não deslumbre os nossos sentidos terrenos, mas que remeta às realidades celestes. Devido ao fato de que os atuais “conjuntos de dados com os quais essas ferramentas [de IA] são treinadas são tendenciosos em relação à sensualidade”, como afirma Caroline Mimbs Nyce na The Atlantic, as novas ferramentas provavelmente não nos ajudarão nisso. É melhor adotarmos imagens que pronunciam sua pobreza, imagens que, assim como João Batista, dizem: “É preciso que ele cresça e eu diminua” (João 3,30).
O exemplo de Michelangelo nos ensina a desconfiar da grandeza visual inventada. Mesmo que as máquinas agora possam esculpir tão bem quanto ele [veja o vídeo abaixo], a lição dos últimos anos de Michelangelo continua a mesma: as imagens cristãs, na medida em que merecem o nome de cristãs, devem ser deliberadamente contidas, pois seu propósito não é chamar a atenção ou atrair a glória, mas sim voltar nossos olhos para Cristo. O cânone tradicional dos ícones ortodoxos, mais acessível agora do que nunca, ainda faz isso notavelmente bem.
Diante de sua própria e desconcertante variedade de pregadores eloquentes e de santuários pagãos visualmente imersivos, a Igreja antiga fazia perguntas como aquelas com as quais eu comecei. A resposta do apóstolo Paulo era sincera, até mesmo direta: “Quando fui ao encontro de vocês, não me apresentei com o prestígio da oratória ou da sabedoria para anunciar-lhes o mistério de Deus”, escreveu ele à Igreja de Corinto. “Entre vocês, eu não quis saber outra coisa a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive no meio de vocês cheio de fraqueza” (1Cor 2,1-3).
Nisso e no testemunho de Michelangelo, portanto, eu vejo uma regra simples a fim de peneirar essa nova rodada de encantamentos visuais: nunca confie em uma imagem – ou em um salvador – sem feridas.