26 Fevereiro 2024
O efeito global das reformas institucionais ainda não está claro. A questão mais delicada é a aplicação do Vos estis e o papel da Comissão de Proteção dos Menores.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado em Commonweal, 18-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há cinco anos, em fevereiro, o Papa Francisco convocou o Encontro sobre a Proteção dos Menores na Igreja, no Vaticano. A primeira reunião desse tipo – anunciada em setembro de 2018 – foi um reconhecimento da dimensão global da crise dos abusos clericais, que após um ano de revelações e relatórios estava se tornando uma terrível ameaça ao pontificado de Francisco.
Houve o relatório da Comissão Real da Austrália em dezembro de 2017, a revelação de abusos no Chile (e a renúncia de um terço dos bispos daquele país) em janeiro de 2018, o escândalo McCarrick em meados daquele ano, o relatório do Grande Júri da Pensilvânia em agosto de 2018, e a tentativa de ligar pessoalmente Francisco aos vários escândalos – e talvez forçar sua renúncia – por parte do antigo núncio papal nos Estados Unidos, o arcebispo Carlo Maria Viganò. Claramente, algo novo tinha que ser tentado.
As pessoas convidadas para a cúpula incluíam os presidentes das conferências episcopais nacionais, os líderes das Igrejas Católicas orientais, os superiores dos religiosos e das religiosas, e os membros da Cúria Romana. A maioria dos participantes eram clérigos do sexo masculino, mas também havia 10 religiosas, três das quais falaram no encontro.
Moderado pelo ex-porta-voz papal Federico Lombardi, SJ, o encontro pretendia estabelecer um marco comum entre as lideranças da Igreja no que diz respeito à responsabilidade, prestação de contas e transparência. Tratou-se também de escutar as vítimas, algumas das quais foram a Roma e pressionaram por meio de protestos públicos fora da reunião, e de lembrar às lideranças da Igreja o poder da imprensa – cujos representantes também foram convidados a participar e a se dirigir aos participantes. como parte do programa.
Cinco anos depois de fevereiro de 2019, como estão as coisas? O fato de o site criado para o encontro e para hospedar os materiais e documentos produzidos não estar mais online [www.pbc2019.org] não é um bom sinal. Mas há muitos outros desdobramentos a se considerar também.
Em primeiro lugar, estão os repetidos lembretes da dimensão global da crise. Nos Estados Unidos, desde então surgiram relatórios estaduais sobre abusos clericais em Maryland e Illinois. Houve o relatório IICSA no Reino Unido em novembro de 2020, e o relatório Ciase na França em outubro de 2021 – que revelou uma estimativa de 333.000 vítimas ao longo de 70 anos. Em 2023, a Espanha criou uma comissão independente que relatou cerca de 444 mil vítimas durante um período semelhante. Portugal e Suíça publicaram relatórios nesse mesmo ano. Na Alemanha, Munique, Münster, Friburgo e Mainz publicaram relatórios granulares e forenses sobre os abusos em suas dioceses. A Itália seguiu seu próprio caminho, mais cauteloso e circunspecto, talvez receoso de desencadear algo como o relatório francês – um “auto de fé estatístico”, como lhe chamou o historiador da Igreja Alberto Melloni.
No geral, é interessante ver que todos esses relatórios parecem tomar o período de 1945 a 1950 como ponto de partida para a crise. Isso sugere alguma intenção autojustificativa, uma forma de distinguir entre uma Igreja Católica generalizadamente abusiva e as democracias constitucionais e as sociedades abertas na ordem liberal do pós-guerra – como se o abuso sexual não ocorresse em ambientes seculares e em instituições geridas pelo Estado. Mas também levanta questões profundas sobre o papel do Vaticano II na história global dos abusos na Igreja Católica.
Em 1962, durante a preparação do Concílio, a Pontifícia Universidade Salesiana de Roma propôs um documento sobre o abuso sexual de crianças, mas a comissão encarregada pela pauta do Vaticano II não o aceitou.
Relatórios também têm sido produzidos por países não europeus: Japão em 2020, e Nova Zelândia em 2022. E os países da América Latina foram examinados em parte mediante estudos acadêmicos e a imprensa; em 2023, por exemplo, o jornal espanhol El Pais publicou o diário de um jesuíta espanhol abusador na Bolívia.
Houve também revelações de abusos sexuais e má conduta em movimentos eclesiais leigos: o relatório interno dos Focolares em 2023; Comunhão e Libertação em 2023; a comunidade L’Arche e seu fundador, Jean Vanier; e o movimento de Schoenstatt, fundado pelo Pe. Kentenich. Ordens e comunidades religiosas tidas em alta consideração pelo seu papel na Igreja do Vaticano II e do pós-Vaticano II foram analisadas: os dominicanos na França em 2023; o jesuíta Marko Rupnik, contra o qual surgiram acusações em 2022 e que foi expulso da Companhia de Jesus em 2023; e a comunidade ecumênica de Taizé.
E, na sequência da história de McCarrick, houve revelações sobre outras figuras importantes da Igreja. Em 2022, o cardeal Jean-Pierre Ricard, ex-arcebispo de Bordeaux, ex-presidente da Conferência Episcopal Francesa e membro da Congregação para a Doutrina da Fé, admitiu “atos repreensíveis” com uma menina de 14 anos, fato ocorrido 35 anos atrás. O caso de maior destaque foi o do cardeal George Pell, o clérigo católico mais importante a ser condenado por abuso sexual infantil; ele passou 404 dias na solitária em sua Austrália natal, apenas para ter suas condenações anuladas em abril de 2020.
Outro fator na “globalização” da crise foi a consciência nova e crítica do papel da Igreja no colonialismo e no “genocídio cultural” de povos nativos e das Primeiras Nações. Isso inclui as revelações sobre as escolas residenciais do Canadá em 2021, que levaram à “peregrinação penitencial” do Papa Francisco ao país em julho de 2022.
Tendo tudo isso como pano de fundo, quais são algumas das respostas institucionais do Vaticano desde a cúpula de fevereiro de 2019? Em maio de 2019, Francisco publicou o motu proprio Vos estis lux mundi, destinado a criar procedimentos para investigar e julgar casos de abuso sexual na Igreja e para responsabilizar bispos, superiores religiosos e outras pessoas no caso de encobrimento. Vos estis foi atualizado em março de 2023 para incluir lideranças leigos de associações internacionais reconhecidas pela Santa Sé que podem ser investigados por perpetrarem abusos ou por não investigarem ou enfrentarem acusações de abuso ou de má conduta feitas no contexto de suas comunidades.
Em dezembro de 2019, Francisco aboliu a prática da Igreja de impor regras estritas de confidencialidade sobre os procedimentos legais do Vaticano em casos que envolvam abuso sexual ou má conduta do clero.
No fim de 2019, o dicastério vaticano que concede reconhecimento oficial a movimentos e organizações leigas católicas internacionais ordenou que os grupos desenvolvessem diretrizes e normas detalhadas de proteção das crianças para lidar com acusações de abuso de menores e de adultos vulneráveis.
Em fevereiro de 2020, o Vaticano anunciou a criação de uma força-tarefa para ajudar as conferências episcopais, os institutos religiosos e as sociedades de vida apostólica na preparação e na atualização de diretrizes sobre a proteção de menores.
Em julho de 2020, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou um manual para bispos sobre o tratamento dos casos, exigindo-lhes que reportassem as denúncias às autoridades civis.
Em maio de 2021, o papa promulgou o novo Livro VI do Código de Direito Canônico – o código penal – redefinindo os crimes relacionados ao abuso de menores, desde crimes contra os deveres dos clérigos até crimes contra a vida, a liberdade e a dignidade humana.
Em março de 2022, ele promulgou a constituição apostólica para a reforma da Cúria Romana, Praedicate Evangelium. Com isso, tirou a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores de seu limbo “satelital” fora do sistema dos dicastérios da Cúria e inseriu-a no Dicastério para a Doutrina da Fé. Mas isso resultou em uma espécie de limbo institucional. Não está claro se essa medida constitui realmente uma reforma positiva ou é apenas uma “fachada”.
O efeito global dessas reformas institucionais ainda não está claro. A questão mais delicada é a aplicação do Vos estis e o papel da Comissão de Proteção dos Menores. Em março passado, durante o segundo congresso latino-americano dedicado à gestão efetiva dos casos de abuso sexual, Francisco solicitou à comissão um relatório indicando as áreas em que são necessárias melhorias na aplicação do Vos estis. Mas como a comissão, com sua equipe limitada, poderia ser considerada capaz de fazer isso? Esse tipo de posição demasiado ambiciosa e confusa parece ter sido uma das razões para a renúncia da comissão por parte do mais respeitado especialista em salvaguarda da Igreja Católica, Pe. Hans Zollner, SJ (diretor do Instituto de Antropologia – Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade Humana e Cuidado da Pontifícia Universidade Gregoriana) em março de 2023. Em uma resposta incisiva ao presidente da comissão, cardeal Sean O’Malley, Zollner questionou o papel da comissão após a reforma da Cúria.
Há também a questão de como a comissão deverá funcionar agora que faz parte do Dicastério para a Doutrina da Fé. Nem Francisco nem o cardeal Fernández, seu novo prefeito, abordaram essa relação. Fernández escreveu em uma postagem nas redes sociais que, antes de aceitar a nomeação, explicou que não se sentia qualificado para lidar com a crise dos abusos. Em sua incomum carta de nomeação a Fernández em julho de 2023, Francisco escreveu: “Dado que, para as questões disciplinares –relacionadas em especial com os abusos de menores –, criou-se recentemente uma Secção específica com profissionais muito competentes, peço-lhe que, como prefeito, dedique seu empenho pessoal de modo mais direto para a finalidade principal do Dicastério, que é ‘guardar a fé’”. Isso soou quase como se Francisco estivesse tranquilizando o relutante Fernández – embora não fosse nada tranquilizador para o restante da Igreja.
Isso nos leva à evolução cultural e intelectual da sensibilidade da Igreja Católica em relação aos abusos. Uma onda de novos escritos e pesquisas sobre a crise – sobre seus aspectos teológicos, históricos e socioculturais – torna impossível reduzi-la a um fenômeno de alguma forma importado de “fora”, da cultura secular, que foi o argumento apresentado em um artigo de abril de 2019 com a assinatura de Bento XVI.
Há também uma maior consciência sobre a natureza dos abusos e uma determinação por parte de religiosos e religiosas, padres e muitos leigos, junto com cada vez mais organizações católicas a fim de identificar as raízes da crise e enfrentá-la diretamente. Existem formas novas e criativas de abordar seus efeitos, dando voz às vítimas e aos sobreviventes, e proporcionando cura e reconciliação, como a Loudfence (uma organização que “visa a trabalhar com as Igrejas para promover ativamente uma cultura que seja pró-salvaguarda e que diga a verdade”), e a produção de “The Passion”, pelo Notre Dame Folk Choir, uma composição que reflete sobre os efeitos espirituais do abuso.
Mesmo assim, permanece a persistente relutância ou incapacidade de muitos bispos e de outras lideranças da Igreja de lidarem com o contato com as vítimas, os abusadores, os clérigos e a mídia. Também não foram abordados os impactos da crise na transmissão da fé, na vida espiritual dos católicos e na credibilidade da Igreja – não apenas entre seus membros, mas também entre o público em geral não católico e as autoridades estatais. Em todo o discurso sobre a reforma da Igreja na preparação, celebração e relatório de síntese do Sínodo sobre a Sinodalidade, a crise dos abusos desempenha um papel apenas marginal.
Isso se estende um pouco também à academia. Como escreveu Zollner na última edição da revista Concilium, “mesmo no mundo acadêmico, ainda há poucos sinais reais de conscientização ou de disponibilidade para um compromisso de longo prazo. Não pode haver outra explicação para o fato de que nem mesmo nas faculdades de teologia de todo o mundo o envolvimento com as questões teológicas específicas levantadas pela crise dos abusos levou a um interesse de longo prazo que vá além das iniciativas individuais”.
E, mesmo com todas as novas pesquisas e escritos mencionados acima, pesquisas abrangentes sobre abuso são complicadas devido à polarização ideológica nos Estados Unidos e em outros lugares, assim como às divisões dentro da Igreja global (entre o Ocidente e a África, por exemplo, ou entre países ocidentais e a Europa oriental). As abordagens das ciências sociais (antropologia, etnografia, estudos culturais e estudos de gênero) e as disciplinas canônicas da teologia (Escritura, patrística, liturgia, sacramentos, eclesiologia, sistemática) ainda não encontraram um envolvimento mútuo construtivo. Há também uma tensão entre os estudos tão necessários e o ativismo muito necessário nessa questão. Nesse sentido, a investigação sobre a crise dos abusos na Igreja é um exemplo da encruzilhada em que se encontram os estudos acadêmicos católicos.
Mas há outra coisa a se considerar: o fator relações públicas. Investigar o abuso exige confrontar diretamente os fatos, especialmente o custo para as vítimas, o que não se alinha perfeitamente com os objetivos dos ex-alunos e grandes doadores e de outros patrocinadores financeiros, cujo instinto é celebrar e proteger a reputação da Igreja e das ordens que patrocinam o Ensino Superior católico.
Em um mercado educacional competitivo, e em um momento em que o modelo de Ensino Superior católico, senão até a ideia da própria universidade, está em xeque, isso não é bom para “a marca”. Poucos teólogos católicos renomados e ainda menos administradores de instituições católicas fizeram da pesquisa sobre a crise dos abusos uma prioridade institucional e académica. Investigar o abuso exige olhar para a teologia acadêmica como uma missão eclesial, o que não só desafia a forma como a academia funciona hoje, mas também exigiria uma conversão por parte da forma como as lideranças da Igreja veem a importância da teologia no enfrentamento da crise dos abusos.
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Cúpula vaticana sobre abusos, cinco anos depois. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU