23 Novembro 2023
"A comunidade é o lócus onde a fecundidade da vida é experienciada pelo indivíduo. Existe uma relação simbiótica de vida entre a comunidade e o indivíduo. Foi a partir desse lócus de consciência simbiótica que Bujo ofereceu formas pelas quais a teologia católica deveria levar a sério as intuições da África".
O comentário é de SimonMary Asese Aihiokhai, professor de Teologia Sistemática na Universidade de Portland, Oregon, Estados Unidos. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 21-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 1º de novembro, o Papa Francisco deu um novo mandato à Pontifícia Academia de Teologia para “desenvolver” a disciplina teológica para incorporar “uma cultura de diálogo e do encontro entre diversas tradições e diversos saberes, entre diversas confissões cristãs e diversas religiões”.
O mandato de Francisco é particularmente revelador, porque apresenta uma mudança sutil em relação ao mandato inicial dado à academia quando esta foi fundada pelo Papa Clemente XI em 1718, que era o de garantir que a teologia estivesse devidamente engajada com as realidades da época, especialmente do modo como a história estava se desenvolvendo no fim da cristandade. Ao afirmar a visão de seu antecessor, Francisco vê a necessidade de que a teologia contemporânea reflita as respostas às questões existenciais da era contemporânea.
Francisco entrevê a necessidade de uma mudança de paradigma, que situe a teologia dentro das “experiências humanas comuns” da vida em um mundo saturado de sentido. Essa abordagem ao fazer teologia se reflete nas contribuições do Pe. Bénézet Bujo, um teólogo da República Democrática do Congo, professor de teologia na Universidade de Friburgo, Suíça, e que faleceu no dia 9 de novembro, aos 83 anos.
As contribuições teológicas de Bujo revelam melhor como a teologia pode ser transdisciplinar e ser uma parceira dialógica com outras disciplinas e tradições. Com base em encontros epistêmicos deliberados com vozes teológicas e filosóficas ocidentais que incluem São Tomás de Aquino e o padre dominicano Edward Schillebeeckx, Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, Bujo ofereceu suas próprias contribuições ao discurso teológico-ético global a partir do lócus de seu mundo africano concreto. Ao fazer isso, Bujo ofereceu uma sistematização do imaginário teológico africano.
Para Bujo, a teologia africana é uma teologia que emana das realidades dos contextos sociais do povo africano e a eles fala. Ele defendia uma retomada deliberada de uma consciência africana. Assim, em seu livro “African Theology in Its Social Context” [Teologia africana em seu contexto social], de 1992, Bujo lançou luz sobre a semelhança que define o mundo negro e a necessidade de que a teologia africana encarne as experiências existenciais africanas.
O papel do teólogo no mundo africano é ser a voz profética que defende as imagens africanas da vida, ao mesmo tempo que lança luz sobre os vícios de morte na sociedade e na Igreja. A teologia africana está além da adoção simplista de imagens africanas. É uma teologia que está inerentemente sintonizada com uma consciência africana.
Tal consciência deve ser capaz de falar a verdade às realidades atuais que se desenrolam na África neocolonial, ao mesmo tempo que se fundamenta em uma rica compreensão do continuum da existência histórica da África.
Bujo estava ciente dos debates atuais que ocorrem no continente entre eticistas, teólogos e outros estudiosos sobre se a solução para os problemas da África reside na recuperação do passado (voltando-se para trás) ou no foco apenas no presente (ignorando o passado). Para Bujo, estes eram movimentos falsos que não seriam capazes de gerar soluções duradouras.
Sem o conhecimento do passado, o testemunho profético da teologia na África contemporânea será inalcançável. Sonhar com um futuro para a África que se baseie nas narrativas e nas práticas da vida que se apresentam no presente significa que a teologia africana deve encarnar uma virada profética centrada em um testemunho kairótico da verdade libertadora de Deus.
Em outras palavras, para Bujo, a teologia africana era uma teologia dos encontros, que deve falar primeiro aos africanos e, ao mesmo tempo, estar em diálogo com o restante do mundo. É uma ponte em que a vida deve ser experimentada abundantemente por todos.
Dois conceitos relacionais africanos definem radicalmente as contribuições de Bujo para as disciplinas da teologia africana e da ética social africana: palaver e ubuntu.
Como escrevi anteriormente no Journal of Catholic Social Thought, palaver “tem a ver com manter em seu lugar todas as tensões que existem na sociedade e também ligar a harmonia social à consciência cosmológica”. Ubuntu, como afirma uma enciclopédia, “incorpora todas as virtudes que mantêm a harmonia e o espírito de partilha entre os membros de uma sociedade. Implica uma apreciação das crenças tradicionais e uma consciência constante de que as ações de um indivíduo hoje são um reflexo do passado e terão consequências de longo alcance para o futuro”. Em outras palavras, serve como um lembrete profético para um africano viver sempre como testemunha dos valores partilhados pela comunidade.
Embora muitos que tentaram recuperar o mundo muito rico que se abre no domínio do ubuntu tendam a se focar em uma compreensão superficial do conceito, Bujo, em seu livro de 2001 intitulado “Foundations of an African Ethic: Beyond the Universal Claims of Western Morality” [Fundamentos para uma ética africana: para além das reivindicações universais da moral ocidental], lança luz sobre a ligação entre palaver e ubuntu como a possibilidade de concretizar o horizonte existencial de companheirismo que o ubuntu explicita.
Em outras palavras, sem palaver, não pode haver ubuntu. Assim, o próprio ubuntu é uma filosofia relacional da diferença que se torna o lócus de vida abundante apenas se a práxis do palaver for adotada por aqueles que incorporam as diferenças – sejam elas epistêmicas, religiosas, culturais, de gênero, linguísticas ou territoriais.
Palaver é a ritualização de diálogos de encontro que priorizam as expressões da diferença, ao mesmo tempo que sustentam a crença de que todos os seres participam da unicidade da vida – uma crença que nunca deve ser abandonada, mesmo quando a diferença é uma realidade saturada experimentada pelas partes envolvidas nos diálogos de encontro.
A sustentação da unicidade da vida e a virada ao encontro mesmo na diferença é o que torna importante a realização do companheirismo do ubuntu – porque, por meio da insistência no diálogo, todas as partes começam a ver o que compartilham em comum.
Em seu livro de 1998, “The Ethical Dimension of Community: The African Model and Dialogue between North and South” [A dimensão ética da comunidade: o modelo africano e o diálogo entre Norte e Sul], Bujo fez uma crítica às noções ocidentais de subjetividade, que tendem a se afastar do encontro. Sua abordagem teológica à teologia africana não estava apenas no âmbito da desconstrução. Ele ofereceu uma antropologia teológico-ética africana robusta e construtiva. Para ele, falar da pessoa humana era falar tanto da dimensão comunitária quanto da dimensão individual.
A comunidade é o lócus onde a fecundidade da vida é experienciada pelo indivíduo. O indivíduo é um ser palaver que encarna a diferença existencial. Existe uma relação simbiótica de vida entre a comunidade e o indivíduo. Foi a partir desse lócus de consciência simbiótica que Bujo ofereceu formas pelas quais a teologia católica deveria levar a sério as intuições da África, que tendem a defender visões de excedência, que afirmam uma abordagem “e/e” às questões teológicas, contra o dualismo dominante na consciência ocidental.
Finalmente, embora Bujo tenha se juntado à comunidade de ancestrais que estão ao redor de Cristo, protoancestral na aldeia celestial, seu papel como teólogo africano e eticista social serve como um farol de inspiração para os teólogos africanos emergentes à medida que tentam fazer teologia a partir de seus lócus de existência.
Imitar a abordagem de Bujo permite uma teologia africana que tenha um ser palaver africano, um rosto africano, uma voz africana, um coração africano, uma lógica africana, uma hospitalidade africana em relação à alteridade e uma práxis africana de vida vivida no âmbito da consciência do ubuntu.
Se essa abordagem for levada a sério não apenas pelos teólogos africanos, mas também pelos teólogos que se engajam com o mundo africano, então a visão de Francisco sobre o fazer teologia no século XXI de modo a refletir as realidades da vida social poderá ser plenamente adotada.