O oxímoro que articula o título da entrevista está na base das reflexões que o autor traz sobre levarmos a sério o pensamento e os modos de vida dos Outros, não por acaso nossos povos indígenas, cuja literatura e a antropologia são caminhos que levam a novos horizontes
Pensar a alteridade a sério implica tomar como tarefa o desafio de superarmos os becos sem saída da vida contemporânea a partir de outros modos de vida que não o hegemônico ocidental. De algum modo, a ideia expressa na frase que abre esta entrevista de Alexandre Nodari, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, responde à provocação de Mark Fisher quando ponderou que era mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo.
“Um lugar comum que sempre me fascinou em obras de ficção científica consiste no relato entre a ‘nossa’ civilização com outra, fisicamente semelhante a nós, mas moral e/ou tecnologicamente mais aperfeiçoada que a nossa, outra civilização que, acaba-se por descobrir, somos ‘nós’ mesmos, a mesma espécie que seguiu um outro caminho, em todo distinto ao nosso”, recorda Nodari. “Esses ‘extraterrestres’ são, no plano ficcional, o que os indígenas são no plano real: nós-outros que escolheram um caminho completamente diferente do que nós-mesmos fizemos, um caminho, como a catástrofe ambiental em curso comprova, moral e tecnologicamente mais aperfeiçoado”, complementa.
O pesquisador lembra na entrevista uma frase dos Tukano que serviria de réquiem para os tempos que vivemos: “Para os Tukano, os últimos a sair da cobra canoa, a canoa da transformação, são ‘o Branco’ e o ‘Padre com um livro na mão’, a quem cabe viver com o Branco”. O que está posto, porém, não é o fim da linha, mas a necessidade de reinventarmos não somente nossa imaginação conceitual, mas também política e cosmológica. “Creio que o Antropoceno nos desafia a experimentar: experimentar novas formas de viver, de pensar, estar ciente da falibilidade desses experimentos, variá-los, abrir-se à variação, já que a experiência moderna, que se quer universal, está levando o nosso mundo à destruição, arrastando consigo tantos outros mundos e suas experiências, que tem muito a nos ensinar”, propõe o entrevistado.
Alexandre Nodari (Foto: Gerardo Lazzari | Divulgação)
Alexandre Nodari é autor do livro "A literatura como antropologia especulativa (conjunto de variações)" (Cultura e Barbárie, 2024). Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina e dos Programas de Pós-Graduação em Literatura da mesma instituição e em Letras da Universidade Federal do Paraná. Fundou e coordena o "ao contrário - laboratório experimental de estudos da literatura e seus avessos". Foi professor do Departamento de Literatura e Linguística da UFPR de 2015 a 2022. Fundador do SPECIES - núcleo de antropologia especulativa. Co-ministrou, com Eduardo Viveiros de Castro, o seminário de pós-graduação Do matriarcado primitivo à sociedade contra o Estado: cartografia da hipótese antropofágica no Museu Nacional/UFRJ (2012). Em 2011, co-ministrou algumas sessões do seminário de pós-graduação (na UBA) Sacro Poder, a cargo de Fabián Ludueña e Emanuele Coccia.
IHU – Seu livro A literatura como antropologia especulativa (2024) é de enorme fôlego conceitual e erudição, articulando literatura, filosofia e antropologia. Pode explicar do que se trata o livro e como ele surgiu?
Alexandre Nodari – O livro reúne um conjunto de ensaios, ou de textos em formatos variados, escritos ao longo mais ou menos de uma década, que têm como princípio norteador o de levar a experiência literária (a experiência de escrever ou contar e ler ou ouvir narrativas, poemas, ficções) a sério, pensando-a ontologicamente, isto é, pensando o que é essa experiência, o que acontece com a gente de fato quando lemos, escrevemos, contamos, ouvimos, não do ponto de vista meramente psicológico, como algo interior ao sujeito, mas que efetivamente se dá: para onde vamos na experiência literária, qual a consistência desses seres ou sujeitos escritos (os personagens, os narradores, etc.), em que mundo estão, como é esse mundo, como ele se relaciona com o “nosso” mundo? Esse impulso, o de levar a experiência literária a sério, veio da Antropologia, mais especificamente, de Eduardo Viveiros de Castro, e sua teoria do perspectivismo ameríndio como uma maneira de levar a sério, e traduzir para a linguagem teórica, o pensamento presente nas cosmologias e práticas xamânicas indígenas, sem reduzi-las a visões de mundo, crenças, representações.
Além disso, essa virada ontológica na Antropologia coincidiu com um movimento de reabilitação de um pensamento contrakantiano na filosofia (cunhado como “realismo especulativo”) que se propunha a pensar as coisas em si e não só os limites do nosso conhecimento. Para ser sincero, o “realismo especulativo” me interessava menos pelas formulações dos filósofos dessa “corrente” e mais pelo impulso que me dava: como pensar os seres ficcionais, os sujeitos das obras literárias, não como mera percepção/interior/projeção de um autor, leitor, sociedade... mas dotados de consistência ontológica, ainda que diferente da “nossa”?
Claro que essa pergunta não é nada nova, e meu livro é explicitamente debitário, por exemplo, de Alexius Meinong e Étienne Souriau, que também colocaram essa questão. Contudo, boa parte das tentativas de responder a essa questão, como a teoria dos mundos possíveis na teoria literária, acaba por recair num manual de catalogação lógica dos mundos ou seres de ficção, que é a forma invertida da mesma prisão: a objetificação. Não era, e continua não sendo, a análise lógica que me interessa, mas a experiência ontológica. Além disso, e daí a importância da intersecção com a antropologia, eu não queria nem deveria eliminar, nesse exercício especulativo, a alteridade radical dos seres ficcionais, ou seja, postular um acesso total aos mundos de ficção. A dificuldade, portanto, consistia em como não recair no solipsismo diante da impossibilidade de ser o outro, de conhecer totalmente o outro? A primeira metade do meu livro, e também o apêndice, é dedicada a expor, desenvolver, aprofundar, e investigar essas questões.
Já a segunda metade, ou melhor, boa parte dela, visa comparar os nossos conceitos literários, e mesmo nossa experiência literária, com aquelas de povos indígenas. O objetivo dessa comparação não é, porém, o de produzir uma mera análise contrastiva ou aproximativa, mas de tentar, de um lado, entender o papel do Estado (da instituição de um modo geral) na redução ontológica da experiência literária a uma experiência meramente interior, psíquica, do sujeito, e, de outro, repensar, a partir de conceitos e práticas outras, nossas próprias categorias, por demais informadas pelo aprisionamento institucional da “arte”.
De novo, o gesto em si da comparação não é novo, mas o que talvez o diferencie é o vetor político e temporal. Na maior parte das vezes, comparações do gênero tem um fundo evolucionista, que situa o oral no arcaico, que distingue magia e tecnologia, feitiçaria e direito, etc. O que eu tentei fazer é diferente, para não dizer o contrário.
Em primeiro lugar, seguindo Pierre Clastres, poderíamos dizer que, assim como não há sociedade antes do Estado, mas contra o Estado, não há sociedade antes do Museu, mas contra o Museu, ou seja, não há, lógica e ontologicamente falando, um hiato temporal entre “nós” e “eles”. Em segundo, seguindo a máxima de Viveiros de Castro de que o chocalho do xamã é um acelerador de partículas, tentei ver nas práticas verbais de povos indígenas uma tecnologia avançada, tomando-as a sério, como, por exemplo, capazes de produzir efeitos equivalentes a buracos de minhoca. Por isso, ainda que possa parecer curioso para os leitores, nos ensaios do livro em que aparecem as poéticas ameríndias, há diversas referências a obras ou expressões de ficção científica.
Um lugar comum que sempre me fascinou em obras de ficção científica consiste no relato entre a “nossa” civilização com outra, fisicamente semelhante a nós, mas moral e/ou tecnologicamente mais aperfeiçoada que a nossa, outra civilização que, acaba-se por descobrir, somos “nós” mesmos, a mesma espécie que seguiu um outro caminho, em todo distinto ao nosso. Esses “extraterrestres” são, no plano ficcional, o que os indígenas são no plano real: nós-outros que escolheram um caminho completamente diferente do que nós-mesmos fizemos, um caminho, como a catástrofe ambiental em curso comprova, moral e tecnologicamente mais aperfeiçoado. E se a comparação parecer exótica, cabe lembrar que os próprios indígenas a formulam a seu modo (ou melhor, a ficção científica é uma reformulação ocidental do mito indígena da má escolha): desse modo, para os Tukano, os últimos a sair da cobra canoa, a canoa da transformação, são “o Branco” e o “Padre com um livro na mão”, a quem cabe viver com o Branco. A esse, ao branco, o Bisneto do Mundo, grande transformador ou demiurgo, deu uma espingarda e disse: “Você é o último. Dei aos primeiros todos os bens que eu tinha. Como você é o último, deve ser uma pessoa sem medo. Você deverá fazer a guerra para tirar as riquezas dos outros. Com isso, encontrará dinheiro”.
IHU – Há um conceito importante que você retoma em muitos momentos ao longo do livro, obliquação. Do que se trata? Como ele abre novos flancos para pensarmos não só a relação entre literatura e antropologia, mas nossas relações com as alteridades?
Alexandre Nodari – O conceito foi se construindo, meio que por conta própria, através de convergências aparentemente inesperadas. Em primeiro lugar, tem uma expressão que aparece em Água viva [de Clarice Lispector], “vida oblíqua”, para designar uma outra vida, uma outra relação com a vida, diferente daquela que se dá cotidianamente por meio de cortes retos, grossos. Isso me pareceu ter relação com um estranho recurso formal de que Clarice Lispector lança mão em diferentes textos: o encavalgamento pronominal, em que pronomes retos, oblíquos e/ou reflexivos vão se sobrepondo quase gramaticalmente. “A vida se me é”, por exemplo. O efeito disso me parece evidente: não são só os pronomes que são encavalgados, mas a posição de sujeito e objeto (quem é na frase citada?), o que é reto e o que é oblíquo, a coimplicação (dobra) das posições enunciativas.
Ora, Lévi-Strauss, naquele seu texto que é o meu preferido, a “Introdução à obra de Marcel Mauss”, descreve a posição do sujeito das ciências humanas também como uma espécie de encavalgamento da posição reta (de sujeito) e oblíqua (de objeto), já que o cientista social não só investiga objetos que são eles mesmos sujeitos (sociedades, outros seres humanos), como também uma das coisas que ele precisa levar em consideração é como aqueles que ele estuda (os sujeitos que são o seu objeto) o veem (situação em que ele ocupa o lugar de objeto – objeto de seu objeto). Ligando as coisas, e também o modo como Ortega y Gasset, um dos três grandes pensadores do perspectivismo moderno junto a Leibniz e Nietzsche, concebe o encontro entre dois sujeitos e seus mundos (para ele, além de sujeito, eu sou objeto do mundo de outro sujeito e vice-versa), comecei a me dar conta que a experiência literária também operava de maneira análoga (enquanto sujeitos leitores, precisamos largar mão dessa posição – e, portanto, sermos virtualmente objetos –, ainda que não totalmente, para que um texto literário faça sentido), e, mais do que isso, que essa obliquação, a passagem de uma posição reta a outra que não é a de um mero sujeito, mas de um sujeito que é também objeto e vice-versa (o pronome oblíquo “mim” implica sempre o pronome reto “eu”, ainda que implícito), é uma experiência crucial na constituição de todo sujeito, anterior talvez até à subjetividade.
Desse modo, o conceito, que liga sem igualar literatura e antropologia (as experiências são formalmente as mesmas, mas os “objetos” de uma e outra têm natureza distinta), me parece frutífero para pensar como, não só de um ponto de vista da psique, mas da ontologia mesmo, nos relacionamos com os outros também, o que é mais importante, como essa alteridade e essa variação posicional nos constitui, é a nossa própria constituição, de modo que a estabilidade que atribuímos ao indivíduo é uma falácia: o sujeito, o que somos ou julgamos ser, não passa da resultante dessas variações entre posições, que são também posições em diferentes mundos.
IHU – Como uma leitura em variação, que é um exercício que aparece no seu livro, pode nos oferecer novas formas de compreender e atravessar as encruzilhadas da vida no Antropoceno?
Alexandre Nodari – A caracterização do livro como um conjunto de variações (é o subtítulo), e dos seus textos como “ensaios”, ou mesmo a insistência na ideia de experiência não são caracterizações meramente retóricas ou formais. Os textos são ensaios, experimentos, tentativas, que, em seu conjunto, se revelam como tais. A cisão entre ciências naturais e ciências humanas às vezes nos faz esquecer ou omitir as falhas e limites de nossos experimentos de leitura, e ignorar que podemos e devemos, constantemente, refazê-los diante de novas situações, apontando o seu contexto de validade – e de falibilidade –, o que, creio, tentar fazer. A variação do experimento, que mencionei acima, também ocorre na forma, na ordenação e numeração das seções dos diferentes textos e dos próprios textos; há parágrafos diagramados de forma diferente do restante do texto que substituem as notas de rodapé; há um texto que têm a forma de uma série de citações comentadas; há títulos duplos ou triplos, como “A tradução da/dá origem” (a tradução é dá origem, a tradução dá, do verbo dar, origem, além da referência ao dadaísmo); há, além da epígrafe que abre o livro, uma pós-grafe, uma epígrafe no fim do livro, que se abre e se fecha, desse modo, com as palavras de outros: as da catadora Estamira, na epígrafe, e as de Valéry, na pós-grafe.
Evidentemente, não sou ingênuo de achar que isso em si contribui para apresentar alternativas diante do Antropoceno: não tenho ilusão alguma quanto ao papel político diminuto, quase nulo, da reflexão intelectual em geral e da minha em particular. Por outro lado, creio que o Antropoceno nos desafia a experimentar: experimentar novas formas de viver, de pensar, estar ciente da falibilidade desses experimentos, variá-los, abrir-se à variação, já que a experiência moderna, que se quer universal, está levando o nosso mundo à destruição, arrastando consigo tantos outros mundos e suas experiências, que tem muito a nos ensinar.
Nesse sentido, fazer a nossa experiência literária variar em seu contato com a de povos indígenas, por exemplo, ainda que seja um exercício singelo, é uma tentativa de achar uma linha de fuga a um modo (o “nosso”) de viver, pensar e praticar as artes verbais que relegou toda a potência imaginadora, criadora e transformadora de mundos e alternativas a fabulações individuais ou mesmo sinapses neuronais.
IHU – O primeiro capítulo intitula-se “Lugar da escuta”. É interessante porque reorganiza o primado do lugar de fala, locus por definição da identidade, em favor de uma perspectiva mais atenta à alteridade. Faz sentido essa leitura? Por que começar um livro precisamente pela ideia de lugar de escuta?
Alexandre Nodari – Na verdade, o meu ponto de partida para a ideia de “lugar da escuta” não foi a noção de lugar de fala, mas algo bem concreto, que encontrei: o uso da expressão por Petxi, um especialista ritual (pajé, xamã) khĩsêtjê, para designar a “casa dos homens”, onde os jovens não casados moravam e onde aprendiam, inclusive a falar, por meio do exercício da escuta (dos mais velhos, dos avós, dos pajés). A história pregressa de Petxi tornava tudo mais interessante, porque ele mesmo não nascera khĩsêtjê: era de outro povo, e foi levado ainda jovem, com sua mãe, para viver entre os khĩsêtjê, e aprendeu a nova língua escutando, escutando no lugar da escuta, a ponto de tornar-se justamente o especialista ritual do grupo, embora insistisse que ainda tinha vergonha de falar em khĩsêtjê, ou seja, que ainda precisava ouvir para aprender.
Isso tudo está no trabalho sobre a música khĩsêtjê de Anthony Seeger, que ressalta a estranheza da expressão mesmo no original, estranheza que ganha novas camadas até chegar ao português, por ser duplamente traduzida: Petxi a proferiu em khĩsêtjê, Seeger a traduziu ao inglês como listening place, e eu a li na tradução do inglês ao português de Guilherme Werlang – e essas camadas de mediação são cruciais, pois ouvimos sempre em mais de uma língua, ouvimos sempre equivocadamente. E a primeira vez que trabalhei o livro de Seeger em sala de aula foi numa disciplina sobre poéticas indígenas em que outra leitura era justamente “Learning to listen” (Aprendendo a ouvir/escutar), de Dennis Tedlock (uma exortação à necessidade de ouvirmos, no sentido literal mas também em um mais amplo, as narrativas indígenas para poder traduzi-las à altura), de modo que a associação foi quase objetiva: precisamos fazer dos estudos literários, da teoria literária, da história literária, etc., um lugar da escuta dos textos indígenas, precisamos ouvi-los, aprender a ouvi-los, mas precisamos, acima de tudo, aprender com os povos indígenas o exercício da escuta em si, virtude notada já pelos primeiros colonizadores mais ou menos sensíveis, como Thévet, que se impressionou com a capacidade, atenção, e precisão da escuta nativa.
É evidente que a noção evoca não só o lugar de fala (um dos muitos nomes ou variações do “discurso situado”), como também o lugar de escuta, que tem sido proposto em certa dissonância com “lugar de fala”. Mas, tanto conceitualmente, quanto pragmaticamente, não busco abrir uma divergência. Conceitualmente, concordo que todo discurso é situado (o que não é o mesmo que determinado pelas situações discursivas), e creio que ninguém que defenda a noção de lugar de fala vá negar a importância da escuta.
E, pragmaticamente, o lugar da escuta não disputa o mesmo, digamos, lugar do “lugar de fala”: ele não é pensado ou proposto para minorias, subalternidades, mas justamente para (deslocar) a discursividade hegemônica que ainda tem lugar nos estudos literários, e que se pretende não marcada, universal, e que, creio, só possa se transformar se deixar de ser um discurso sobre o outro a partir desse lugar falsamente universal e passar a ser um lugar da escuta, lugar da escuta inclusive sobre o que outros, de outros lugares, dizem sobre “nós”.
IHU – Retomando e aprofundando aquele que é o principal conceito do livro: o que é a literatura como antropologia especulativa?
Alexandre Nodari – A expressão, “antropologia especulativa”, vem de Juan José Saer, mais especificamente de um texto, “O conceito de ficção”, em que ele desloca a ficção do binômio verdade/falsidade e propõe pensá-la como um tratamento mais complexo da verdade.
IHU – Qual é, nos termos com os quais você trabalha, a função do mito? Em que sentido literatura e antropologia se encontram e se afastam?
Alexandre Nodari – O próprio termo “mito” é muito complicado, não só porque adquiriu uma carga pejorativa na modernidade como oposto à verdade, ou à ciência (e daí hoje pesquisadores indígenas reivindicarem o termo “história viva” em seu lugar), mas também porque ele pode referir-se a discursividades muito diferentes entre si, que possuem relações (ou funções) com as instituições e com os aparatos de poder muitas vezes opostas (daí a distinção que Viveiros de Castro propõe entre “mito menor” e “mito maior”). No caso dos povos indígenas, trata-se de um termo exógeno, já que as narrativas ou cosmologias a que nos referimos por meio dele são por eles chamados nativamente de histórias dos antigos, de quando os animais falavam, do tempo das transformações, etc. E, além disso, há toda uma discussão, seja na literatura (Borges, por exemplo), seja na antropologia (Lévi-Strauss), sobre a relação entre mito e literatura.
No meu livro, ciente disso tudo, eu não ofereço nem parto de um conceito de mito (e, portanto, não consigo estabelecer uma função) mas trabalho com essas variações, de acordo com o contexto daquilo que estou discutindo. Então, por exemplo, em um momento, me interessa pensar a espaço-temporalidade que se estabelece quando nos relacionamos com narrativas que podemos chamar de mitos em um sentido bem amplo (englobando desde cosmologias indígenas até a Bíblia), aproximando essa experiência com a literária; em outro, me interessa investigar mais especificamente como cantos xamânicos indígenas acessam o tempo originário evocado em suas narrativas; em outros, parto da distinção de Lévi-Strauss entre mito e romance, para desconstruí-la, ainda que não para eliminá-la; por fim, tento ver como essa relação entre literatura e mito se dá nas Metamorfoses de Ovídio, diferenciando os dois tipos de mito, ou os dois devires do mito de que fala Viveiros de Castro.
IHU – O que é a noção de equivocidade e como ela nos oferece alternativas para pensarmos nosso ser/estar no mundo contemporâneo?
Alexandre Nodari – A noção de equivocidade de que lanço mão vem de Eduardo Viveiros de Castro. Ele a utiliza para dar conta da situação de encontro de mundos comum a muitíssimas cosmologias indígenas: “cauim” designa, para os homens, uma bebida fermentada de mandioca, mas, para as onças, designa o sangue que elas bebem. Trata-se não de um erro, mas de um equívoco no sentido técnico do termo: uma mesma palavra bifurca-se em duas referências, de acordo, justamente, com o mundo de referência (o humano ou o felino/ferino). Trata-se de uma noção de alto rendimento nas etnografias ou discussões geradas na teoria do perspectivismo ameríndio, mas que também tem sido mobilizada para pensar a literatura por Roberto Zular.
No meu livro, a noção aparece de muitas maneiras, mas especialmente para identificar a equivocidade da experiência literária: quando lemos um personagem ou narrador dizer “eu”, esse “eu” refere-se tanto ao sujeito fictício quanto ao sujeito “real” que o lê, e essa equivocidade do “eu” sintomatiza a equivocidade de mundos em jogo na literatura, bem como aquela entre o dentro e o fora do texto, poderíamos dizer. Agora, o meu ponto é que isso não constitui uma experiência psicológica, interior ao sujeito, mas ontológica, i.e., existencial. Por isso, ela nos permite experimentar a situação vivenciada por todos os povos (humanos e outros-que-humanos) colonizados, obrigados a viver equivocamente em dois mundos ao mesmo tempo: o seu “próprio” e o do “colonizador”.
Tem uma imagem que gosto muito de usar para descrever essa situação de equivocidade. É uma imagem que pensei a partir de cosmogramas marubo, que eu conheci através de Oniska, de Pedro Cesarino. Ele conta ali que o pajé “Memãpa reproduziu os estratos celestes em círculos desenhados um a um em folhas separadas, que deveriam ser postas umas sobre as outras”. Fiquei imaginando: e se as folhas fossem de papel vegetal? Se nos deixássemos guiar por um tal mapa de mundos sobrepostos, correríamos o risco de passar constantemente de um mundo a outro: esse é o perigo de uma situação de equivocidade, o de, de repente, passarmos a outro mundo de referência, e sermos capturados por ele. Mas esse perigo é também um aviso: ali onde vemos um mundo só, pode (deve) haver muitos.
IHU – Como duas obras, que parecem distintas entre si à primeira vista, se aproximam de maneira radical: estou falando de Grande sertão: veredas e A queda do céu.
Alexandre Nodari – Uma das coisas que mais me impressionaram ao ler A queda do céu foi a semelhança (para não dizer, parentesco) formal com o Grande sertão, no sentido de que em ambos os casos, nós temos uma situação dialógica ou de entrevista (Davi Kopenawa com Bruce Albert; Riobaldo com seu interlocutor da cidade), mas só temos acesso ao que um deles fala (em A queda do céu, claro, há também os paratextos de Bruce Albert, mas semelhança não é identidade).
O parentesco formal não é fortuito, já que, como foi seguidamente assinalado pela crítica literária, a situação enunciativa do Grande sertão é etnográfica, ainda que uma etnografia amadora e ficcional. Todavia, a área dos estudos literários, espantada positivamente com o conteúdo do discurso de Davi (e com razão), não parece ter dado a devida atenção a isso, ainda que o próprio Bruce Albert fale do seu recurso à ficção (e a debates teóricos da nossa área) na montagem do livro. Na abordagem que faço da semelhança em dois momentos do livro, paro mais ou menos por aí, mas decidi, em um texto recente, que deve compor uma espécie de segundo volume de A literatura como antropologia especulativa, aprofundar a comparação, e colocar a questão crucial do motivo dessa forma ser quase necessária para dar conta do conteúdo de um e outro livro, bem como refletir sobre o (des)encontro marcado entre literatura e antropologia.
IHU – Como construir uma poética perspectivista?
Alexandre Nodari – A gente pode entender “poética” em dois sentidos. Quando dizemos, por exemplo, que a poética de um poeta é assim e assado, estamos nos referindo à concepção, prática, recursos formais, etc., por ele mobilizados. Agora, poética também pode designar o estudo ou a teoria da poesia (ou da literatura em geral).
Na primeira acepção, eu diria que toda literatura é perspectivista, que a poética de qualquer autor é perspectivista, quer ele queira, quer não. Não sou o primeiro a dizer isso (a relação entre literatura e perspectivismo já foi estabelecida por Ana Carolina Cernicchiaro), e, de certa forma, a ideia vem de Lévi-Strauss, quando ele afirma que o pensamento selvagem (no sentido positivo, de não domesticado pela parafernália moderna) sobrevive por outros meios no que chamamos de arte.
Portanto, o desafio é identificar isso, e, mais, refletir sobre essa relação, e sobre como ela coloca problemas para a nossa compreensão e prática de leitura da literatura, ou seja, o desafio é construir uma poética perspectivista no segundo sentido do termo. Em um dos capítulos, faço um exercício de leitura de algumas artes verbais indígenas, mostrando a inadequação dos conceitos de que fazemos uso nos estudos literários para entendê-las, e postulando outras, que talvez possam ser mobilizadas também para compreender de outro modo, nossas próprias artes verbais modernas.