21 Novembro 2023
Dezenas de migrantes e organizações denunciam contínuas extorsões e agressões sexuais por parte da polícia do país centro-americano.
A reportagem é de Andrés Arnal Martínez e Martina Madaula Munt, publicada por El País e reproduzida por Correspondencia de Prensa, 19-11-2023. A tradução é do Cepat.
Mayra está sentada no Parque Bicentenário, na cidade fronteiriça de Tapachula, no sul do México, local que nos últimos anos se tornou um ponto de encontro de migrantes. Entre 40.000 e 50.000 pessoas, segundo organizações de direitos humanos que trabalham no terreno, esperam nesta cidade os eternos meses em que as autoridades mexicanas processam o seu pedido de asilo, documento com o qual poderão atravessar o país rumo ao Norte, pelo menos com alguma garantia legal e de segurança. À noite, o parque fica repleto de esteiras e tendas de muitas pessoas que fugiram de seus países. Uma delas é Mayra, uma hondurenha cujo nome não é este, como o de todos os migrantes citados neste artigo, para proteger sua identidade.
“Venha, venha, sente-se conosco”, diz Mayra a outra hondurenha. “É de confiança. Chama-se Evelyn”, diz ela e logo depois, uma terceira migrante, Daisy, se aproxima. “Com ela aconteceu a mesma coisa”, explica ao apresentá-las. “O que nunca pensamos que aconteceria conosco, aconteceu conosco. Eles me estupraram... me tiraram do ônibus e me estupraram na Guatemala. Junto com outras cinco mulheres, e uma menor, de 10 anos”, conta Mayra. Depois de um silêncio, Daisy ousa perguntar quem acha que fez isso: “A própria polícia. Eles pararam o ônibus e tiraram aqueles que não puderam pagar a propina [extorsão]. Eles nos estupraram. Eram três agentes com capuzes pretos”, conta.
Mayra passou a vida inteira lutando pelos direitos das mulheres. Em San Pedro Sula, sua terra natal, seu ativismo a aproximou das histórias mais duras perpetradas pela violência de gangues em Honduras. Sua luta a encorajou a continuar, até que um dia ela foi alvo e, ao escapar, tornou-se sobrevivente de um estupro em massa cometido pela Polícia Nacional Civil (PNC) da Guatemala. O mesmo ativismo pelo qual teve que fugir a leva agora a denunciar o seu próprio caso e a acompanhar outras mulheres como Evelyn e Daisy.
Todos elas, além de fugirem de ameaças e extorsões de gangues na América Central, da violência sexista e da homofobia, também tiveram que usar seus corpos como moeda de troca para atravessar a Guatemala.
Segundo mais de 50 migrantes entrevistados para esta reportagem nas fronteiras da Guatemala, este país tem sido o mais difícil para eles na rota migratória devido à extorsão e à violência por parte das suas autoridades, testemunhos corroborados por organizações que trabalham no terreno. “Nos últimos tempos, quase diariamente atendemos mulheres e pessoas da comunidade LGTBIQ+ que foram agredidas sexualmente na Guatemala por autoridades, gangues ou pelo crime organizado”, declara Caro Cocunubo, técnica de assessoria jurídica para questões de gênero do Centro de Direitos Humanos Fray Matias.
“Quando um grupo de migrantes sem documentos entra no país, são detidos e extorquidos por policiais em troca de deixá-los continuar o seu caminho, violando vários direitos humanos fundamentais”, disse ao El País Pavel Catavi, pesquisador em direitos humanos da organização Cristosal. As formas de extorsão são diversas, desde insultos e ameaças até toques inapropriados para confiscar seu dinheiro.
“Eu teria preferido passar duas vezes pela selva de Darién antes de passar pela Guatemala”, diz uma jovem venezuelana que acaba de chegar a Tapachula com o marido e a filha de 2 anos. Apesar das dificuldades que a travessia da selva que divide a Colômbia e o Panamá representa para os migrantes, muitos concordam que, nos últimos anos, a Guatemala tornou-se um inferno, especialmente para as mulheres e pessoas do grupo LGTBIQ+. “É um dos piores países de trânsito e não só por causa da extorsão. As violações de direitos estão aumentando e sobretudo afetam as pessoas com maior risco de estarem em situações de vulnerabilidade”, afirma uma pessoa do CDH Fray Matias.
Mayra deixou seu país natal no dia 12 de fevereiro de 2023, às 10h. “Não foi por decisão própria, saí forçada, ameaçada”, garante. Ela começou sua carreira no ativismo e na defesa dos direitos das mulheres e crianças quando seu primo foi assassinado. Ele ainda frequentava o ensino médio. Não fazia parte de nenhuma das gangues predominantes de Honduras, mas era homossexual. As gangues o torturaram antes de matá-lo.
Ela já estava na mira por seu trabalho como defensora. Mas um caso em particular a levou a sair de casa durante a noite. “O que me trouxe ao México? Uma menina, uma menina de apenas 14 anos”, diz. Mayra colaborou com a ONU Mulheres e o Centro de Estudos da Mulher de Honduras, ministrando oficinas em escolas. Em uma delas, uma menina a abordou e confessou que não comia há dois dias e dormia na rua com medo de voltar para casa porque o padrasto abusava dela e seu namorado, integrante de uma gangue, a obrigava a se prostituir.
Mayra queria ajudar a adolescente a prestar queixa e foi aí que percebeu que estava mexendo com as pessoas erradas. “O companheiro da menina era um dos que supostamente administrava meu setor. A partir daí, comecei a receber ameaças”, conta. Poucos dias depois, encontrou os vidros de seu carro quebrados e dentro um bilhete dando-lhe 24 horas para desaparecer.
Foi aí que sua fuga começou. Na rodoviária de San Pedro Sula comprou uma passagem para Tecún Umán, na fronteira entre a Guatemala e o México, sem saber nada daquele lugar e sem intuir a odisseia que a esperava no caminho. Mayra saiu de Honduras pelo município fronteiriço de Corinto.
Desde 1991, Honduras, El Salvador e Guatemala são signatários do Convênio Centro-Americano sobre Livre Mobilidade (CA-4), pelo qual os cidadãos desses países podem circular livremente em seus territórios. Mas, apesar do convênio, as autoridades gozam de impunidade quando se trata de extorquir migrantes, independentemente da nacionalidade. Por isso, ao cair da noite, as rodoviárias das principais cidades fronteiriças do sul do país ficam lotadas de migrantes que acabam de entrar e preferem tentar passar despercebidos.
Mayra começou sua viagem em um ônibus noturno. Pouco depois de sair, parou e vários agentes da PNC embarcaram. Depois de confiscar os celulares dos seus ocupantes, a polícia retirou todas as pessoas que não tinham documentação. É aí que começa a extorsão. Sob ameaças de deportação, os agentes exigem uma taxa entre 100 e 1.000 quetzales (entre US$ 13 e US$ 130). Alguns quilômetros depois, no próximo posto de controle, a cena se repete.
Segundo informações da Cristosal, existem oito postos de controle fixos entre a fronteira de Aguas Calientes, que divide Honduras e Guatemala, e a de Tecún Umán, já na linha divisória daquele país com o México. A informação pública solicitada pelo El País ao Ministério do Interior e à PNC revela que a polícia instalou 14 postos de controle no percurso que Mayra percorreu no dia da sua viagem. Esta organização afirma que, por razões de segurança, não pode revelar a sua localização.
Além desses postos de controle fixos, “unidades policiais individuais de dois ou três agentes acompanham os ônibus”, diz Catavi, da Cristosal. Esta informação foi confirmada com entrevistas de migrantes nas quais estes afirmam que, “durante a viagem, os carros da polícia pararam na frente do ônibus e obrigaram-no a parar no meio da estrada”. Esses depoimentos corroboram que funcionários uniformizados da PNC entram no veículo e cobram uma taxa das pessoas que nele estão. “Se as pessoas já entregaram todo o seu dinheiro às autoridades e mais tarde se deparam com outro posto de controle, a polícia tira-lhes o tênis, as roupas, qualquer objeto de valor que possam ter”, afirma o pesquisador da Cristosal.
Uma das mulheres que viajava no ônibus em que Mayra viajava estava com seus três filhos: uma adolescente grávida de 14 anos, uma menina de 10 anos e um menino mais novo com autismo. Mayra ofereceu-se à mãe para cuidar do menor por um tempo, que estava assustado e não parava de chorar. “Nos outros postos de controle nos extorquiram pedindo dinheiro, mas o terceiro posto de controle foi o pior”, diz a migrante hondurenha. De acordo com o convênio CA-4, menores de idade só podem cruzar com a autorização assinada pela mãe e pelo pai biológicos. Mas a maioria das mães solteiras hondurenhas não tem qualquer relação com o pai dos seus filhos ou inclusive foge dele.
Mayra segurava o filho da outra migrante nos braços, enquanto colocou uma música no celular para acalmá-lo, quando em um desvio na estrada principal a polícia parou o ônibus e dois policiais entraram no veículo e ordenaram às mães que estavam com menores sob seus cuidados para descerem. “Tentei explicar que o menino não era meu filho, mas não me deram ouvidos... me fizeram descer também”, lembra.
Era noite. As mulheres estavam no meio do nada e os agentes levaram cinco adultas e duas meninas para uma cabine. Estas instalações são conhecidas como salas escuras, devido à sua localização estratégica, escondida e solitária para cometer abusos com total impunidade, segundo afirmam na Cristosal. “Primeiro nos extorquiram... pediram um dinheiro que não tínhamos para conseguir a suposta autorização para as crianças e poder continuar a viagem”, conta Mayra. “Eu realmente não tinha dinheiro e disse isso a eles. Eu não tinha a quantia que eles estavam me pedindo, porque já estavam pedindo 1.000 quetzales (130 dólares). Onde eu conseguiria 1.000 quetzales?”
Mas a polícia não aceitou um não como resposta. Segundo Mayra, eram três agentes com uniformes pretos, camisas de mangas compridas e números de identificação cobertos. “Eles nos estupraram. Eles diziam um ao outro de quem era a vez. A mãe implorava... Ela implorou que fizessem com ela o que quisessem, mas não tocassem na filha. Eles também estupraram a menina, ela tinha apenas 10 anos”.
Após ser estuprada, Mayra conseguiu fugir. “Se vão me matar, deixe que me matem, pensei. E corri. Cheguei ao México com as solas dos pés rasgadas de tanto correr”, garante. Um motorista que a viu na estrada teve pena dela. Ele a convidou para entrar no seu carro e a levou para Tecún Umán, no norte.
Seu caso não é exceção. El País recolheu pelo menos três testemunhos de pessoas que afirmam ter sido violadas. Uma delas é Daysi, uma mulher transgênero hondurenha que entrou pela fronteira de Aguas Calientes em 6 de junho de 2023. Ela também não se livrou das extorsões da polícia. Ela experimentou seu pior pesadelo depois de passar pelo posto policial de Río Hondo, quando agentes encapuzados do PNC e com suas identidades cobertas lhes pediram um suborno de 600 quetzales (cerca de US$ 77).
Aqueles que não puderam pagar foram retirados do ônibus. “Eles me colocaram num quarto, sozinha. O policial me encurralou contra a parede e me disse: ‘Se você não tem dinheiro, tem que me chupar’, diz. O agente abusou sexualmente dela e tirou-lhe todo o dinheiro que ela tinha na mochila. Outros sete homens encapuzados assistiram à cena. Nos quartos contíguos, obrigaram outras mulheres com crianças a entrar. “Não sei o que aconteceu com elas, mas todas vieram para o ônibus chorando”, lembra.
Ao chegar à Cidade de Guatemala, Daysi fez contato com a Lambda, associação que trabalha pelos direitos da comunidade LGTBIQ+. Após contar sua história, a associação apresentou uma denúncia coletiva à Procuradoria de Direitos Humanos (PDH). Embora tenha avançado e chegado ao Ministério Público, o caso ficou parado. “Os migrantes enfrentam muitas dificuldades no acesso à justiça. Somado ao medo de denunciar está o fato de estarem em um contexto de mobilidade, fazerem uma denúncia e irem embora”, afirma Alejandro Morales, coordenador da Espacio Seguro de Lambda. No caso de Daysi, como em muitos outros, o desconhecimento do território e do local exato onde ocorreu o crime, bem como o fato de não se conseguir identificar o agente, dificulta ainda mais o processo. Ao ser consultado por este jornal, a PDH negou a existência da denúncia – apesar de possuir o número do processo – e não quis se manifestar sobre o assunto.
Várias organizações consultadas garantem que há anos denunciam casos de extorsão e estes estão aumentando. Ao ser consultado por este jornal, Alejandra Mena, porta-voz do Instituto Guatemalteco de Migrações (IGM), garante ter conhecimento das denúncias apresentadas à PNC e que estas foram transferidas ao órgão correspondente. No entanto, o IGM afirma não ter relatórios ou reclamações contra funcionários da sua própria organização “que estejam envolvidos nestas acusações” e não assume qualquer responsabilidade a este respeito. O El País fez contato com Edwin Monroy, porta-voz da PNC, o vice-ministro da Segurança Carlos Franco, e Jorge Aguilar, porta-voz do Ministério do Interior, mas todos se recusaram a responder às perguntas ou a dar explicações sobre o caso.
Desde o início desta investigação, mais de cinco organizações não governamentais que prestaram assistência a vítimas de agressões sexuais cometidas pelas autoridades guatemaltecas recusaram-se a colaborar nesta reportagem, alegando que isso poderia dificultar o seu trabalho no terreno. Muitas vítimas não denunciam por medo de represálias e porque a Guatemala não é o seu país de origem. Muitos casos como este são esquecidos.
Quando chegou ao México, Mayra passou a primeira semana em Tapachula sem dinheiro, sem ajuda, dormindo no Parque Bicentenário. Após cinco meses de espera, em julho deste ano ela conseguiu agendar uma entrevista para seu processo de asilo nos Estados Unidos, através do aplicativo CBOne. “Nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo quando saí de Honduras, a verdade é que… Por mais que você ouça histórias, você ouve as histórias que se passa indo do México para os Estados Unidos, mas você não percebe que isso não acontece só no México, mas também na Guatemala. Você foge do mal e encontra algo quase pior”, diz Mayra, que decidiu contar sua a história para que seu depoimento ajude outras mulheres a não passarem pela mesma situação.
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O inferno de cruzar a Guatemala: “Teria preferido cruzar duas vezes o Darién” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU