27 Outubro 2023
A voz quebrantada não suporta a emoção e mesmo assim a maior vontade é gritar de dor.
Edith Bruck, escritora, poetisa e sobrevivente de Auschwitz, experimentou pessoalmente o horror do Holocausto quando era pouco mais que uma criança. E hoje, aos 92 anos, não esconde a dificuldade de ainda falar de guerra. Ela olha continuamente as imagens vindas de Israel e de Gaza, temendo que a violência seja interminável. “Uma vergonha para a humanidade” que corre o risco de gerar apenas mais ódio.
A entrevista é de Eleonora Camilli, publicada por La Stampa, 25-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Que sentimentos lhe causa o que está acontecendo?
É um choque para mim, fiquei mal, ainda estou muito mal. O que aconteceu no dia 7 de outubro é uma das coisas mais horríveis que se possa imaginar, especialmente para os civis. Penso continuamente naquelas crianças, nos jovens que participavam da rave, atingidos por um ataque repentino. Hoje lamento todos os mortos, também os palestinos. Mas pertenço ao povo judeu e dói-me constatar ainda esse antissemitismo, que não nasceu ontem e que infelizmente nunca será erradicado, aliás, está se espalhando ainda mais.
Do que você acha que depende?
De uma nuvem negra, isto é, da direita, que se instalaram na Europa e noutras partes do mundo. Muitos saem em passeatas e fazem manifestações em nome da Palestina, mas muitas vezes por trás existe um sentimento antissemita e anti-israelense mais que pró-palestinos. Eu nunca vi tamanho amor ao longo dos anos pelos refugiados palestinos. No entanto, a situação na Palestina é dramática e já deveria ter sido resolvida há 70 anos. Não se pode continuar de massacre em massacre. O ódio traz mais ódio, o sangue, mais sangue.
Nas últimas horas discute-se um possível ataque terrestre por parte de Israel. Você considera que seja uma resposta correta e proporcional ao que aconteceu?
Não existem guerras justas. Antes de qualquer ação, todos os civis devem ser postos a salvo. Sei bem que é uma operação muito difícil, até porque tem gente nos hospitais e não se sabe onde a levar. Mas lembremo-nos que a Faixa de Gaza não é apenas o Hamas, há crianças, pais, mães.
Portanto, não há saída. Estou muito assustada.
O que mais lhe assusta?
Que esta guerra não acabe, que os países vizinhos possam intervir e que o conflito se espalhe com o envolvimento do Líbano e do Irã. É muito perigoso.
Há também uma guerra de informação.
Acontece em todas as guerras, todos negam tudo, basta pensar na explosão do hospital de Gaza, onde houve um bate-rebate de responsabilidades. Sempre foi assim, a história sempre foi mistificada, mas fazendo isso ninguém jamais acertou as contas com o passado. Até a linguagem está agora vazia de substância.
Yocheved Lifshitz, uma das mulheres feitas reféns pelo Hamas e libertada há dois dias, antes de sair apertou a mão de um de seus captores dizendo "shalom". Você acredita que até a palavra “paz” hoje seja desprovida de substância?
Sonho com a paz, mas acredito que seja uma utopia. Sou contra toda guerra, claro, mas hoje até chamar-se pacifista, um termo lindíssimo, já não tem substância. Depois daquele gesto tudo continuou como antes. Eu realmente espero que esta tragédia seja resolvida. A única solução é aquela de dois Estados, Israel e Palestina. Mas se tudo continuar assim, aquelas terras só servirão para enterrar os mortos.
Muitas das vítimas de ambos os lados são crianças. Existem agora mais de 1.500 mortes. A esses se somam feridos, órfãos e sobreviventes que crescerão com esse horror nos olhos. Como aconteceu com você.
É algo indescritível, o que vivi afetou toda a minha vida e ainda afeta, mas ao mesmo tempo me tornou consciente das injustiças do mundo e das violências. Eu detesto a violência, já vi tanto horror que nunca mais quero ver. Quando li sobre as 40 crianças mortas no kibutz, lembrei-me de uma cena que vivi em Auschwitz: havia a cabeça de uma criança ainda sangrando que estava sendo usada como bola de futebol. Quando li as notícias sobre aquelas crianças, comecei a chorar. Mas que tipo de mundo é esse? Isso não é guerra, é uma vergonha para a humanidade. A guerra é um exército que luta contra outro exército, não contra civis, não contra jovens que dançam ou contra crianças nas casas. Faltam-me as forças, mas gostaria de gritar de dor por essa injustiça.
Você vê uma solução no horizonte?
Israelenses e palestinos devem encontrar uma solução juntos. Meu desejo é que nenhum judeu morra novamente no mundo, mas não acredito que a violência seja respondida com violência, vingança ou revanche. Eu não odiei nem os alemães. O ódio só envenena quem o sente.
Leia mais
- Edith Bruck: “Matam também as crianças como faziam os nazistas, mas a vingança não serve para nada”
- Edith Bruck: o horror na Europa é insuportável para mim, tenho esperança nos jovens
- “Não durmo à noite fico revivendo Auschwitz. O negacionismo é inquietante”. Entrevista com Edith Bruck
- Eu, o nazifascismo e Orbán, o vencedor. Artigo de Edith Bruck
- “Deportada aos 13 anos. Falo para os jovens que na escuridão há sempre uma luz”. Entrevista com Edith Bruck
- “Mesmo com uma arma, meu pai não teria evitado o campo de concentração”. Entrevista com Edith Bruck
- Ucrânia, Edith Bruck: “Estou de coração partido. Mas às mães eu digo: não cultivem o ódio”
- O homem contra o homem: não aprendemos a lição da história. Artigo de Edith Bruck
- “Falar sobre os campos de extermínio é uma consciência moral e um dever”. Entrevista com Edith Bruck
- “Para mim, a memória é viver, e a escrita é respirar.” Entrevista com Edith Bruck
- O Papa visita Edith Bruck, sobrevivente de Auschwitz
- “Escrevi uma carta a Deus e o Papa veio a mim”. Entrevista com Edith Bruck
- Holocausto. “Com o passar do tempo, fica cada vez mais difícil acreditar, é uma monstruosidade inaceitável”. Entrevista com Edith Bruck
- “Para os nazistas, bastava uma espinha no rosto para decidir que um de nós tinha que morrer”. Entrevista com Edith Bruck
- Para manter viva a memória do Holocausto, é preciso ter a força para dar um nome ao mal. Artigo de Vito Mancuso
- Holocausto: onde está Deus? Artigo de Tonio Dell'Olio
- Holocausto: as raízes não devem ser esquecidas
- “Onde estava Deus?” Por que Auschwitz é o símbolo do mal
- Fui uma requerente de asilo. Rejeitada, acabei em Auschwitz
- "A lei sobre Auschwitz? A Polônia fez tudo errado"
- ‘O ódio de hoje lembra muito o dos anos 30’. Entrevista com Eva Schloss, escritora e sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz
- Suas palavras entraram no coração. Sobrevivente de Auschwitz fala no Parlamento Alemão
- Memória do Holocausto. A coragem de lembrar e o dever de contar. A voz de Primo Levi no abismo de Auschwitz
- Memória do Holocausto - Dia Internacional. "Eu, de Auschwitz a senadora vitalícia, mas não esqueço e não perdoo"
- Memória do Holocausto - Dia Internacional. “Eu não gostaria que tudo acabasse em outra Auschwitz”. Entrevista com Di Segni, rabino da sinagoga de Roma
- Decifradas as cartas de um deportado a Auschwitz: ''Eu levava outros à morte dizendo-lhes a verdade''
- "Nós não éramos mais homens". Carta inédita de Primo Levi
- O extermínio, a memória, o esquecimento. Artigo de Sarantis Thanopulos
- Historiador alerta para as sombras do nazismo
- Papa Francisco: Como interpretamos as três guerras mundiais?
- Manipulações midiáticas sobre a geopolítica palestina
- Qual futuro para Israel. Artigo de Francesco Sisci
- Enquanto o Papa apela pela paz, Israel alerta o Vaticano contra falsos “paralelismos”
- Cardeal Parolin comenta o ataque contra Israel: “período escuro da história humana”; “estamos repetindo os erros do passado”
- O Papa pronunciou a melhor palavra para sair da crise dos últimos dias: Palestina
- Israel e as reconfigurações no Oriente Médio. Entrevista com Ezequiel Kopel
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Eu, uma sobrevivente de Auschwitz, vejo o horror daquela época nas crianças assassinadas”. Entrevista com Edith Bruck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU