Israel e as reconfigurações no Oriente Médio. Entrevista com Ezequiel Kopel

A recente ofensiva do Hamas contra Israel, apelidada de Tempestade Al-Aqsa, pode ser lida à luz de uma série de mudanças na região e na própria política interna israelita

Foto: @visegrad24 | Twitter

09 Outubro 2023

O Oriente Médio é, ainda hoje, uma das regiões mais turbulentas do mundo. A situação entre Israel e a Palestina regressou subitamente às primeiras páginas, depois de se deteriorar com a ascensão de líderes de direita cada vez mais radicais em Israel e a radicalização do próprio lado palestino. No Irã, a repressão aumentou, como demonstra o assassinato de Mahsa Amini, que mais uma vez pôs em evidência as políticas derivadas do processo iniciado com a Revolução Iraniana de 1979. Agora, no Oriente Médio, já não são apenas as antigas potências coloniais atuantes e os Estados Unidos, que durante décadas foram o principal ator imperial na região. A Rússia e a China juntaram-se ao concerto de países que têm interesses na região e que atuam, por exemplo, em países como a Síria.

Para compreender o passado e o presente da região, entrevistamos o jornalista e pesquisador Ezequiel Kopel, que há muitos anos analisa a situação no Oriente Médio.

Kopel, que viveu mais de uma década em Israel, na Cisjordânia e no Egito, é autor dos livros Oriente Médio: lugar comum (Capital Intelectual, 2021) e A disputa pelo controle do Oriente Médio (Capital Intelectual, 2022). Na entrevista, ele explica a história da região, investiga o conflito israelo-palestino, analisa a tendência do pan-arabismo, revisita o processo da Primavera Árabe e reflete sobre os novos atores estrangeiros no Oriente Médio.

A entrevista é de Mariano Schuster, publicada por Nueva Sociedad, outubro de 2023.

Eis a entrevista.

Um aspecto notável de seu trabalho é aquele que aborda o conflito entre Israel e a Palestina. Longe de analisar a questão apenas a partir do presente, você investiga as raízes ideológicas com as quais se pretendia forjar o Estado de Israel. Neste quadro, a presença de Theodor Herzl, o pai ideológico do sionismo moderno, é indubitável. Você coloca, porém, Ben-Gurion, o fundador específico do Estado, como uma figura mais prática do que o teórico Herzl. Quais as diferenças entre os dois e por que a teoria herzliana, forjada em Viena, foi difícil de aplicar no desenvolvimento do Estado? 

Primeiramente, é importante considerar quem foi Herzl.

Herzl viveu em Viena e era, na verdade, um judeu assimilado na Europa. Ele estava muito longe de professar a religiosidade ortodoxa, a ponto de nem circuncidar os filhos. De um modo geral, considero que Herzl tinha uma visão um tanto ingênua da região, ou da possibilidade de autodeterminação judaica na terra dos seus antepassados. Não devemos esquecer que, na altura em que Herzl desenvolveu a sua teoria de um Estado judeu, os judeus constituíam menos de 10% da população daquela terra.

Herzl foi então confrontado com um dilema ético e prático. Prático, porque não é muito fácil sustentar um plano de construção estatal e de autodeterminação num espaço geográfico onde os judeus constituíam uma percentagem tão baixa da população – ninguém compraria uma casa 90% habitada por inimigos. E ético porque, se esse plano fosse desenvolvido, seria necessário ocupar o território. Embora o sionismo não tenha expulsado violentamente os árabes até 1948, comprou grandes extensões de terra. E, pelo menos desde a década de 1920, os árabes que viviam no território do Protetorado da Palestina perceberam muito rapidamente que algo estava acontecendo ali, à medida que foram estabelecidos apelos à migração judaica. 

Herzl, porém, não via esse problema nem percebia o estado de alerta da população árabe da região. Tanto que em seus escritos não se referiu aos árabes, como se estivesse omitindo o elefante do armário. A verdade é que Herzl realmente parecia um sonhador que acreditava que a autodeterminação judaica naquela terra seria possível sem conflito. Mas é claro que o elefante na sala estava lá. E foi, claro, o fato de a maior parte da população daquela área ser árabe-islâmica. Mas se Herzl, como principal teórico do sionismo, recusou-se a abordar esse problema, David Ben-Gurion, como executor prático do sionismo, foi forçado a fazê-lo.

Ao contrário de Herzl, Ben-Gurion era uma pessoa prática, com um programa e objetivos claros. E esse objetivo era, como diz corretamente o título da biografia de Tom Segev, Um estado a qualquer custo: a vida de David Ben-Gurion, a de construir um “Estado a qualquer preço”. Muito antes da criação do Estado, Ben-Gurion afirmava que o problema da construção do Estado de Israel não era religioso, mas político. E ele tomou decisões nessa direção. Ben-Gurion, nesse sentido, consolidou-se como o executor prático da construção do Estado “a qualquer preço”.

Com base nas suas propostas, poder-se-ia inferir que no plano original de Herzl havia uma abordagem ética: a de dar refúgio aos judeus no seu próprio Estado nacional, face às constantes perseguições que existiam na Europa e que culminariam com a Shoah. Neste sentido, o desenvolvimento do sionismo poderia ter um significado diferente daquele que vemos hoje...

Na verdade, considero que é impossível pensar no sionismo na sua primeira fase sem considerar a perseguição aos judeus na Europa. E acredito que quem não considerar isso não conseguirá compreender a real dinâmica que ocorreu a partir do surgimento do movimento sionista. Não se conseguirá compreender nem suas motivações nem suas ações.

Devemos ter em mente que, para desenvolver seu projeto, Herzl se reuniu com líderes muito diversos. Tão diversos que incluíam todos, desde o kaiser alemão até o sultão otomano. Herzl ouviu todas as ofertas, incluindo algumas que hoje parecem estranhas, como a possibilidade de construir o Estado judeu em Uganda. Certamente, todas estas ofertas falharam e o Estado foi construído, sob parâmetros sionistas, nas terras da antiga Palestina.

Ora, se o sionismo original não pode ser pensado sem considerar a perseguição aos judeus na Europa, o sionismo atual não pode ser pensado sem considerar o desenvolvimento das colônias, da ocupação militar, da colonização de um território estrangeiro por parte de uma população que constituía, na época da expansão, 10% dos que viviam naquela terra. Em suma, acredito que devemos tornar a equação mais complexa e lembrar, por exemplo, que não só o Estado de Israel foi apoiado por uma resolução das Nações Unidas, mas também recebeu um apoio significativo de homens e mulheres da esquerda que, depois da Shoah, o povo judeu, historicamente perseguido, regressava à sua pátria histórica. 

Esta posição contrasta fortemente com a daqueles que acreditam, numa perspectiva religiosa, que o Estado de Israel se baseia numa justificação bíblica baseada no fato de que há 2.000 anos atrás existia um Estado judeu naquela terra. Para muitas pessoas da esquerda, a criação do Estado de Israel foi justificada, não nessa base, mas pela necessidade de fornecer refúgio a um povo perseguido e de integrá-lo no concerto das nações.

Na verdade, em termos estritamente políticos, a criação do Estado de Israel contou com a aprovação da União Soviética, que votou a favor da criação de um Estado judeu ao lado de um Estado Árabe.

Mas podemos perguntar-nos: quando é que o sionismo entrou em crise? Quando não conseguiu atingir o seu objetivo, que não era o da personificação, mas o da coexistência de dois Estados. Virar as costas aos outros constituía, nesse sentido, um certo desvio em relação à proposta original. Tendo a considerar que o objetivo inicial estava correto. É verdade que houve injustiças, que houve expulsões como as de 1948, mas mesmo assim o objetivo de coexistência de dois Estados pode ser desenvolvido. A ocupação cada vez mais estabelecida distanciou o sionismo dos seus projetos originais e minou as suas bases de apoio. Se no início havia uma forte componente de esquerda e progressista entre aqueles que se consideravam sionistas, foi-se abrindo progressivamente o caminho para que o sionismo assumisse uma face cada vez mais de direita.

Na época da criação do Estado foram definidas fronteiras precisas. Quais foram as razões pelas quais o expansionismo israelense ocorreu na região?

O expansionismo é produto ou parte de uma disputa dentro da comunidade. E quando me refiro à comunidade, não me refiro à comunidade judaica, mas à comunidade israelense, como uma comunidade de estado nacional. Muitos israelenses não estavam dispostos a aceitar as fronteiras que tinham sido demarcadas. Até hoje, uma grande parte dos israelenses não está disposta a deixar a Cisjordânia, pois consideram que a fronteira do Estado de Israel é a fronteira com a Jordânia.

E essas razões são religiosas?

Não só, embora tenham um impacto. Diria, em princípio, que o que se verifica é uma aliança entre vários nacionalistas – nem sempre extremistas religiosos – que colocam o eixo na questão da segurança. A eles juntam-se, de fato, os religiosos, que procuram reconstruir o Israel bíblico, a antiga terra de Israel. E onde fica essa terra? Não em Haifa, não em Tel Aviv, mas nos territórios palestinos: em Nablus, em Hebron, em Belém. Estes fatores causaram a escalada permanente de Israel em direção à Palestina. O problema é que isso está longe de garantir a segurança. Israel é um Estado que tem força política e militar para enfrentar os inimigos do Estado – e isso é verificado nos seus vários triunfos militares durante o século XX – mas não para manter uma guerra permanente contra guerrilhas e forças irregulares. 

O senhor afirma que Israel constituiu um sistema político duplo: democracia para alguns, apartheid para outros. Sempre foi assim? Que casos exemplificam esta situação? 

Na verdade, a minha consideração é que Israel constitui uma democracia para os seus cidadãos e uma ditadura para aqueles que não considera como tal. E, neste quadro, alguns cidadãos, como os árabes, são considerados de “segunda classe” e, portanto, têm direitos mais limitados. Por exemplo, se um árabe-israelense pretende mudar-se para uma colônia judaica na Cisjordânia, poderá ter sérias complicações.

No caso da população palestina nos territórios ocupados, a situação é muito pior, uma vez que estão, em muitos casos, sob a tutela de tribunais militares. O exemplo mais claro desta situação pode ser visto em Hebron, uma cidade ocupada. Se no centro de Hebron um jovem palestino atira uma pedra num colono judeu, ele é julgado por um tribunal militar. Mas se uma criança israelense atirar uma pedra a um palestino, ela será julgada por um tribunal civil israelense. A isto acrescenta-se o fato de existirem estradas e rotas pelas quais os palestinos não podem viajar. Em suma, têm um direito de circulação limitado. Tenhamos em mente que, neste preciso momento, Israel mantém 120 autorizações de circulação diferentes para palestinos. Isto acontece num Estado que tem 75 anos e onde esta situação se reproduz há mais de 50 anos: 8% da população israelense foi mobilizada para administrar os territórios ocupados e hoje há 700.000 israelenses vivendo em território palestino ocupado. Isto, evidentemente, viola claramente a Convenção de Genebra.

Compreendo que este processo não afeta apenas o povo palestino, que logicamente é a principal vítima da ocupação, mas também a própria fisionomia da democracia israelense...

Claro. Este processo afeta fortemente a democracia em Israel, uma vez que hoje é, em plena medida, uma democracia de ocupação. É evidente que uma ocupação militar não pode ser sustentada durante meio século e consideramos que, no fim, não afetará o caráter democrático do próprio Estado. Agora fala-se muito em “iliberalismo”, como se fosse algo novo. Mas Israel aplica há muito tempo um regime iliberal a uma parte dos seus cidadãos. Não é por acaso, neste sentido, que as forças que mais apoiam o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu sejam, precisamente, as do movimento religioso de colonos. Isto atingiu um tal nível de desenvolvimento que hoje, em Israel, o poder político foi colocado acima do judiciário. Da forma como as coisas estavam se desenvolvendo, parecia lógico que isso acontecesse. Não é possível manter dois sistemas distintos – um democrático para os cidadãos e um não democrático para os não cidadãos – acreditando que isso não afetará o estado da democracia no país. Em suma, o que acontece é que o regime de democracia de ocupação (que podemos exemplificar com a situação na Cisjordânia) está se estendendo a todo Israel. Hoje o dilema é claro: ou há democracia ou há ocupação. Mas isso é algo sobre o qual poucos querem falar.

O fim da ocupação seria possível hoje?

Acredito que, hoje, a solução de dois Estados é muito difícil, embora ao mesmo tempo perceba que é a única forma de acabar com o conflito. Quando Yitzhak Rabin e Shimon Peres iniciaram o diálogo com os palestinos, estava a ser discutido um acordo final de cinco anos. Foi isso que debateram com Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), em Oslo, em 1993. Mas o que aconteceu cinco anos depois? Não só não houve um acordo definitivo, como houve uma expansão dos colonos israelenses para os territórios palestinos. A progressão foi extrema. Se em 1999 se podia verificar a presença de 130.000 colonos no território palestino, hoje podemos verificar a presença de 700.000. Isto torna a solução muito difícil, pois a evacuação desse número de pessoas é muito complexa.

Vale a pena lembrar que quando Israel evacuou 6.000 colonos de Gaza, causou um problema de enormes dimensões. Ao mesmo tempo, acredito que a divisão é tão profunda que uma solução de dois Estados seria ideal. Alguns propõem o contrário: que a única solução é um Estado para todos. Minha resposta para isso é: e quais são as garantias de direitos? Um Estado para todos com a primazia israelense não ampliaria ainda mais o conflito? A maioria dos israelenses não quer ser palestina, não quer um Estado para todos. E a maioria dos palestinos não quer ser israelense. Gostaríamos que tudo fosse uma unidade e que ninguém dominasse o outro, mas quais são as reais possibilidades de tal solução? Em suma, a solução de um Estado para todos me parece uma boa solução no papel, mas considero-a o produto de observadores estrangeiros, e não das pessoas que habitam o território. Portanto, embora a solução de dois Estados pareça hoje impossível, continuo a acreditar que é a única que permitiria outro tipo de coexistência.

Durante décadas, as negociações tiveram, do lado palestino, um ator fundamental. Refiro-me à OLP, outrora liderada por Yasser Arafat. Contudo, nas últimas décadas tem havido um relativo recuo dessa organização e um aumento na força e no poder de organizações mais radicais como o Hamas. Por que esta situação ocorreu?

A OLP entrou numa crise profunda por uma razão fácil de compreender: porque o seu projeto falhou, porque o seu plano de negociação com Israel não se concretizou. Neste sentido, a promessa que ela fez ao seu povo nunca viu a luz do dia. Essa promessa consistia, fundamentalmente, no diálogo com Israel para obter uma autonomia limitada – que foi alcançada – e depois desenvolver um acordo definitivo que daria origem ao Estado Palestino. Na medida em que este acordo definitivo nunca existiu, o povo palestino sentiu que o caminho da OLP era um erro e que, com Israel, não poderia ser negociado. Não devemos esquecer que, durante os próprios Acordos de Oslo, a Palestina reconheceu o Estado de Israel, mas Israel não fez o mesmo com a Palestina.

Agora, me permito questionar a ideia de que a crise da OLP signifique o seu fim, porque se trata de uma organização que muitas vezes foi dada como morta e que sempre conseguiu recuperar forças. Teremos que ver se ele consegue fazer isso agora. Mas também, para compreender a crise da OLP, devemos olhar para as mutações no próprio Israel. É um Estado que mudou radicalmente e que, nessa mudança, beneficiou e fortaleceu as facções mais extremistas do povo palestino, como a representada pelo Hamas. A tendência cada vez mais iliberal de Israel também incentivou o extremismo do outro lado. Estamos falando de um país, Israel, onde os próprios deputados de direita costumavam levantar-se quando falavam representantes da extrema-direita religiosa. Hoje acontece o contrário: essa extrema-direita está aliada à direita tradicional, a esquerda está em crise e a possibilidade de diálogo parece cada vez mais ilusória.

Em suma, os palestinos também veem um radicalismo na própria direita israelense e reagem com os seus próprios… 

Claro. Pensemos a este respeito. O Likud, que está longe de ser o partido mais radical da direita israelense, tem a colonização da Cisjordânia na sua carta política. É muito difícil dizer a um palestino que esta declaração não é radical quando, além disso, é acompanhada de colonatos e ocupações. Os colonatos, para os palestinos, constituem em si um fato radical. Neste sentido, o crescimento da direita – messiânica, extremista, religiosa e conservadora – e de alternativas radicais está ligado ao fracasso na criação de fronteiras nacionais para os dois povos.

Gostaria de apresentar outro tema do seu livro que, creio, se tornou muito atual. Refiro-me à situação no Irã, que desde o ano passado tem atraído muita atenção devido ao assassinato de Mahsa Amini, que foi morta por não usar o véu adequadamente. No seu livro, você trabalha sobre a Revolução Iraniana e propõe que, nas suas origens, este processo foi apoiado pela esquerda secular e por movimentos estudantis não fundamentalistas contra o regime do Xá. Por que atraiu essa base de apoio? Houve uma mudança no processo desenvolvido pelo aiatolá Ruhollah Khomeini ou houve ingenuidade por parte desses setores? 

Khomeini, como é óbvio, não é uma personagem pela qual tenha especial simpatia. Mas em nenhuma circunstância poderia subestimá-lo como líder político. Nesse sentido, devo dizer que o seu projeto foi extremamente bem-sucedido. Ele elaborou um plano, escreveu-o, publicou-o e depois executou-o. Esse projeto era o de um governo islâmico e o de uma revolução dentro do próprio Islã Xiita. E soube quando aplicá-lo, aproveitando um ano-chave como 1979.

Khomeini leu bem a situação, compreendeu a crise do regime do Mohammad Reza Pahlavi e viu que era o seu momento de agir. É claro que para começar contou com a ajuda externa, mas baseou-se, sobretudo, na dinâmica regional. O fato de Saddam Hussein o ter atacado diretamente menos de um ano depois do início da revolução – quando já tinha começado a prender e assassinar os seus opositores políticos, bem como a ditar as principais normas do que mais tarde se tornaria o Estado teocrático – permitiu que todos os iranianos fossem agrupados sob seu comando. É bem verdade que hoje parece estranho que forças seculares ou não extremistas tenham inicialmente dado algum apoio a Khomeini. Isto foi mediado pela animosidade existente em relação ao , mas também por uma certa subestimação do próprio Khomeini por parte daqueles setores. Foram muitos os que o abraçaram como uma espécie de avô que acolheu a todos. E muitos não tinham ideia do que ele era capaz de fazer.

Seu livro afirma que, desde a revolução iraniana, o Islã deixou de ser uma expressão teórica e meramente religiosa e tornou-se uma força reguladora na política do Oriente Médio. O que significa exatamente “Islã político”? E por que a revolução iraniana é importante para a compreensão desse processo?

O Islã político é, certamente, uma questão muito complexa. Como se sabe, temos islamismos políticos de diferentes tipos: violentos, pacíficos, moderados. E são muito variáveis ​​dependendo das regiões. Por exemplo, a Irmandade Muçulmana na Síria é particularmente violenta, enquanto a Irmandade Muçulmana na Tunísia não o é. No mesmo sentido, houve mutações: a Irmandade Muçulmana no Egito passou de querer matar Gamal Abdel Nasser a triunfar nas únicas eleições democráticas na história do país. Mas, em última análise, o que chamamos de "Islã político" está ligado ao desejo de muitos cidadãos de que o Islã, como religião e como cultura, tenha a palavra na vida política dos seus respectivos países, mesmo quando esse "dizer" nem sempre é igual para todos.

Mas há muitos outros que querem bloquear o caminho ao Islã político. Isto permite que os islâmicos formem um certo ethos de perseguidos, excluídos da possibilidade de governar. E isto acontece não só com o Islã político radical, mas também com o Islã moderado. Há países onde forças seculares e, em alguns casos, progressistas se aliaram a forças iliberais e de direita para impedir que o Islã político moderado exerça funções governamentais ou simplesmente participe politicamente. Isto, logicamente, produz uma verdadeira crise de representação e pode levar, em alguns casos, a que estas forças moderadas deixem de ser moderadas. Neste sentido, eu gostaria de mencionar que o Islã político tem um forte impulso após o fracasso do pan-arabismo. É depois do fracasso desse projeto que o Islã político emerge fortemente.

O pan-arabismo provou ser uma força poderosa durante muitos anos no Oriente Médio. E estava inserido, pelo menos a nível global, no que ficou conhecido como Movimento dos Não Alinhados, uma organização que reunia diferentes países que não respondiam nem aos Estados Unidos nem à União Soviética, mas que na sua maior parte  expressaram posições nacionalistas e de esquerda, pelo menos no nível discursivo, enquanto no nível político construíram regimes autoritários. Por que este projeto, claramente referenciado por líderes como o egípcio Gamal Abdel Nasser, fracassou?

Acho que esse aspecto é muito importante e fico feliz que você tenha me perguntado a respeito. O problema do pan-arabismo é ter falhado em duas áreas: interna e internacionalmente. Embora os líderes pan-arabistas tenham conseguido introduzir marcos igualitários nas constituições e, em alguns casos, até conseguido desenvolver revoluções produtivas, mais tarde governaram com mão de ferro, por vezes impondo leis típicas dos sistemas coloniais, como as do estado de emergência. Isto, por exemplo, era visível no Egito, que quase até a chegada da Primavera Árabe vivia sob um estado de emergência. O mesmo acontece no caso da Síria, caso em que o estado de emergência foi prorrogado por 30 anos. A Líbia também pode ser incluída nessa categoria. O seu líder era Muammar Gaddafi, que se autoproclamou socialista e que governou com mão de ferro e adotou medidas claramente ditatoriais.

Pude conversar com diversas pessoas desses países, pessoas que estão do lado progressista e da esquerda, que levantaram comigo coisas muito interessantes a esse respeito. A percepção é que houve aplausos e considerações positivas da esquerda ocidental em relação a estes líderes que não levaram em conta a situação das populações locais. Costumam dizer: “Você aplaudiu o Nasser, mas não sabe o que estava acontecendo aqui”.

A feminista e pintora comunista egípcia Inji Aflatoun disse isso muito claramente: “Você adorou, mas me mandou para a prisão por cinco anos”. Em suma, líderes como Nasser tiveram a aprovação da esquerda ocidental por terem confrontado as potências coloniais durante a crise de Suez (1956), mas essa esquerda ocidental nunca se importou muito com o que realmente estava a acontecer nesses países. Foram líderes que criaram sistemas de partido único, que mantiveram a primazia do exército, que governaram de forma autoritária e que, além disso, falharam economicamente.

Todos os sistemas pan-arábicos acabaram por ser regimes dominados por exércitos. Em nível regional, quando Nasser perdeu a guerra civil com Israel e o Egito viu a perda de quase um terço do seu território, ocorreu uma crise de pan-arabismo. Foi nesse momento que os assuntos internos do Islã, que tinham sido deixados de lado em virtude da unidade na luta contra o inimigo comum que era Israel, emergiram mais uma vez com clareza. Neste sentido, a Guerra dos Seis Dias constituiu o início do fim do pan-arabismo e permitiu o surgimento de uma nova vanguarda: o Islã político.

O desenvolvimento do Islã político e a derrota do pan-arabismo, e depois a queda da União Soviética, parecem ter evidenciado um processo de penetração crescente dos Estados Unidos na região. O que levou ao intervencionismo americano?

A intervenção dos Estados Unidos sempre foi estratégica e esteve claramente ligada à avaliação da existência de extensos recursos energéticos na região. Isto é visível hoje, com um presidente como Joe Biden a pedir à Arábia Saudita maior produção de petróleo, mas também com uma Arábia Saudita que hoje procura expandir a sua carteira de clientes e aliados.

Apesar disso, durante as últimas três presidências houve uma retirada dos Estados Unidos, uma certa retirada da região. Com Barack Obama, Donald Trump e Biden, isto é muito claro. Assistimos a um momento diferente da expansão imperialista que dominou a segunda metade do século XX e que teve o seu apogeu com as duas Guerras do Golfo (pensemos que, durante a primeira Guerra do Golfo, os Estados Unidos criaram o campo de aviação no Catar, mobilizou a famosa Quinta Frota e localizou tropas terrestres no Kuwait como centro nevrálgico).

Ao mesmo tempo, e este é um dos meus propósitos no livro, considero que as intervenções devem ser vistas no seu contexto, retirando apoio ou rejeição do ambiente. O momento de maior intervenção dos Estados Unidos, durante a referida Guerra do Golfo, não foi nada unilateral: contou com o apoio de numerosos países da região que temiam mais Saddam Hussein do que os próprios americanos. Isto é claro no caso das monarquias do Golfo e de Israel. Não devemos esquecer que após o fim do mundo bipolar, foram muitos os que, no Oriente Médio, seguiram o novo padrão.

Esse tipo de relação se verifica em outros processos contemporâneos? Os Estados Unidos ainda são vistos como uma potência transcendente, mesmo após o surgimento da China e da Rússia? 

Sim, ainda é percebido assim e há exemplos mais ou menos contemporâneos que o demonstram. Estive no Egito durante o processo da Primavera Árabe e houve algo que me surpreendeu naquela época. Muitas pessoas que expressaram clara animosidade em relação aos Estados Unidos pediram, no entanto, a sua intervenção. Passei muito tempo me perguntando por que algo assim aconteceu, tentando encontrar alguma lógica para isso. A resposta que muitos me deram foi simples: "Você não assistiu televisão? É o único país que tem capacidade para intervir e que poderia fazer alguma coisa”. Disseram isso, mesmo sabendo que os Estados Unidos provavelmente também não tinham grandes planos para a região. Mas eles consideraram isso preferível ao que estavam vivenciando.

Esse processo, o da Primavera Árabe, foi descrito como um fracasso. Concorda com essa avaliação? 

É absolutamente verdade que se tende a afirmar que a Primavera Árabe foi um desastre e que, de uma forma ou de outra, deu início à chegada de grupos que já não eram islâmicos, mas sim extremistas islâmicos, como o Estado Islâmico ou a Al-Nusra.

Minha consideração, porém, é diferente. Entendo que o crescimento destes grupos está mais ligado à ação de líderes autoritários do que aos cidadãos que procuram construir Estados mais democráticos. Ora, é indiscutível que a Primavera Árabe não atingiu o seu objetivo principal, que consistia, fundamentalmente, na democratização do mundo árabe. Essa “primavera” foi claramente sucedida por um “inverno” árabe, em que forças contrarrevolucionárias, reacionárias e antidemocráticas se uniram para pôr fim à tentativa democratizante. Esta reação, além disso, ultrapassou as fronteiras de cada país e se constituiu como um conglomerado regional, que recebeu o apoio de diversas monarquias.

Ainda assim, considero que o processo da Primavera Árabe foi positivo e que não deve ser pensado apenas limitando-o a alguns anos (de 2011 a 2013). A Primavera Árabe abriu portas a outras manifestações, como a revolta no Iraque em 2018, a revolta no Líbano em 2019, os protestos que levaram à demissão de Abdelaziz Bouteflika na Argélia em 2019, e o fim do governo do Partido do Congresso Nacional em Sudão durante o mesmo ano. Agora vemos, desde o ano passado, uma série de protestos no Irã, um país que, embora não seja árabe, está intimamente ligado ao que acontece na região. Estes processos de luta e revolta têm muito a ver com o que deu início à Primavera Árabe. Temos a certeza, como afirmam alguns analistas, de que todo o mundo islâmico não quer a democracia?

E, no entanto, são muitos os atores que continuam a afirmar que este processo ocorreu devido ao que chamam de “interferência estrangeira”...

É um tema muito interessante de discutir porque, de fato, há sempre uma visão crítica da influência externa. Nesse sentido, creio que há afirmações que não fazem justiça à realidade. Muitos sistemas na área foram criados através da observação, a partir de uma perspectiva local, do que estava a acontecer no Ocidente. Refiro-me aos parlamentos e às constituições, sem ir mais longe. Em alguns casos, como na Turquia de Atatürk, o voto feminino ocorreu mais cedo do que em alguns países europeus.

Mas a isto acrescentaria outra questão, porque concordo plenamente que há quem utilize a ideia de “interferência externa” para gerar uma espécie de particularismo regional que nega direitos. Se se afirma que tudo é “influência estrangeira”, deve-se dizer, portanto, se se quer ou não que haja plenos direitos e liberdades civis na região ou se prefere que sejam governados por ditadores ou tiranos. A referência permanente à “influência estrangeira” é utilizada por muitos cidadãos do Ocidente – que gozam de plenos direitos e liberdades civis – para apoiar regimes iliberais noutras latitudes. A prova disso acontece com a Rússia.

Deveria perguntar-se a essas mesmas pessoas se consideram ou não que a influência russa também é intervencionismo ou se não o é. A Rússia e a China, mais do que os Estados Unidos, são os novos queridinhos dos governos não democráticos da região. A razão é óbvia: não pedem reformas políticas. Os Estados Unidos, com todas as críticas que já lhe fiz, pedem, ainda que minimamente, algumas mudanças e algumas reformas – que, claro, também os beneficiam.

Também acho que há uma forte dose de ingenuidade. Os Estados Unidos são imperialistas? Claro. E a Rússia? Afirmo que também o é, enquanto alguns duvidam ou sustentam o contrário. O imperialismo deve ser analisado em detalhes. A única base militar que a Rússia possui no Mediterrâneo está localizada na Síria. Agora também tem uma base aérea. Isso é imperialismo ou não? A Rússia se preocupa com essa base ou não se importa? Claro que ela se importa. Será que a Rússia entrou na região por nada ou porque quer ter algo a dizer em questões energéticas, em questões económicas, em termos de influência? A minha consideração, com base nos dados, é que tenta influenciar uma região chave para o mundo e para a economia global.

O seu livro, de fato, começa com uma declaração do czar Nicolau na qual os interesses da Rússia na região já estão delineados. Em seguida, analisa os processos que tiveram a Rússia como ator privilegiado – a intervenção no Afeganistão e, mais recentemente, a guerra na Síria. Existe uma linha de continuidade entre estes processos ou houve mutações claras, enquanto a própria Rússia e a União Soviética constituíam processos políticos muito diferentes entre si? 

Vamos apenas pensar na localização da Rússia e, ao mesmo tempo, na história do Império Russo. A resposta é óbvia: está abaixo da Pérsia e os fatos históricos mostram-nos que sempre quis, de uma forma ou de outra, influenciar a região. Algo diferente é se ele foi capaz de fazer isso ou não. Se olharmos de relance, verificamos que, depois da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética tentou intervir na Pérsia (hoje Irã). Um império é, por sua própria natureza, expansionista. Depois, podemos definir a que tipo de expansionismo apela: territorial, controle direto, influência. Existem, logicamente, muitas variantes.

Ora, não ousaria dizer, por exemplo, que as formas de intervenção de Vladimir Putin na região (e particularmente na Síria) derivam da história do Império Russo. Embora seja evidente nas suas expressões uma marcada nostalgia daquele antigo passado imperial. A minha consideração é que o intervencionismo de Putin, em termos concretos, está ligado ao que aconteceu na região nos dez anos anteriores à sua entrada no jogo. E, nesse sentido, está ligado aos Estados Unidos. Havia, em grande medida, a sensação de que a Rússia tinha ficado enfraquecida após a queda da União Soviética e que os Estados Unidos tinham ganho demasiado terreno. A busca pela consideração global e pela respeitabilidade influenciou fortemente este novo processo de intervenção.

Há uma informação que creio não ser menor e que está ligada ao apoio russo à remoção de Gaddafi na Líbia. Após a deposição do ditador, a Rússia percebe que os seus interesses não melhoraram, mas foram prejudicados. De uma forma ou de outra, ela decide que o mundo e aquela região em particular deveriam prestar atenção nela. E começa a penetrar com mais força. Neste sentido, para além da sua história imperial, penso que, no caso da Rússia de Putin, as considerações temporais são muito importantes. A Rússia é sempre um gigante. Às vezes ele está dormindo. Agora, esse não parece ser o caso.

Post scriptum: a escalada

Não podemos deixar de lado, quando falamos do seu livro e do Oriente Médio, a atual ofensiva do Hamas contra Israel. O que explica esta ação que, pelas suas dimensões e características, surpreendeu as forças de segurança israelense? Por que isso aconteceu agora?

A atual ofensiva do Hamas pode ser explicada através de quatro pontos:

Ficou surpreso com a ação e com a capacidade tática militar do Hamas para realizá-la?

Não me surpreenderam porque se aprendi alguma coisa com o conflito entre israelenses e palestinos é que os períodos de “descanso”, sem resolução do conflito, serviram apenas para tornar o Hamas cada vez mais forte, mais preparado e mais surpreendente em atacar Israel.

Leia mais