“Rumo à presença plena”: novo documento vaticano reflete sobre o papel dos cristãos nos ambientes digitais

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30 Mai 2023

Rumo à presença plena: uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais” é o novo documento do Dicastério para a Comunicação do Vaticano. O texto aborda a promoção de relacionamentos pacíficos, significativos e atenciosos nos ambientes digitais, que sejam fruto de uma comunicação profunda e autêntica, e não meramente modelados por opiniões hostis, interações violentas e reações apaixonadas.

A opinião é de Moisés Sbardelotto, doutor em Comunicação e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), onde é pesquisador membro do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect).

Eis o texto.

“Rumo à presença plena” é o título do documento do Dicastério para a Comunicação publicado nessa segunda-feira, 29 de maio. Inspirado na parábola do Bom Samaritano, o novo texto apresenta uma reflexão pastoral sobre a participação de cristãs e cristãos nas redes sociais digitais e sobre o desafio de viver o “amor ao próximo” também nesses ambientes.

O documento é uma resposta ao fato de que “muitos cristãos pedem inspiração e orientação, uma vez que as redes sociais, que representam uma expressão da cultura digital, tiveram um impacto profundo quer nas nossas comunidades de fé, quer nas nossas jornadas espirituais individuais” (n. 2). A preocupação principal é “promover relacionamentos pacíficos, significativos e atenciosos” nos ambientes em rede, assim como “expressões digitais vivas e revigorantes” da fé, que sejam fruto de uma comunicação profunda e autêntica, e não “meramente modelados por opiniões inquestionáveis e reações apaixonadas” (n. 5).

(Foto: Dicastério para a Comunicação/Vaticano)

Trata-se da primeira publicação oficial do Dicastério para a Comunicação, após a reforma da Cúria Romana promovida pelo Papa Francisco a partir de 2015. É importante destacar que o último documento emitido pelo extinto Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais data de mais de 20 anos atrás. O texto atual é assinado conjuntamente por Paolo Ruffini, prefeito do Dicastério nomeado pelo Papa Francisco em 2018 e primeiro leigo a assumir a presidência de um órgão da Cúria Romana, e pelo Mons. Lucio A. Ruiz, secretário do dicastério.

As páginas do documento são o “resultado de uma reflexão que envolveu especialistas, professores, jovens profissionais e líderes, leigos, clérigos e religiosos” (n. 5). Tive a grata alegria de contribuir com esse processo significativamente sinodal ao longo de 2022, seja participando de alguns encontros online promovidos pelo Dicastério, com a presença de pessoas de diversas vivências eclesiais e provenientes de várias partes do mundo sobre os tópicos do texto, seja redigindo alguns parágrafos específicos que hoje fazem parte do documento final, assim como lendo uma primeira versão do texto na íntegra e sugerindo modificações. A partir dessa experiência, gostaria aqui de compartilhar algumas reflexões sobre alguns dos aspectos centrais de “Rumo à presença plena”.

Construir comunidade em um mundo fragmentado

O documento está dividido em quatro grandes partes, totalizando 82 parágrafos. Na primeira, reflete-se sobre a “Atenção às ciladas nas rodovias digitais”. Abordam-se os efeitos da digitalização, da revolução digital e do desenvolvimento da inteligência artificial, um processo que o documento reconhece que já vem ocorrendo ao longo das últimas três décadas, mas que foi acelerado pela pandemia (cf. n. 7).

Entre tais “ciladas”, destacam-se a desigualdade digital, que produz muitos excluídos e marginalizados do ponto de vista do acesso a tais tecnologias; a mercantilização dos ambientes digitais, em que os usuários são transformados em consumidores e, de consumidores, em produtos, a partir da comercialização de seus dados pessoais; a sobrecarga e o condicionamento das informações que chegam até nós, por meio dos algoritmos e da inteligência artificial, que geram “bolhas”; a “cultura do descarte digital”, através de expressões de indiferença, polarização e extremismo, dentre outras.

A segunda parte desenvolve o tema “Da consciência ao verdadeiro encontro” e afirma que a boa comunicação começa pela escuta e pela consciência de que há outra pessoa diante de mim. Nesses parágrafos, reflete-se sobre o papel da escuta e da consciência para fomentar o encontro e superar os impedimentos existentes. E isso envolve também uma dimensão espiritual, já que, “do prisma da fé, o que e como comunicar não é somente uma questão prática, mas também espiritual”. Daí a importância de um discernimento digital, ou seja, “um exercício de prudência e [...] uma ponderação orante sobre o modo como entrar em contato com os outros” (n. 41).

A terceira parte fala sobre o movimento que vai “Do encontro à comunidade”. Trata-se de uma seção central do texto. Como afirma o documento, definir-se “cristão” nas redes não é suficiente. Na internet, é possível encontrar muitos perfis ou contas em plataformas digitais que proclamam conteúdos religiosos, mas não constroem dinâmicas relacionais. Trata-se de interações hostis e palavras violentas e ofensivas que se manifestam inclusive no contexto da partilha de um conteúdo cristão, contradizendo o próprio Evangelho. “Quando grupos que se apresentam como ‘católicos’ usam sua presença nas redes sociais para fomentar a divisão, não se comportam como uma comunidade cristã deveria fazer” (n. 55).

De acordo com o documento, para formar comunidade, o trabalho de cura e reconciliação é muitas vezes o primeiro passo a ser dado. Em sua primeira mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 2014, Francisco já convidava a Igreja a uma “saída” rumo às “estradas digitais”, justamente pelo fato de estarem “congestionadas de humanidade, muitas vezes ferida”. Percebemos que muitas dessas feridas têm sido causadas por pessoas que se autodeclaram cristãs e católicas – seja pela violência física, como no caso dos abusos de diversas ordens, seja pela violência simbólica, por meio de discursos de ódio e preconceitos diversos.

Por fim, na quarta parte, o documento reflete sobre “Um estilo distintivo” que deveria marcar a comunicação cristã nos ambientes digitais. De acordo com o texto, comunicação não é simplesmente “estratégia”. É a nossa própria vida, é aquilo que somos, porque, como já diria Paulo Freire, somos aquilo que comunicamos: “Comunicamo-nos com nossa alma e com nosso corpo, com nossa mente, com nosso coração, com nossas mãos, com tudo” (n. 64).

Comungando do Pão da Vida, aprende-se um estilo de partilha para a comunicação cristã. Segundo o documento, esse estilo reflete-se em três atitudes: proximidade, compaixão e ternura, que, para o Papa Francisco, são características distintivas do próprio estilo de Deus para conosco. Jesus mesmo comunicou o Deus-Amor a nós não apenas mediante discursos, mas com todas as atitudes de sua vida, ofertando a si mesmo no amor. “Portanto, o modo como dizemos algo é tão importante quanto o que dizemos. Toda a criatividade consiste em garantir que o como corresponda ao quê. Em síntese, só nos poderemos comunicar bem se ‘amarmos bem’” (n. 65).

Comunicar para gerar comum-unidade

“A comunicação começa com a conexão e passa para os relacionamentos, a comunidade e a comunhão”, reitera o documento vaticano (n. 45). O que caracteriza uma presença plena nos ambientes digitais, portanto, é a capacidade de interagir, de se relacionar, de gerar uma comum-unidade. E, por sua vez, o que caracteriza uma comunidade é justamente o fato de ter algo em comum, de se pôr em comum o que se tem e o que se é (cf. “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, doc. 100 da CNBB, n. 169).

Ao se tornar comum, esse “algo” não é mais de propriedade nem do “eu” nem do “tu”, mas do “nós-outros” (Roberto Esposito). Portanto, muito além da mera proximidade geográfico-territorial ou étnico-cultural, o que constitui uma comunidade – na rede ou fora dela – é a experiência comum de pertença, reciprocidade, solidariedade, nos diversos ambientes da vida social.

Em seu sentido teológico-eclesial, a comunidade dos fiéis “torna presente a Igreja num determinado lugar”, por meio da comunhão-comunicação das pessoas entre si e delas com o Deus Trindade, que se realizam fundamentalmente pelo Batismo e pela Eucaristia (“Comunidade de comunidades”, nn. 169-170). A comunidade eclesial “é a Igreja que está onde as pessoas se encontram, independentemente dos vínculos de território, de moradia ou de pertença geográfica” (idem, n. 171). Inclusive, portanto, nos ambientes digitais. Afinal, o próprio Jesus deixou a seguinte promessa de presença real: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mateus 18,20). Não importa “onde”, mas sim reunir-se com as irmãos e os irmãos de fé, em nome de Jesus e com ele.

Mesmo quando territorialmente delimitada, como no caso de uma paróquia, uma comunidade é uma complexa rede de relações, que se tece em ambientes sociais diversos, voltados para a prática religioso-litúrgica, festiva, esportiva, cultural, formativa etc. Na experiência paroquial, pessoas de diferentes condições sociais, culturais ou econômicas podem se unir à comunidade, “sem exclusão ou elitismo”, sendo verdadeiramente “católica, isto é, aberta a todos e respeitando a diversidade de cada fiel” (“Comunidade de comunidades”, n. 176). Para isso, em todas as experiências comunitárias, “o importante é garantir (...) uma comunicação entre os membros da comunidade, de modo que traduza interesse e compromisso de amizade e fraternidade” (idem, n. 251).

A construção dessa comum-unidade, portanto, só existe por meio de práticas comunicativas, que tornam possível e mantêm no tempo e no espaço – e também para além deles – os vínculos sociais. Isso é verdade desde o início do cristianismo, por exemplo com São Paulo, que, em sua ausência, fazia-se presente na vida de cada comunidade por ele fundada por meio de suas cartas. Tais escritos serviam também para “interconectar” as diferentes comunidades (Colossenses 4,16). Para Paulo, não havia nenhuma dicotomia entre suas diversas formas de presença na comunidade, seja por meio de suas visitas, seja por meio de suas cartas (2Coríntios 10, 9-11; Tessalonicenses 2,5).

Lógica da integralidade

Com o passar do tempo, as redes digitais e particularmente a internet foram se deslocando cada vez mais da mera computação – a conexão de dados – para a comunicação – a conexão de pessoas. As relações sociais em ambientes digitais manifestam hoje uma mesma busca e necessidade de vínculo interpessoal – e também de vivência eclesial – em outros meios. Emergem, assim, formações comunitárias em rede que explicitam “outra forma de ser Igreja”, seja pelo reconhecimento de uma insuficiência das experiências comunitárias eclesiais existentes diante das novas demandas culturais contemporâneas, seja pela inexistência de ambientes comunitários eclesiais capazes de acolher e integrar as periferias geográficas, sociais e existenciais das culturas de hoje.

Nesse sentido, os ambientes digitais possibilitam a construção de novas modalidades de interação e vínculo social, interconectando múltiplos contextos sociais e oferecendo até espaços de participação sociopolítica e de cidadania ativa (cf. Christus vivit, n. 87). Mantém-se e reforça-se nas redes digitais um mesmo esforço de criar e manter o envolvimento comunitário, especialmente na fluidez e na instantaneidade dos contatos.

As mídias digitais permitem que as pessoas se encontrem para além das fronteiras de tempo e espaço e das próprias culturas. As relações comunitárias em redes digitais podem fortalecer as comunidades presenciais, e vice-versa. Por isso, hoje, em uma realidade cada vez mais onlife (Luciano Floridi), é preciso superar uma lógica “ou-ou”, que pensa as relações humanas a partir de uma perspectiva dicotômica (“digital” vs. “real-físico-presencial”) ou substitutiva (“o digital substituirá o presencial”).

Em vez disso, é preciso assumir uma lógica “e-e”, baseada na complementariedade e na integralidade da vida humana e social em suas diversas expressões: “Tudo está estreitamente interligado no mundo” (Laudato si’, n. 16). Assim, “o uso da social web é complementar ao encontro em carne e osso [...]. Se a rede for usada como prolongamento ou expectativa de tal encontro, então não trai a si mesma e permanece como um recurso para a comunhão”, afirmou Francisco em sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2019.

Para que isso seja possível, é preciso reconhecer que não existe comunidade humana formada por “números” ou meros “indivíduos”. Toda comunidade humana é constituída por pessoas que têm histórias, olhares, expectativas, sofrimentos. Em suma, um “rosto”, como refletia o papa em sua mensagem de 2019. O desafio diante disso é agir como Jesus no caminho de Emaús (Lc 24,13-35), que foi ao encontro daqueles discípulos no seu caminho e compartilhou com eles um trecho da estrada, reconhecendo o outro como um companheiro de viagem.

Em rede, portanto, não devemos apenas levar em conta as potencialidades oferecidas por cada ambiente ou plataforma digital, mas também e sobretudo as especificidades de cada pessoa interconectada e a concretude de sua vida, possibilitando a construção de relações humanas e sociais verdadeiras, apesar das distâncias e das diferenças. “O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças” (Fratelli tutti, n. 217).

Influência digital e estilo cristão em rede

O novo documento vaticano analisa ainda um fenômeno muito contemporâneo, que é a “influência digital”. O texto enfatiza que cada cristão é um influenciador, independentemente do número de seguidores nas plataformas digitais, e deveria estar ciente de sua influência potencial. A principal questão em jogo é que a responsabilidade cresce com o aumento da audiência: “Quanto maior o número de seguidores, tanto maior deveria ser nossa consciência de que não agimos em nosso próprio nome” (n. 74).

Porém – felizmente – a comunicação do Evangelho não depende apenas das qualidades do mensageiro (embora, como diz o ditado, “muito ajuda quem não atrapalha”). Nas palavras do documento, “seguindo a lógica do Evangelho, tudo o que devemos fazer é suscitar uma pergunta, para despertar a procura. O resto é a obra misteriosa de Deus” (n. 80). Como já dizia São Paulo VI na Evangelii nuntiandi, “as técnicas da evangelização são boas, obviamente; mas mesmo as mais aperfeiçoadas não poderiam substituir a ação discreta do Espírito Santo. Mesmo a preparação mais refinada do evangelizador nada faz sem Ele” (n. 75).

O documento vaticano enfatiza também que tudo o que fazemos, com palavras e ações, deveria trazer o sinal do testemunho. Evangelizar não é “vender um produto”, não é fazer publicidade, não é fazer proselitismo, mas sim comunicar a Vida encarnada na pessoa de Jesus, a quem seguimos e com quem convivemos. E, como cristãs e cristãos, seguimos a alguém que morreu pregado em uma Cruz, subvertendo qualquer glória mundana. “Não houve ‘curtidas’ e praticamente nenhum ‘seguidor’ no momento da maior manifestação da glória de Deus! Todas as medidas humanas de ‘sucesso’ são relativizadas pela lógica do Evangelho” (n. 79).

Em suma, para além do âmbito intraeclesial, a Igreja tem um papel muito relevante nos desdobramentos da digitalização e pode “pensar ainda mais alto”, contribuindo para humanizar a cultura digital existente. “Podemos ser propulsores de mudanças, imaginando novos modelos [digitais] alicerçados na confiança, transparência, igualdade e inclusão” (n. 58), para que a internet se torne um espaço verdadeiramente público e saudável para todas e todos.

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