Um estilo evangelizador: o horizonte eclesial da Evangelii gaudium

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04 Dezembro 2013

A “forma” da Evangelii gaudium está muito embebida em um ponto extremamente relevante da sua “substância” comunicativa: a tensão entre encontro, diálogo e anúncio. É um documento abrangente e programático para a vida eclesial neste período histórico. Uma exortação que traz a marca da colegialidade, da confiança na presença de Deus junto ao seu povo e da liberdade, diversidade, pluralidade e multiplicidade dos fiéis que se deixam conduzir pelo Espírito Santo e nele encontram a unidade, sem particularismos nem exclusivismos.

A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012).

Eis o texto.

Há poucos dias, o Papa Francisco publicou a carta de princípios do seu papado: um documento que “possui um significado programático e tem consequências importantes” (n. 25) para a Igreja. Trata-se da Exortação Apostólica Evangelii gaudium, a alegria do Evangelho. O documento é fruto da 13ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, que reuniu 170 bispos do mundo inteiro em Roma em outubro de 2012.

A Evangelii gaudium tem mais de 200 páginas e está dividida em cinco capítulos, além da introdução: 1) A transformação missionária da Igreja; 2) Na crise do compromisso comunitário; 3) O anúncio do Evangelho; 4) A dimensão social da Evangelização; e 5) Evangelizadores com espírito. No documento, Francisco recolhe “a riqueza dos trabalhos do Sínodo” para expressar “as preocupações que me movem neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja” (n. 16), especialmente em torno da ação missionária, “paradigma de toda a obra da Igreja” (n. 15). Nesse contexto, o documento convida a Igreja a avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, “que não pode deixar as coisas como estão” (n. 25).

Muito além dos conteúdos abordados – cujas reflexões e implementações demandarão um longo tempo por parte da Igreja – chamam a atenção a forma e a linguagem utilizadas pelo papa na exortação para falar sobre o anúncio do Evangelho. O papa sabe que “hoje os documentos não despertam o mesmo interesse que em outras épocas e são rapidamente esquecidos” (n. 25). Por isso, diante das “enormes e velozes” mudanças culturais, é preciso “tentar expressar as verdades de sempre em uma linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade” (n. 41). Por isso, se tudo na Igreja deve ser feito em chave missionária, “isso se aplica também à maneira de comunicar a mensagem” (n. 34) – começando pela própria Evangelii gaudium.

Forma e linguagem

Na Evangelii gaudium, essa maneira de comunicar envolve, primeiramente, um processo dialogal. Para escrever o texto, “consultei várias pessoas” (n. 16), afirma Francisco. E continua: “Não convém que o papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios” (n. 16). Aí desponta um elemento dialogal inovador do documento: ao longo do texto, o papa não apenas não quer substituir os episcopados, mas também busca dialogar com eles, citando vários documentos de outras Conferências Episcopais. Ou seja, o papa não fala sozinho, do alto de seu “trono de marfim”, mas sim na companhia dos bispos da América Latina (n. 15), da África (n. 62), da Ásia (n. 62), dos Estados Unidos (nn. 64, 220), da França (nn. 66, 174), da Oceania (nn. 27, 118), do Brasil (n. 191), das Filipinas (n. 215), do Congo (n. 230), da Índia (n. 250). Dizendo e fazendo ao mesmo tempo, Francisco avança “em uma salutar ‘descentralização’” da Igreja e do papado, pois “não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo” (n. 16).

Ao longo do texto, outros interlocutores de Francisco vão se destacando: os papas Bento XVI (citado 8 vezes), Paulo VI (5 vezes), João Paulo II (5 vezes) e João XXIII (uma vez); os santos Tomás de Aquino (4 vezes), Agostinho (2 vezes), João da Cruz (2 vezes), Francisco de Assis (2 vezes), Pedro Fabro (uma vez) e Juan Diego (uma vez); os evangelistas Mateus (26 vezes), João (25 vezes), Lucas (23 vezes) e Marcos (14 vezes); e o teólogo ítalo-alemão Romano Guardini (uma vez), sobre o qual o então padre Jorge Mario Bergoglio, nos anos 1980, começou uma tese de doutorado na Universidade de Filosofia e Teologia Sankt Georgen, em Frankfurt, na Alemanha.

Além do aspecto dialogal, Francisco convida a prestar “uma especial atenção à ‘via da beleza (via pulchritudinis)’” (n. 167). O papa afirma que o desafio do anúncio da fé hoje é comunicá-la em uma “nova linguagem parabólica”. “É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais” (n. 167). E aqui também Francisco é pródigo no dizer e no fazer por meio de novas parábolas e figuras de linguagem que ajudam a aprofundar a reflexão.

Apenas alguns exemplos:

  • “Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa” (n. 6).
  • “Um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral” (n. 10).
  • “Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível” (n. 44).
  • “A Eucaristia (...) não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (n. 47).
  • “Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante” (n. 47).
  • “A psicologia do túmulo (...) pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de museu” (n. 83).
  • "Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara de vinagre" (n. 85). 
  • “Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais!” (n. 97).

Apenas a título de curiosidade, ainda com relação à linguagem de Francisco, dentre as palavras mais usadas e repetidas no texto, destacam-se:

  1. Deus: 249 vezes
  2. Igreja: 208 vezes
  3. Vida: 205 vezes
  4. Jesus: 132 vezes
  5. Todos: 131 vezes
  6. Outros: 119 vezes
  7. Povo: 115 vezes
  8. Evangelho: 110 vezes
  9. Fé: 108 vezes
  10. Cristo: 103 vezes

Apenas pela repetição e centralidade desses termos já é possível entrever a visão da experiência e da comunidade cristãs que permeia o papado de Francisco.

Além disso, a “forma” do documento também está muito embebida em um ponto extremamente relevante da sua “substância” comunicativa: a tensão entre encontro, diálogo e anúncio. Queremos aqui repassar algumas especificidades de cada uma dessas realidades, segundo a Evangelii gaudium, para depois retomar o eixo tensionador existente entre elas.

Encontro

O documento nasce de uma reflexão sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, portanto, sobre o anúncio do Evangelho hoje. Mas Francisco destaca que tal anúncio só é possível quando surge de um encontro: “Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: ‘Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo’”. (n. 7). Esse é o “manancial da ação evangelizadora”, segundo Francisco. “Se alguém acolheu esse amor que lhe devolve o sentido da vida, como pode conter o desejo de comunicá-lo aos outros?” (n. 8).

Portanto, seja na sua origem, seja também no seu desdobrar-se, a ação evangelizadora mantém seu vigor nesse encontro: não se trata de uma “heroica tarefa pessoal”, ou seja, solitária, mas sim de uma “obra de Deus”, um anúncio que nasce e se mantém como encontro com esse grande “Outro”. “Jesus é ‘o primeiro e o maior evangelizador’. Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus” (n. 12). E Deus é sempre um “Outro” que nos surpreende, que se manifesta pela “liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas” (n. 22).

Por outro lado, o anúncio do Evangelho se faz sempre no encontro com os diversos “outros”, pois, de acordo com o papa, todo o povo de Deus anuncia o Evangelho. Francisco deseja uma “Igreja ‘em saída’”, que vá ao encontro dos diversos “outros”, pois “ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus nos atrai, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe” (n. 113).

Dentro dessa trama de relações, três “outros” principais ganham seu destaque no horizonte de Francisco expresso na Evangelii gaudium. Em primeiro lugar, o pobre. Diz o papa: “Hoje e sempre, ‘os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho’, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!” (n. 48). “Por isso – continua o papa, repetindo sua frase já célebre  –, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar” (n. 198). Embora nem sempre os cristãos conseguem manifestar a beleza do Evangelho, “há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e joga fora” (n. 195). E mais: “É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja” (n. 198).

Dentro desse contexto, ganham ainda mais força as duras palavras do pontífice contra o atual sistema econômico, “injusto na sua raiz” (n. 59), que gera uma “economia da exclusão e da desigualdade social que “mata” (n. 53). A partir dele, fera-se um sistema em que o ser humano passa a ser considerado como “um bem de consumo que se pode usar e depois jogar fora” (n. 53). Assim tem início uma “cultura do descartável”, que não envolve mais apenas exploração e opressão, mas também exclusão. E “os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (n. 53). Por isso, “o dinheiro deve servir, e não governar!” (n. 58).

Um segundo “outro” é a mulher. As mulheres, segundo Francisco, são “duplamente pobres”, ao padecer “situações de exclusão, maus tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos” (n. 212). Por sua parte, “a Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres do que dos homens (...) Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja”, inclusive “nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais” (n. 103).

Por fim, um terceiro “outro” são os migrantes. Junto com os “sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados”, os migrantes “representam um desafio especial para mim – afirma Francisco –, por ser Pastor de uma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos” (n. 210). O papa exorta as comunidades a uma “abertura generosa”, sem medo de que suas identidades locais sejam destruídas, mas capazes de valorizar a criação de “novas sínteses culturais”. Superando a “desconfiança doentia”, a integração dos que são diferentes pode se tornar “um novo fator de progresso” (n. 210).

Em suma, para Francisco, é preciso aprender a “aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir” (n. 250). Aceitar a alteridade na sua diferença. Para que esse encontro com os outros seja sadio e nos cure, em vez de nos adoecer, ele precisa ser vivido como “fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do próximo” (n. 92). “O amor autêntico – reflete o papa – é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência” (n. 199).

Diálogo

Para Francisco, o diálogo “é muito mais do que a comunicação de uma verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão no diálogo” (n. 142). Por isso, em um anúncio “respeitoso e amável” do Evangelho, o papa afirma que “o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois dessa conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra” (n. 128).

Francisco também destaca duas grandes modalidades de diálogo. Um primeiro diálogo necessário é intraeclesial. Como exemplo concreto e até mesmo litúrgico, o papa faz uma longa reflexão sobre a homilia (nn. 135-159), que é justamente uma retomada do “diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o seu povo” (n. 137). Para o papa, a pregação de todo discípulo missionário deve partir primeiramente da vivência pessoal de diálogo com o Senhor: “Quem quiser pregar, deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua vida concreta” (n. 150).

E também é preciso preparação, pois “um pregador que não se prepara não é ‘espiritual’: é desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu” (n. 145). Essa preparação começa na escuta. A “arte de escutar (...) é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual” (n. 171). Por isso, o pregador deve pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. “Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo” (n. 154).

Outro diálogo essencial é extraeclesial, pois “o compromisso evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias” (n 45). “Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura – afirma Francisco –, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra ‘a beleza deste rosto pluriforme’” (n. 116). A cultura e os diferentes povos, portanto, como um grande interlocutor da comunidade cristã, também “são sujeitos coletivos ativos, agentes da evangelização” (n. 122).

Nesse sentido, a diversidade cultural é um dom e “não ameaça a unidade da Igreja” (n. 117), pois “uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (n. 118). Por isso, Francisco critica aqueles que “sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos”, pois a variedade “ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho” (n. 40). “A expressão da verdade pode ser multiforme”, relembra Francisco, citando João Paulo II. “Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adotadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão de uma cultura” (n. 118). Daí a importância da evangelização entendida como inculturação: “Pode-se dizer que ‘o povo se evangeliza continuamente a si mesmo’” (n. 122).

Em suma, Francisco quer uma Igreja “em saída”, uma Igreja com as portas abertas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas” (n. 47), abertas aos diversos “outros” do mundo. E a verdadeira abertura, segundo o papa, é “conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas ‘disponível para compreender as do outro’ e ‘sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos’” (n. 251).

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Para além do encontro e do diálogo, os cristãos têm o dever de anunciar o Evangelho “sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’” (n. 14). Por outro lado, também, “todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente” (n. 121), pois “a Igreja não evangeliza se não se deixa continuamente evangelizar” (n. 174).

E evangelizar é “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (n. 176), é “amar a Deus, que reina no mundo” (n. 180).

Nesse sentido, do ponto de vista da evangelização, afirma Francisco, “não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração” (n. 262). O anúncio do Evangelho leva ao “amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre” (n. 194), como Jesus ensinou. “Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais” (n. 180).

O anúncio, portanto, por assim dizer, deve ser encarnado, pois “as obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito”. E, com relação ao agir exterior, “a misericórdia é a maior de todas as virtudes” (n. 37).

Estilo evangelizador

Depois de delinear, enfim, um horizonte bastante amplo da ação evangelizadora da Igreja, o papa reconhece os limites e os riscos possíveis ao se tentar encarnar o “estilo evangelizador” (n. 18) em todas as atividades da Igreja. Mas Francisco não aceita desculpas esfarrapadas diante dos desafios da evangelização: “A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cômodo critério pastoral: ‘sempre se fez assim’” (n. 33). “A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade e para continuar crescendo” (n. 121). “Não digamos que hoje é mais difícil. É diferente” (n. 263).

Também é preciso abandonar os sonhos com “planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados” (n. 96). O importante é tentar, é o que o papa parece dizer. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (n. 49).

E a própria história de Igreja “é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é ‘suor do nosso rosto’” (n. 96). Por isso, a ação evangelizadora, na sua tensão encontro-diálogo-anúncio, é tentativa: “O abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal” (n. 244). Entretanto, “se eu consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida” (n. 274).

No fundo, o verdadeiro sonho de Francisco é “com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal adequado para a evangelização do mundo atual mais do que à autopreservação” (n. 27). Para isso, é preciso “acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto” (n. 288), como fez Maria, “Mãe da Igreja evangelizadora”, que soube até “transformar um curral de animais na casa de Jesus” (n. 286). Mas essa força não surge por causa dos nossos esforços pessoais. Essa força vem do Espírito Santo: só ele pode “renovar, sacudir, impelir a Igreja em uma decidida saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos” (n. 261).

A Evangelii gaudium, sem dúvida, é um documento abrangente e programático para a vida eclesial neste período histórico. Uma exortação que traz a marca da colegialidade – não retórica, mas narrada vivencialmente –, da confiança na presença de Deus junto ao seu povo e da liberdade, diversidade, pluralidade e multiplicidade dos fiéis que se deixam conduzir pelo Espírito Santo e nele encontram a unidade, sem particularismos nem exclusivismos (cf. n. 131).

A esperança sincera é de que essas palavras também se façam carne no meio de nós, para a alegria do mundo.

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