Ainda não somos cristãos. Entrevista com Jean-Luc Marion

19 Dezembro 2022

Jean-Luc Marion é professor emérito de Filosofia na Sorbonne e professor aposentado de Estudos Católicos, Filosofia das Religiões e Teologia na Universidade de Chicago. Ao longo dos últimos 28 anos, ele dividiu seu tempo entre Chicago e Paris, onde também lecionou no Institut Catholique.

Ele é conhecido por suas contribuições à filosofia moderna, especialmente à fenomenologia, e à teologia, incluindo o estudo sobre os primeiros Padres da Igreja. Em 2021, Marion recebeu o Prêmio Joseph Ratzinger por suas contribuições à teologia. É membro da Académie Française (eleito em 2008, recebido como imortal em 2010), do Pontifício Conselho para a Cultura e da Accademia dei Lincei em Roma.

Entre seus inúmeros prêmios, estão o Grand Prix de Philosophie de l’Académie Française, o Prêmio Karl-Jaspers da cidade e da universidade de Heidelberg e o Prêmio Humboldt-Stiftung. Entre seus livros em inglês estão: “Givenness and Revelation” (fruto das Gifford Lectures de 2014), “God Without Being”, “The Erotic Phenomenon”, “Negative Certainties”, “Believing in Order to See” e “The Rigor of Things”.

A entrevista a seguir ocorreu diante do público presente no Instituto Lumen Christi da Universidade de Chicago.

A reportagem é de Kenneth L. Woodward, publicada em Commonweal, 12-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Professor Marion, como você sabe, houve comentários consideráveis ao longo dos anos sobre a sua “virada para a teologia” a partir da filosofia. Mas me parece que você sempre teve um profundo interesse pela teologia, desde seus tempos de estudante em Paris. Na época, você tinha acesso regular a uma comunidade informal de estudiosos, que incluía grandes teólogos franceses como Henri de Lubac, Yves Congar e Louis Bouyer, cujas obras foram tão fundamentais para o Vaticano II. Você também era uma espécie de jornalista estudante. Como foi trabalhar tão jovem com aquelas figuras imponentes?

Bem, aqui está o pano de fundo. Em 1967, eu fui admitido na École Normale Supérieure em uma concorrência muito dura – pouco antes dos protestos estudantis e de todas as outras turbulências políticas e sociais de 1968. Intelectualmente, o futuro da sociedade estava sendo completamente reformulado, um futuro sem cristianismo. Eu decidi me focar na filosofia, e a escolha era se, como outros estudantes cristãos, eu deveria salvar a minha alma, por assim dizer, por meio da psicanálise de Jacques Lacan, do desconstrucionismo de Jacques Derrida e do marxismo estruturalista de Louis Althusser. Todos eles estavam lecionando na época, e por isso era fácil acompanhá-los. Eu fiz um caminho diferente.

Qual?

Havia um grupo de estudantes da Sorbonne que adorava discussões. Estávamos determinados a ser tão bons quanto todos os outros no domínio de nossas disciplinas, mas, ao mesmo tempo, também estávamos determinados a adquirir um conhecimento mais profundo da tradição cristã. Então, desde o início, fizemos uma carga dupla de disciplinas.

Disciplinas duplas na Sorbonne?

Não, recebíamos instrução privada e não por notas como um grupo informal de estudantes na Basílica de Montmartre, primeiro com Jean Daniélou, antes de ele se tornar cardeal, depois com o Pe. Louis Bouyer, o grande liturgista e convertido luterano, e depois com o jesuíta Henri de Lubac. Sob a orientação deles, também produzimos uma publicação acadêmica chamada Resurrection. Cinco anos depois, fomos convidados a fazer parte da edição francesa da Communio, o que significou que pudemos estudar com Hans Urs von Balthasar, que dava seminários em sua casa na Suíça antes de produzir cada edição.

Muitos filósofos disseram que é necessária uma certa atitude para filosofar. Por exemplo, o neotomista Josef Pieper dizia que um filósofo precisa ter um senso de admiração. O rabino Abraham Joshua Heschel dizia que é necessário um “estupor radical”. Você disse que a capacidade de se admirar é essencial. O que você quer dizer com admiração?

Boa pergunta. Se me permite ser um pouco polêmico, eu diria que o maior fracasso possível para um filósofo profissional é nunca se surpreender. E muitos filósofos estão nessa situação. Eles filosofam usando um conjunto de conceitos ou instrumentos que os protegem contra o encontro com qualquer coisa nova. Eles têm meios suficientes para fazer com que qualquer pergunta leve a uma resposta (pré-determinada) ou até mesmo desapareça. Mas a minha experiência com a filosofia – e é por isso que pessoas como Descartes ou Heidegger foram tão importantes – é que a filosofia começa quando você tem esse dom de fazer uma pergunta que resiste a uma resposta. Por “resposta”, eu me refiro àquela que se baseia naquilo que era conhecido antes da pergunta ser feita. Uma nova questão abre uma nova paisagem pela qual você não pode caminhar a menos que compre um novo par de sapatos.

Então, para filosofar, você tem que se adaptar à pergunta?

Sim, um grande filósofo é alguém que decidiu modificar um conjunto de conceitos a fim de enfrentar a questão e não extingui-la imediatamente. Muitos filósofos são bombeiros: há um incêndio, eles correm para dentro dele para apagá-lo. Em filosofia, eu digo aos meus estudantes: se você ler um livro que você entende bem, largue-o. Você poderia ter escrito aquele livro. Se você lê um livro que não entende, mas acha que há algo ali, mantenha-o aberto. Leia apenas livros que você não entende. E, depois de algum tempo, pelo menos você entenderá o que não entende e por que não entende. E então você começará a filosofar.

Eu tenho feito exatamente isso nas últimas semanas, lendo seus próprios livros pela primeira vez. Você mencionou que, quando era estudante, teve uma extraordinária experiência enquanto caminhava pelos jardins de Luxemburgo.

É verdade.

Como você descreveria essa experiência e seu impacto? Foi um estupor, uma iluminação repentina ou uma intuição?

Bem, não foi uma experiência espiritual. Foi uma experiência intelectual muito direta. No Jardin du Luxembourg, há belas árvores, há pessoas encantadoras, há poças de água. Percebi que o fato de que coisas como árvores, pessoas e poças d’água “são”, no entendimento comum, não é a característica mais importante das coisas. O importante é o que as coisas “significam”. Depois de chegar à conclusão de que uma coisa existe, e agora? E assim é com Deus. Não é uma grande coisa dizer que Deus existe. A questão é como, por que e o que isso significa para mim. E o que isso significa para Deus. Essas questões são muito mais importantes, muito mais difíceis de entender e muito mais surpreendentes.

Como você descreveria sua relação com os extraordinários filósofos franceses de sua geração – estou pensando em Gilles Deleuze e nos já mencionados Althusser, Lacan e Derrida? Como católico, você já se sentiu um estranho nesse grupo?

Foi algo estranho. Eu nunca me senti um intruso. Nos círculos intelectuais – pelo menos naquele momento –, desde que você conhecesse as coisas e pudesse argumentar, você era aceito, assim como muitos de meus amigos católicos. Não havia dúvida: se você conhecesse Martin Heidegger em algum ponto melhor do que Derrida, eles discutiriam isso com você. Muitos deles haviam sido criados como católicos, como Althusser e Deleuze, que era absolutamente brilhante. Lembro-me de conversar com Deleuze quando ele estava morrendo, porque fumava demais. Debatemos sobre o meu livro, “God Without Being”, e ele quis saber como eu conseguia permanecer com o catolicismo quando ele não conseguia. Mais tarde, ele cometeu suicídio.

God Without Being” foi o primeiro de seus livros a ser traduzido para o inglês. Você poderia dizer algo sobre suas objeções teológicas à metafísica do ser?

Sejamos claros, esse livro foi escrito contra Heidegger, e não contra Tomás de Aquino. Contra Heidegger, porque ele insistia que a questão do ser é a questão mais importante da filosofia, não a questão de Deus. E, enquanto não conseguirmos encontrar uma nova abordagem ao ser, as possibilidades de novas interrogações sobre Deus estão fechadas. Meu ponto é que Deus não se limita a ser. A questão de Deus é original em si mesma. Assim, tive de investigar a visão tradicional de que a existência de Deus é demonstrada pela metafísica – isto é, pela teologia racional ou ontologia amplamente entendida. Isso significava que eu tinha de enfrentar Aquino. Mas quero enfatizar que não me oponho a questões metafísicas, se por “questão metafísica” entendermos uma questão sobre as maiores propriedades das coisas. Aliás, é justamente para reabrir essas questões que eu faço filosofia e fenomenologia. Eu comecei modestamente, não como filósofo, mas como historiador da filosofia. E o que eu descobri é que o mundo da metafísica não se impunha à linguagem filosófica antes de Aquino. E até mesmo ele tinha muitas reservas quanto a isso. Depois de Aquino, a metafísica dominou a filosofia até Hegel.

Você diria que o domínio da metafísica foi, de certa forma, responsável pelo ateísmo moderno?

Estou convencido disso, porque a metafísica foi muito poderosa, bem-sucedida e duradoura. É um sistema de conceitos a priori como ser, substância, lógica formal e assim por diante, que permite que você tenha uma resposta potencial para qualquer pergunta com antecedência. Dessa forma, Deus é entendido como um caso especial de ser... um ser excepcional.

O ser supremo.

Sim, Deus devia ser entendido usando um conceito que pudesse ser aplicado com reservas a todos os outros seres. Assim, desde Tomás de Aquino até o fim do século XVII, era fácil para a teologia cristã ser aceita nas universidades e provar a existência de Deus, porque a metafísica do ser fazia parte de um quadro e de uma estrutura gerais da filosofia.

E depois disso?

Os críticos do cristianismo acharam fácil dizer, negativamente, que esse Deus alcançado pela teologia racional não é de forma alguma o Deus em que os cristãos acreditam. E, fazendo o mesmo argumento positivamente, houve outros pensadores, de Pascal aos modernos, como Kierkegaard, que insistiam que o Deus do cristianismo era muito mais do que o Deus da filosofia.

Então, ao separar a questão de Deus do ser, você de fato libertou a compreensão cristã de Deus de ser Deus.

Não, de ser o que a mente humana, sem revelação, assume como óbvio que Deus é. A maioria de nós tem uma espécie de ideia espontânea do divino, baseada em alguma experiência natural. Isso é bom, até onde é possível. Mas o cristianismo nada mais é do que o evento-Cristo, um evento que vem de outro lugar. Não pode caber exatamente naquilo que se esperava. Assim, o Deus cristão, para ser cristão, deveria ser diferente de qualquer outra representação “de segunda mão” de Deus. Quando você tem uma compreensão prévia do que Deus deveria ser, a tentação é comparar Cristo com essa representação prévia.

O que nos leva a outro de seus livros, “Believing in Order to See”. Você aprecia muito o paradoxo, ou pelo menos as inversões, e esse título é um bom exemplo disso. Você escreve que “é possível perder a fé, mas não porque se ganha em razão”. Na verdade, você argumenta que o inverso é verdadeiro: ou seja, que ao perder a fé estamos, na realidade, perdendo a razão. Como você explica esses aparentes paradoxos?

Um paradoxo é apenas a formulação correta de uma questão que você não entende, e a resposta para ela é algo que você não poderia esperar. Eu acho que, em qualquer ciência, os paradoxos são cruciais. Quando não há nenhum paradoxo, não há nenhuma melhoria possível no conhecimento. Portanto, a questão é como você entra no paradoxo e como sai dele. Mas, se não há paradoxo, não há nada a dizer.

Em que você precisa acreditar antes de conseguir ver?

A própria formulação, crer para ver, vem da tradução mais antiga da Bíblia grega. Significa que, se você não acreditar, você não entenderá. Por quê? Mesmo com um problema metodológico, você tem que acreditar que o problema está expressado corretamente no momento em que você é solicitado a dar uma solução para o problema. Você tem que acreditar ou confiar que o problema não é um absurdo. Portanto, você não pode enfrentar uma questão sem alguma confiança de que a questão é significativa.

Como isso se relaciona com a questão de Deus?

Ao lidar com Deus, você não pode esperar entender – mesmo que parcialmente – o que está acontecendo em um texto ou em um evento se você não admitir que Deus está realmente envolvido naquele texto ou naquele evento. Caso contrário, você não tem nenhuma razão para entender o que está acontecendo em um evento ou em um texto.

O que significa “ter razão”?

Vou ser muito aristotélico aqui. Aristóteles diz que o nível de racionalidade que se pode esperar de uma questão é estabelecido pela própria questão. Quando você está tentando entender algo que encontra com seus sentidos, sua racionalidade tem a ver com dados sensíveis. Em questões mais abstratas, a racionalidade será mais abstrata. A racionalidade tem que ser adequada ao nível de abstração.

Dê-me um exemplo concreto.

Por exemplo, em relacionamentos pessoais – amizades, amor e assuntos do coração – você está comprometido com uma racionalidade muito específica. Existem diferentes passos que você não pode evitar ou, se o fizer, tudo estará perdido. Então, no caso de relacionamentos pessoais, você deve estar envolvido na relação se quiser conhecimento. Se você não confiar, se não admitir que está comprometido com aquela pessoa, se quiser permanecer neutro, simplesmente não haverá nenhum entendimento do encontro. Portanto, sua , sua confiança, seu compromisso – como quiser chamá-lo – faz parte da interpretação racional de qualquer fenômeno. A fé não é tomar como certo algo que não é real. É admitir que, sem alguma confiança, não conseguirei entrar na trama.

Você também aponta para a natureza paradoxal das Bem-aventuranças e de muitos outros ditos de Jesus. Nesses casos, o paradoxo é que não podemos transformá-los em um código moral, muito menos em uma sociologia. Então, o que devemos fazer com eles?

Parte do poder desses paradoxos é que não podemos fazer muito com eles. É como se Jesus estivesse nos mostrando o quanto sua maneira de pensar Deus difere da nossa. E é assim que o Pai pensa. Mas está além do nosso alcance. O ponto do paradoxo é deixar claro que todos nós temos um longo caminho a percorrer. Ainda não somos cristãos.

Você diz algo semelhante sobre os milagres. Você escreve sobre os milagres do modo como os encontramos nos evangelhos que “eles nos oferecem os exemplos mais puros de doação fenomenológica”. Muitas pessoas têm dificuldade em acreditar em milagres. No entanto, você não.

Bem, com uma pergunta como essa, você tem que ir primeiro à história da filosofia e desconstruí-la um pouco. A concepção dos milagres é um conceito muito moderno. Os milagres foram descobertos, por assim dizer, no século XVII, não apenas entre filósofos ingleses como Locke e Hume, mas também muitos na França. Durante esse período, para ter um milagre, você tinha que ter duas condições. Primeiro, que existem regras ou leis da natureza que são universais e inquebráveis – sem exceções. Segundo, que um milagre é uma exceção às regras da natureza.

Então os milagres eram, por definição, irracionais.

Sim. Durante o Iluminismo na França, havia até pensadores católicos como Nicolas Malebranche que explicavam os milagres dizendo que, no passado, Deus produzia milagres porque as pessoas eram tão estúpidas que Deus tinha que impressioná-las com truques. Mas agora que somos racionais, não há necessidade de milagres.

O que há de diferente agora?

Hoje, não temos mais tais leis da natureza. Temos apenas teorias concorrentes na física fundamental e assim por diante, mas nenhuma regra unificada.

Mas também temos estatísticas que implicam certas regularidades na natureza, não?

As estatísticas nos dão interpretações aproximadas das leis da natureza, e não leis que sejam absolutamente certas. Mesmo na filosofia, eu não conheço nenhum filósofo sério hoje que endosse a posição de que existem conceitos a priori como as leis da natureza. Certamente não na fenomenologia, e não na filosofia analítica, desde o fim do positivismo lógico, outrora tão dominante aqui na Universidade de Chicago.

Então, onde fica a questão dos milagres?

Em nossa sociedade pós-moderna, eu diria que um milagre é algo que aparentemente contradiz o que supomos ser provavelmente a regra. De fato, a categoria dos milagres pode ser usada, independentemente da religião, para qualquer coisa que seja excepcional, inesperada ou inexplicável, mas que, mesmo assim, faça sentido e seja confiável para as pessoas. É simplesmente um certo tipo daquilo que eu chamo de “evento”, um certo tipo de fenômeno.

Quero abordar outro ponto importante de suas reflexões teológicas. Entre os muitos nomes de Deus, você deu prioridade ao amor, ou ágape, sobre outros nomes como infinito, verdade ou bondade. Além disso, você afirma que “nem a Torá, nem a literatura sapiencial, nem os Evangelhos sinóticos arriscam isso”. E você continua argumentando que “a revelação do amor como o nome final de Deus representou precisamente aquilo que os contemporâneos de Cristo puderam ouvir e não quiseram”. É uma afirmação poderosa. Por que isso?

Porque eu acho que os judeus contemporâneos de Cristo que eram os mais observantes – refiro-me àqueles que frequentavam o templo, os fariseus, e até mesmo as classes mais baixas do povo judeu – eram obcecados pelo fato de serem filhos de Abraão, de terem a Torá e a promessa da terra. Para muitos deles, essa era a revelação de seu Deus. E é por isso que eles também estavam obcecados pelo restabelecimento do reino de Deus em Israel. É claro, agora sabemos pelos biblistas que o amor de Deus já faz parte do Primeiro Testamento de várias maneiras, mas não é o ponto crucial.

E no Novo ou Segundo Testamento?

Sim, é claro que o amor de Deus é uma parte importante do Novo Testamento, mas é somente na Carta de João (1João 4) que Deus é chamado de ágape, ou amor.

Existem muitos outros nomes de Deus. Por que escolher o amor?

Bem, primeiro, muito cedo eu estudei a chamada teologia negativa de Dionísio e outros, e aprendi que a primeira coisa a dizer é que não há nenhum nome para Deus. Todos os nomes são apenas analógicos. E, mais tarde, quando comecei meus estudos sobre os nomes de Deus, descobri que, em Dionísio, em Justino, em Orígenes, em Gregório de Nissa, Deus é chamado de eros, e que a oposição entre eros e ágape, por exemplo, é apenas uma fabricação. Também fiquei impressionado ao descobrir que Aquino foi o primeiro a dizer que o primeiro nome de Deus é ser, como em Êxodo 3,14. Mas, nos mesmos anos em que Tomás de Aquino fazia esse importante movimento, Boaventura fugia da ordem tradicional dos nomes de Deus e dizia que o primeiro é ágape. Eu prestei atenção nisso. Certa vez, dei uma palestra sobre “God Without Being” em Roma, em uma época em que a minha posição não era bem recebida entre as universidades pontifícias, para dizer o mínimo. Em um jantar posterior, um cardeal amigo da Congregação para a Doutrina da Fé me disse: “Se eu o entendi bem, você é boaventuriano”. Foi uma maneira muito polida de dizer: “Você não é tomista”.

Se um estudante for ao seu encontro e lhe disser: “Professor Marion, por que eu devo estudar teologia?”, o que você diz a ele?

Porque é divertido! É o campo de pesquisa mais empolgante, porque abrange tudo. Entre as disciplinas seculares, a filosofia é a mais poderosa, a mais empolgante, a mais difícil. Mas, na teologia, você está falando de tudo: arte, por exemplo, e literatura – tudo. Na teologia, você pode até menosprezar, por assim dizer, a filosofia, que pode se tornar um pouco tacanha de vez em quando.

Então, há um dom que a teologia, pelo menos a teologia cristã, pode dar à filosofia?

Ah, sim. Até mesmo Heidegger teve uma intuição sobre isso quando disse: “Só um Deus pode nos salvar”, referindo-se a nós, filósofos. Eu não considero isso como evidente. A filosofia pode desaparecer. Isso já aconteceu com outras disciplinas no passado e pode acontecer de novo. Talvez ela seja salva pela literatura, talvez pela teologia.

Vamos voltar para a Igreja e salvá-la... Você disse que o catolicismo francês foi tentado por duas “heresias”: o integralismo e o progressismo.

Sim, nós, franceses, fornecemos algumas das melhores heresias do século XX...

Nos Estados Unidos, temos nossos próprios integralistas e progressistas entre os bispos, o clero e os leigos, nas mídias e nos movimentos católicos. Que conselho você daria para os católicos de cada facção?

O mesmo conselho que eu tentei dar aos católicos franceses: não prestem muita atenção na Igreja como organização. Quer dizer, a Igreja não é a Cidade de Deus, não é nem mesmo nosso campo de treinamento na terra. É o lugar onde somos chamados a tentar nos comportar como cristãos.

O que deveríamos esperar?

A questão mais séria é a organização de cada um de nós. Se você quer fazer algo para reformar a Igreja, comece reformando a si mesmo, e talvez haja algumas consequências para a Igreja. Todos nós sabemos o que está acontecendo de errado na Igreja Católica. Para nós, não é nenhuma novidade. Eu não poderia imaginar que a Igreja não tem pecadores. O surpreendente não é que haja pecado na Igreja – até mesmo em nível sistêmico como efeito, como dizem, do clericalismo e do abuso de poder. O surpreendente é que a Igreja continue sendo a melhor máquina de lavar linho sujo e oferecer linho branco. Ou seja, produzir alguns santos, alguma santidade.

Outro francês, Léon Bloy, declarou de forma célebre que só existe uma tristeza, ou seja, que não somos santos.

Sim, e no nível puramente institucional, quando você compara as Igrejas com o mundo acadêmico, o mundo dos negócios, os militares e as administrações políticas, as Igrejas não são os piores lugares. No mundo dos negócios, por exemplo, as pessoas dizem: “É claro que existe corrupção”. Sabemos que os negócios são sujos e estamos acostumados com isso. Não há nenhum escândalo nisso. No caso da Igreja – felizmente – a contradição entre o que as Igrejas são e o que deveriam ser é um escândalo. Mas, para ser justo, devemos admitir que cada um de nós está na mesma situação que a Igreja, porque contradizemos aquilo que dizemos em nossos comportamentos. Então, sim, a Igreja não é perfeita e nunca será. É por isso que posso ser membro da Igreja. E é também por isso que os autoproclamados santos que assumem o papel de reformadores são sempre um tanto suspeitos para mim.

Você disse algumas coisas bem pungentes sobre os reformadores da Igreja. Você exortou os católicos franceses a “deixarem a reforma eclesiástica para os trabalhadores especializados em consertos domésticos”, o que pode ser um pouco difícil agora que os leigos estão sendo chamados a emprestar sua expertise aos ministérios da Igreja.

E eles estão fazendo um bom trabalho, especialmente as mulheres em nível paroquial.

Concordo, mas vamos voltar aos reformadores da Igreja. Você desconfia dos cristãos que afirmam falar profeticamente à Igreja ou à sociedade. Sua cautela parece apropriada, porque, na vida pública estadunidense e em nossas igrejas, tendemos a colocar o manto de profeta em torno de qualquer um que fale sobre os males sociais – mas apenas aqueles com quem já concordamos. Por outro lado, testemunhamos um Martin Luther King, uma Dorothy Day e um punhado de outras figuras genuinamente proféticas. Como você distingue o profeta autêntico e o farsante?

Em primeiro lugar, não estou qualificado para distinguir os profetas – nesse caso, eu mesmo diria que sou um profeta! Em segundo lugar, leva tempo para julgar se alguém é realmente um profeta. Qual é o seu legado? A história é instrutiva. Os grandes originadores ou reformadores da Igreja são sempre pessoas que, em princípio, não eram bem recebidas, como muitos dos fundadores de ordens religiosas. Também é verdade para os originadores na filosofia. Leva anos para julgar o impacto. Você julga pelos resultados, e eu acho que não há outras regras.

Você escreve que os cristãos deveriam viver uma ética diferente, especificamente, a ética embebida nas palavras de Jesus no Jardim do Getsêmani: “Pai, não seja feita a minha vontade, mas sim a tua”. Isso parece impossível de alcançar ou mesmo de tentar em uma cultura construída econômica, psicológica e prescritivamente sobre indivíduos obstinados. Em tal cultura, como se aprende a fazer a vontade do Pai?

Por que a nossa sociedade é regida em muitos níveis pela obsessão de cada indivíduo em realizar sua própria vontade, sua própria autocriação ou projeto? Na verdade, esse é um efeito daquilo que Nietzsche descreveu muito bem como der Wille zur Macht. Isso geralmente é traduzido como “vontade de poder”, mas o significado mais preciso é “querer por querer”. E é isso que vemos hoje.

Isso é realmente novo?

Acho que sim. No passado, as pessoas queriam ganhar dinheiro para poder gastá-lo em coisas que precisavam ou desejavam. Agora, queremos ganhar cada vez mais dinheiro para quê? Não sabemos. É como nos negócios: as empresas precisam crescer cada vez mais. Por quê? Só porque é assim que funciona. E isso pode continuar indefinidamente, porque não há nenhuma meta. Encontramo-nos na terrível situação de estarmos presos na prisão da autoafirmação.

Alguns diriam que é a prisão da autocriação.

A criação não é algo que vem do criador. A criação é algo que vem sobre o criador. O criador, o artista, é o primeiro a se surpreender com o que aconteceu. Assim, Mozart ou Tintoretto não tinham nenhuma ambição de autoafirmação. Estavam surpresos com as coisas que podiam fazer.

Então, querer simplesmente por querer é...

É niilismo. E Jesus é quem diz que eu nunca faço a minha vontade. Quando eu falo, não são as minhas palavras. O que é muito estranho para nós, porque ser sincero, assumimos, é expressar os próprios pensamentos, as próprias palavras. Jesus, no entanto, diz que você pode confiar em mim, porque eu nunca digo o que penso, mas apenas o que o Pai pensa. Mas o que é realmente extraordinário é que Jesus é capaz de fazer a vontade de alguém que não é ele mesmo. Essa é a coisa mais difícil que podemos fazer.

E qual é a mensagem para os cristãos contemporâneos?

Eu diria que a capacidade de abrir mão da própria vontade é uma força muito grande para os cristãos. Enquanto eles desejarem apenas alcançar seus próprios objetivos, eles realmente não serão diferentes de ninguém. E isso é especialmente importante para os líderes políticos. Quando a maioria dos grandes líderes fracassa, é porque eles não conseguem deixar de seguir sua própria vontade. A tragédia dos ditadores é que o mundo real desaparece quando eles insistem em fazer sua própria vontade.

Em 2020, você recebeu o Prêmio Ratzinger de teologia e, enquanto esteve em Roma, recebeu a visita do Papa Francisco. Você disse que admira sua metáfora da Igreja como um hospital de campanha. Qual foi a sua impressão do homem em si mesmo?

Foi uma experiência breve, muito formal. Mas eu conhecia Bergoglio antes de ele ser eleito papa, porque fui convidado para falar em um congresso internacional na universidade jesuíta de Buenos Aires, onde ele se formou como estudante. Lá, eu li um texto publicado por ele quando era arcebispo de Buenos Aires, e nele eu descobri o mundo de sua teologia.

O que isso significa, exatamente?

Bem, ele é o primeiro papa a nascer em uma megalópole, um lugar onde a pobreza é mais claramente vista do que nesta cidade ou em Paris, um lugar onde não há nenhuma ascensão social. Você pode ter uma educação muito boa e, mesmo assim, você nunca alcançará as classes superiores. É uma sociedade muito hierarquizada, na qual a questão dos que ficam para trás é crucial – os pobres, os idosos. Assim, para ele, a pobreza e as questões dos nascituros e da poluição e assim por diante vêm juntas.

Muito diferente do papa anterior.

As pessoas que contrapõem as posições ideológicas de Bergoglio e Ratzinger não estão cientes de que, em matéria de teologia da libertação, Bergoglio desempenhou um grande papel como representante de Ratzinger. Pela sua experiência com os mais pobres, ele pôde fazer um discernimento entre os diferentes tipos de teologia da libertação e, com isso, conservar o melhor tipo na Argentina.

Então, você vê mais continuidade entre os dois papas.

E entre o Papa Francisco e o Papa Paulo VI, que iniciou a reforma da Cúria. Levou muito tempo, mas, com Francisco, ela foi feita e, até agora, parece ser uma boa reforma.

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