Cuidar das pessoas e do mundo. Artigo de Justino Sarmento Rezende, indígena do povo Ʉtãpinopona/Tuyuka

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26 Junho 2019

"O Sínodo da Amazônia veio para nos provocar. Que tenhamos a capacidade de colocar-nos no lugar do outro. Para quem não nasceu nem vive na Amazônia, é difícil o exercício de pensar os desafios da Amazônia, a partir das visões dos povos amazônicos e indígenas. Percorrer um caminho interior de superação dos preconceitos, desrespeitos, discriminação, exclusão historicamente construídos por diversos membros da Igreja. Os povos indígenas precisam ser reconhecidos e respeitados pela Igreja para que vivendo em seus territórios construam uma Igreja com rosto indígena".

A análise é do Pe. Justino Sarmento Rezende, sdb [1], Indígena do povo Ʉtãpinopona/Tuyuka e membro do conselho preparatório do Sínodo para a Amazônia.  

Eis o artigo. 

Introdução

Agradecendo a oportunidade de participar do atual Simpósio Teológico, com o tema: AMAZÔNIA: novos caminhos para a Igreja. O Sínodo da Amazônia tem me surpreendido continuamente. Proporciona muitas aprendizagens, suscita coragem, permite sonhar e criar esperanças. Agora eu estou na frente dos senhores cardeais e bispos; pessoas especializadas. Eu os considero como meus irmãos e minhas irmãs maiores da Igreja.

Para a elaboração dessa partilha eu fiquei refletindo e meditando sobre o que eu deveria dizer para as pessoas tão especiais e sábias como vocês. Lembrei-me da figura de um indígena Asteca, da região do México, que recebeu o nome cristão de Juan Diego, nascido em 1474, acolheu a fé cristã pelos ensinamentos dos franciscanos. Foi batizado (1524) quando tinha 50 anos e tornou-se cristão dedicado, piedoso, homem de oração, de penitências e homem simples. Ele caminhava 22 km para ouvir a Palavra de Deus, da sua aldeia à cidade do México.

No dia 9 de dezembro de 1531, quando ele caminhava de madrugada para ir à Igreja, entre sua vila e o monte Tepeyac a Virgem de Guadalupe apareceu-lhe pela primeira vez e em língua asteca, dizia: “Juan Dieguito”, “o mais humilde de meus filhos”, “meu filho caçula”. Ela confiou-lhe a missão de levar a mensagem ao bispo Dom João de Zumárraga de que no local de sua aparição deveria ser construída uma igreja. Juan Diego obedeceu ao pedido da Virgem, mas o bispo não o acreditou. Na segunda vez o bispo queria prova concreta. Diante dessas atitudes Juan Diego ficou triste, desanimado e decepcionado. Ficou com medo de seguir pelo caminho para não encontrar-se com a Virgem Maria, pois também tinha medo dela.

No dia 12 de dezembro quando a Virgem apareceu novamente Juan Diego expressou sua decepção com o bispo; disse que não queria mais levar a mensagem ao bispo. Maria lhe disse: “filhinho querido, não estou eu contigo? Eu, que sou tua mãe?” Com essas palavras Juan Diego sentiu-se fortalecido novamente. A Virgem Maria pediu-lhe que fosse colher as flores no monte Tepeyac, em pleno inverno, época em que não tinha flores. Ele obedeceu, encontrou as flores, colheu-as e levou embrulhado com o seu manto à Virgem Maria. Ela por sua vez pediu-lhe que levasse ao bispo aquelas flores como prova da veracidade da mensagem de Nossa Senhora.

1. Sínodo da Amazônia

Certo dia do ano de 1998 eu fui presidir a Eucaristia numa comunidade de religiosas de vida consagrada em São Paulo. Quando eu cheguei percebi que elas me olhavam com desconfiança, até o momento em que uma delas disse: antes os “brancos” iam evangelizar os índios, agora os índios vêm evangelizar os “brancos”. E, quando pensei nessa fala veio em minha mente a minha própria condição de ser indígena diante dos Cardeais, bispos e demais especialistas. Como vocês recepcionariam a minha pessoa e o que falo. Eu pensava comigo mesmo: como a minha mensagem poderia atingir o vosso coração e não somente a vossa mente, academicamente bem estruturada? Como eu conseguiria despertar a confiança com as minhas contribuições?

O indígena asteca Juan Diego [2] teve um encontro com a Virgem de Guadalupe antes de levar mensagem ao bispo, mesmo assim foi difícil despertar confiança do bispo. Eu, um indígena Tuyuka não tive encontro com a nossa Mãe Maria. Mas estou aqui com a minha própria vida indígena vivida na Amazônia. Todos os povos poderiam trazer muitas flores aqui. Mas eu carrego no meu coração os clamores, os sonhos e esperanças dos povos amazônicos e indígenas. Com o Sínodo: “A Amazônia está vivendo um momento de graça, um kairós. O Sínodo é um sinal dos tempos no qual o Espírito Santo abre novos caminhos que discernimos através de um diálogo recíproco entre todo o povo de Deus.” (IL, n. 28). O que nós temos muito é a esperança de uma nova vida, nova terra, nova Amazônia: “O Sínodo da Amazônia se transforma assim em um sinal de esperança para o povo amazônico e para a humanidade inteira. Trata-se de uma grande oportunidade para que a Igreja possa descobrir a presença encarnada e ativa de Deus: nas mais diferentes manifestações da criação; na espiritualidade dos povos originários...” (IL, n. 33).

2. Povos amazônicos e indígenas

Nós povos amazônicos e os povos indígenas do Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa somos criaturas de Deus, criados à sua “imagem e semelhança” (Gn, 1, 26). Somos seres humanos, pertencentes a diversos povos. Do Criador/Criadora, do Pai/Mãe recebemos muitas riquezas, conhecimentos e continuamos inspirados e recebendo as revelações divinas em diversos tempos, no cotidiano e nas celebrações. Ele/Ela nos dá seus dons para que saibamos cuidar da vida humana e do mundo.

Os conhecimentos se transformam em religiosidades, espiritualidades e teologias e nos ensinam que “Deus é mistério e supera toda a lógica humana. Deus nos ama e se insere em toda a nossa vida. Ele se torna visível, integra tudo o que existe, é o coração de toda a realidade, sua presença está em todos os povos e culturas.” [3]

Os nossos avós e pais realizam os rituais/cerimônias de danças, cantos, ritmos, pinturas, adornos, benzimentos (orações e rezas originárias de cada povo), silêncios, evocações, narrativas de nossas histórias sagradas. Eles realizam cerimônias de prevenção dos males, apaziguamento das forças destrutivas, realizam cerimônias de harmonização das pessoas, das casas, comunidades, dos rios, florestas, das roças, dos seres vivos, dos pássaros, da terra, da constelação, da lua, sol, dos ciclos da vida: gravidez, nascimento, primeira alimentação, primeira menstruação da menina, harmonização da família, proteção das doenças, cura das enfermidades e até a despedida desse mundo (morte).

Os nossos avós muito cedo escolhiam algumas pessoas para serem preparadas. Utilizando seus benzimentos, desde o momento do nascimento, já iniciava o processo de preparação das pessoas que se tornariam sábios/sábias especializados. Nos primeiros anos, a mãe e o pai, assumem em nome do filho/filha duras dietas alimentares. Pois nossos avós nos ensinam que desta forma o filho e filha crescem e se amadurecem desenvolvendo as qualidades específicas, pré-colocadas no coração e na mente da criança: “O Espirito está presente como força vital na vida e nas expressões dos povos originários.” [4] A partir da adolescência o menino/menina assume e vive as disciplinas recomendadas pelos sábios. A formação inicial e continuada, séria e exigente, do cotidiano e dos rituais capacita o jovem. Cada um deles, conforme, a capacidade de assimilação dos conhecimentos eles/elas atingem a maturidade. Tornam-se pessoas com poderes de agenciar as forças físicas e espirituais, capazes de transformar os materiais (sólido, líquido...) em fontes de proteção, estabelecer o equilíbrio das relações humanas, relações equilibradas dos seres humanos com outras realidades envolventes, entre os diversos mundos. Eles com seus benzimentos dialogam com os seres invisíveis/espirituais para trazer para o mundo material as forças invisíveis capazes de cuidar da vida humana, da vida da comunidade, do meio ambiente, etc.

Em língua tuyuka os nossos Kumua (filósofos, teólogos, benzedores, curas, protetores), Bayaroa (especialistas de cerimônias de danças e cantos), Yaiwa (especialistas em detectar as doenças e extrair as doenças) e mulheres sábias nos ensinam que o Avô/Pai/Mãe do Mundo, das pessoas, dos seres vivos existentes no mundo das constelações, no mundo subterrâneo e no patamar da terra, no firmamento, entregou-nos os conhecimentos para que com eles cuidássemos bem das pessoas, das comunidades, dos territórios e do cosmo. “O ser humano não é somente criatura, mas imagem e filho de Deus. Ao encarnar-se, Deus se fez humanidade e parte do cosmo” (LS 99; 236) [5] A nossa dignidade consiste em sermos povos, com nossas riquezas e valores que o Avô/Pai/Mãe da Criação nos deu.

As sabedorias divinas encarnadas em cada cultura também sinalizam quando não conseguimos viver conforme a vontade divina e conforme gostaríamos de viver. Algumas práticas humanas destroem nossas vidas, corrompem nossas atitudes humanas e desestruturam as nossas relações sociais; desequilibram a conexão com os diversos mundos. Sentimo-nos atingidos pelas forças dos males que nos impedem de viver bem com as pessoas. Diante dessas imperfeições buscamos caminhos de mudança, como indivíduos, como povo e comunidades. Mais uma vez aparecem as figuras de pessoas especializadas, como vozes proféticas, a nos orientar e fazer rituais para estabelecer harmonia e equilíbrio dentro de nós mesmos como indivíduos e como membros de um povo de irmãos. Os nossos sábios são pessoas de profunda compreensão do mundo e das pessoas. Para atingir a tal profundidade cultivam as meditações individuais e coletivas no cotidiano e nas festas. Eu acredito que foi o Criador/Criadora que ilumina suas vidas, suas meditações e suas falas aos membros de seu povo. Inspirados pelas sabedorias invisíveis/divinas eles ajudam a resolver os diversos desequilíbrios humanos e sociais.

3. Evangelização

Há mais ou menos 500 anos os primeiros missionários chegaram à Amazônia. Com o passar dos anos e séculos diversas congregações religiosas masculinas e femininas chegaram à região. Cada congregação ao seu modo, também diante de diferentes formas de aceitação, resistência e negação dos povos indígenas, realizaram os trabalhos para os quais chegaram: evangelizar, cristianizar, civilizar, etc. São muitos séculos de histórias, não dá para entender em pouco tempo a complexidade da ação missionária. São muitas pessoas envolvidas, missionários, missionárias, sacerdotes, bispos e milhares de leigos pertencentes aos diversos povos amazônicos e povos indígenas. Muitos indígenas receberam os sacramentos da Igreja: Batismo, Eucaristia, Reconciliação, Crisma, Matrimônio, Unção dos enfermos.

Quanto ao sacramento da Ordem, pouquíssimos indígenas receberam esse sacramento durante todos esses séculos. Os nossos avós acostumados com essa história pouco questionaram sobre isso. Muitos indígenas pensam que tornar-se sacerdote é próprio para o não indígena, não um sacramento da Igreja. Quando um indígena se torna sacerdote eles perguntam: por que você se tornou sacerdote? Você não é indígena? Indígena pode ser sacerdote? O Sínodo da Amazônia nos desafia a propor novos caminhos para a Igreja. Não é um trabalho fácil, pois mexe com os conhecimentos e práticas bem enraizadas, com raízes bem profundas nas nossas mentes e nossos corações.

4. Experiências cristãs e vocacionais

Eu nasci (1961) numa aldeia, uma comunidade cristã e meus pais eram catequistas. Meu pai era um catequista disciplinado, conforme as tradições da Igreja, diariamente animava a oração da manhã na comunidade, com sua família rezava o rosário todos os dias, aos domingos dirigia o culto dominical, visitava cada família para ajudá-las na vivência dos valores cristãos. Meu pai faleceu com 33 anos de catequista (1996) e minha mãe faleceu em 1989. Assim como os meus pais existem milhares de catequistas que animam a vida cristã em suas comunidades.

Foi nessa aldeia que quando eu era adolescente eu vi uma cena missionária e vocacional: um missionário italiano muito animado catequizava os velhinhos da aldeia. Ele falava-lhes em língua portuguesa, por isso, eles não entendiam. Apesar de não entenderem, mantinham-se com os olhos fixos no missionário. Com a minha imaginação de um adolescente tuyuka pensei que eu poderia me tornar sacerdote para falar aos meus avós com a nossa língua e eles entenderiam a beleza da mensagem de Jesus.

Depois o meu pai me deixou para estudar no internato da Missão Salesiana de Pari-Cachoeira [6], foi lá que numa das visitas ao internato o bispo da Prelazia do Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira contou para nós que ele iniciaria um Seminário para acompanhar os jovens que quisessem se tornar sacerdotes. Tendo ouvido essa notícia, eu e mais alguns jovens nos interessamos e fomos conversar com um sacerdote salesiano. Quando ele ouviu que nós queríamos estudar para sermos sacerdotes, ele disse: ser sacerdote não é para os indígenas. Nós acreditamos nisso e seguimos nossa vida de estudantes. Noutro tempo outro salesiano se dispôs a acompanhar quem quisesse seguir a vocação. Foi assim, que eu decidi seguir o caminho vocacional, mas o meu avô e minha mãe não concordaram com essa decisão, pois eles tinham me preparado desde criança para eu me tornar uma pessoa especializada em rituais de danças/cantos. O meu pai que era catequista consentiu que eu fizesse tal experiência.

Estamos no início da década de 1980. Eu fui para Manaus e começar a caminhada vocacional. Fui seguindo por todas as fases da formação (aspirantado, pré-noviciado, noviciado, estudos filosóficos e teológicos). Tive muitas dificuldades, mas superei com a ajuda de meus formadores e colegas. Eu estive fazendo memória desde o ano de 1980 até o tempo presente, ultrapassamos de 300 jovens que passaram nos Seminários: salesianos, capuchinhos, diocesanos e outras congregações. Muitos decidiram sair nos primeiros anos de formação, outros no período de votos temporários, alguns após a profissão perpétua; outros saíram durante os estudos da Filosofia, outros durante os estudos da Teologia e outros nos primeiros anos de sacerdócio.

A partir dessas experiências mal sucedidas nós salesianos, no ano de 1994 na Missão Salesiana de Iauareté, iniciamos o Centro de Formação Indígena (CFI) para o acompanhamento das vocações indígenas nos primeiros três anos de formação. Durante esse período procuramos trabalhar os temas indígenas para fortalecer as identidades indígenas e prepará-los para as seguintes etapas formativas. Após esses anos iniciais os jovens indígenas são enviados para outras etapas que, geralmente, funcionam nas cidades. Graças à nova experiência alcançamos resultado mais satisfatório. Daqueles que passaram nesse Centro, 5 tornaram-se sacerdotes; 1 estudante de Teologia, um estudante de Filosofia, 3 noviços, 6 pré-noviços e dois aspirantes. Houve aumento de indígenas sacerdotes no clero diocesano: 4 sacerdotes, 1 diácono, outros estudam Filosofia e Teologia em Manaus. Outros indígenas estão em outras congregações. As vocações femininas têm aumentado bastante em diferentes congregações religiosas que atuam na nossa região.

O quadro atual mostra para os povos indígenas da nossa região que é possível o seguimento à vocação sacerdotal e religiosa. Assim desconstruímos a visão de que tornar-se sacerdote é próprio de não indígena, mas tornar-se sacerdote faz parte da vida cristã, da resposta positiva ao chamado de Deus. Com a graça de Deus e com ajuda de irmãos da Comunidade vivemos os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência. O celibato como um dom de Deus é vivido em todas as culturas.

5. Vida sacerdotal e missionária

No início do ano de 1994 quando ainda era diácono fui enviado por meus superiores como missionário na Missão Salesiana de Iauareté, Amazonas – Brasil. Trabalhei com os povos: Arapaso, Tariano, Tuyuka, Tukano, Desano, Piratapuia, Wanano, Kubeu, Mirititapuia, Hupda e outros. No dia 2 de junho fui ordenado sacerdote. Iauareté foi um dos lugares que atuei em diferentes períodos (1994-1997; 2005; 2007-2008). Eu sendo um sacerdote indígena quis fazer inovações no estilo de atuação pastoral e celebrativa. Sonhamos e concretizamos as celebrações inculturadas, com cantos e ritmos em língua tukano; utilização das pinturas corporais, etc. Elaboramos subsídios para uma Catequese inculturada. Essas tentativas de inovação também geraram dúvidas e conflitos entre os indígenas, questionavam: por que os elementos culturais antes considerados diabólicos pelos missionários na atualidade são utilizados nas celebrações das missas? Diante disso, nem eu nem o povo estávamos preparados para inovações profundas. Como eu já disse anteriormente, o estilo missionário antigo estava bem enraizado nas mentes e nos corações de indígenas cristãos. Por isso, eu digo que mudar de mentalidade não é tão rápido, pois mexe com muitas histórias, tradições, sentimentos, emoções, estrutura psicológica e crenças construídas por muitas décadas.

Nos anos de 2007-2008 eu fui diretor e pároco na mesma Missão Salesiana. O curso de mestrado em educação que acabava de defender colaborou com a minha prática pastoral, estudos de nossas riquezas culturais e retomar com as celebrações inculturadas e catequese inculturada. A participação dos sábios e das sábias de cada povo foi muito importante para que pudéssemos assumir os sonhos como comunidade paroquial. Eles mesmos estavam assumindo o protagonismo na preparação das celebrações, na formação de lideranças, catequistas, ministros extraordinários da Sagrada Comunhão, coordenadores de diversas pastorais. Eu sonhava junto com eles fazer um trabalho diferente do que os salesianos vindos da Europa, sem perder o carisma salesiano e sem perder os valores culturais de cada povo.

No período de 2010 a 2016 eu fui enviado como missionário entre o povo Yanomami, na Missão Salesiana de Marauiário Marauiá – Amazonas/Brasil. Quando cheguei ali, o primeiro salesiano havia chegado há 49 anos. Eu ajudava na formação dos professores yanomami. Vivíamos a nossa vida salesiana, vida de oração e celebrativa. Os jovens, adolescentes e crianças participavam desses momentos. Na missa quando nós missionários recebíamos a Comunhão todos eles queriam comungar e nós dizíamos para eles que não poderiam comungar, ainda.

Nós dizíamos para eles que somente depois do batismo receberiam a primeira eucaristia. Os jovens e os adolescentes diziam: eu quero ser batizado e receber a primeira comunhão para receber o Corpo de Jesus. Eu, sendo um indígena como eles sentia-me incomodado com aquilo, como também sentia muito incomodado com os missionários que diziam que ainda não era tempo de batizar os Yanomami. Mas eu dizia: já estamos aqui há 50 anos; quando vamos dar a esses Yanomami o que eles mais desejam: o batismo e a eucaristia? A partir da constatação desse desejo começamos a preparar, passaram ainda cinco anos. As lideranças chegavam comigo e diziam: padre Justino, o senhor é nosso parente, o senhor tem que batizar nossos filhos! Eu dizia: estamos preparando.

A vontade de receberem os sacramentos estava se intensificando. Até que no ano de 2015 durante a visita do bispo eles deram o ultimato: senhor bispo, o senhor vai nos batizar? Se não nos batizar não venha mais; os missionários há muito tempo estão nos enganando, dizendo que vão batizar e não batizam. A partir dessa atitude radical dos Yanomami começamos a batizar os Yanomami.

Em meio ao povo Yanomami eu senti mesmo quanto é difícil viver a alteridade. Mas eles me ajudaram a descolonizar minhas visões e práticas sacerdotais e até mesmo minhas visões e práticas tuyuka. Permitiram-me mergulhar na cultura deles, participando de seus rituais, suas danças, suas pinturas. E, ao mesmo tempo eu sonhava que eles poderiam enriquecer muito mais do que eu na vida da Igreja, pois são detentores de tradições vivas. Na minha imaginação eu dizia para os meus irmãos salesianos que os Yanomami, um dia salvariam a nossa província, sendo seminaristas, tornando-se salesianos e sacerdotes. Mas para chegar a esse nível tinha que partir do primeiro sacramento. Se eles não eram batizados, ainda, não é porque eles não queriam, mas nós missionários decidimos não batizá-los, mesmo quando eles expressavam que queriam ser batizados e viver a vida yanomami cristã.

Conclusão

O Sínodo da Amazônia veio para nos provocar. Que tenhamos a capacidade de colocar-nos no lugar do outro. Para quem não nasceu nem vive na Amazônia, é difícil o exercício de pensar os desafios da Amazônia, a partir das visões dos povos amazônicos e indígenas. Percorrer um caminho interior de superação dos preconceitos, desrespeitos, discriminação, exclusão historicamente construídos por diversos membros da Igreja. Os povos indígenas precisam ser reconhecidos e respeitados pela Igreja para que vivendo em seus territórios construam uma Igreja com rosto indígena. A Igreja precisa construir novo tipo de relação entre os membros da Igreja, indígenas e não indígenas, que a Igreja confie e aposte nas capacidades e riquezas dos povos indígenas. Esse processo novo precisa passar pela mudança profunda de atitudes, partilhar com os povos indígenas o que de melhor a Igreja pode partilhar o amor que Deus tem por todas as suas criaturas. A Igreja com rosto amazônico e rosto indígena surgirá das novas atitudes humanas, cristãs e eclesiais. Dessa forma s rostos amazônicos e indígenas estarão mais serenos, confiantes, dispostos, sorridentes, comprometidos, corajosos, satisfeitos no processo de evangelização, nas celebrações, etc.

Os diversos ministérios que se originam dentro de cada cultura amazônica e indígena podem ser reconhecidos e valorizados como ministérios eclesiais. Os novos ministérios pensados com os povos amazônicos e indígenas para a Igreja na Amazônia precisa ser resultado da nova forma de ser Igreja na Amazônia, não somente para superar a falta de ministros ordenados para atender as grandes regiões geográficas.

 

Notas: 

[1] Indígena do povo Ʉtãpinopona/Tuyuka. Dʉpo é nome original do Pe. Justino. Nascido no dia 30 de junho de 1961, na aldeia Onça-igarapé, município de São Gabriel da Cachoeira – Amazonas – Brasil. É religioso da Sociedade de São Francisco de Sales – Salesianos de Dom Bosco. Fez a primeira profissão religiosa no dia 6 de janeiro de 1984 e profissão perpétua no dia 6 de janeiro de 1991. Ordenado Sacerdote no dia 2 de junho de 1994. Trabalhou entre os povos indígenas nos anos da Missão Salesiana de Iauareté nos períodos de 1994-1997; 2004, 2007-2008; entre o povo Yanomami na Missão Salesiana de Marauiá no período de 2010-2016. Formação acadêmica: Licenciatura em Filosofia (UCB/Brasília), Bacharelado em Teologia (FTNSA/São Paulo), Mestrado em Educação Indígena (UCDB/Campo Grande) e cursando Doutorando em Antropologia Social (UFAM/Manaus). Texto elaborado para o Simpósio Teológico – AMAZÔNIA: novos caminhos para a Igreja, Roma, 24-26/06/2019.

[2] Em outubro de 2014 fui participar do V Simpósio de Teologia Indígena – Revelação do Verbo, San Cristobal de las Casas, México (Chiapas) e visitei o lugar de aparição de Nossa Senhora de Guadalupe a Juan Diego.

[3] Conclusões do V Simpósio de Teologia Índia, Chiapas, 2014.

[4] Idem.

[5] Conclusões do V Simpósio de Teologia Índia, Chiapas, 2014.

[6] Os salesianos saíram dessa Missão no final do ano de 1998.

 

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