O niilismo como libertação para a autonomia. Entrevista especial com Andreas Urs Sommer

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Por: Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Walter O. Schlupp | 13 Novembro 2018

O tema da moralidade é recorrente nos debates filosóficos, ao menos, desde a Antiguidade, de modo que os valores propriamente morais são transformados ao longo do tempo. “Segundo Nietzsche, uma primeira ‘reavaliação de todos os valores’ ocorreu com o judaísmo e o cristianismo, que inverteu os valores aristocráticos supostamente antigos em seu oposto e instaurou a moralidade dos escravos com suas virtudes de fraqueza. Ele agora propaga para o presente uma nova reavaliação de todos os valores. Trata-se de reabilitar os valores nobres novamente”, explica o professor doutor e pesquisador alemão Andreas Urs Sommer, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Se de um lado é muito comum colocar o niilismo como valor negativo, para Nietzsche trata-se do contrário. “O niilismo — independentemente de Nietzsche — não é o problema do presente, mas a sua oportunidade: o niilismo significa libertação para a autonomia, para a autolegislação sem a tutela religiosa e moral”, propõe. Sobre a obra Genealogia da Moral, o entrevistado ressalta que é “um trabalho filosófico experimental. Não há respostas fixas, mas sim perguntas que abalam nossa autocompreensão moral. Essa obra consegue esse objetivo, mesmo se todas as suas afirmações históricas se evidenciarem como falsas”.

Andreas Urs Sommer | Foto: Friburg University

Andreas Urs Sommer é filósofo, professor catedrático de Filosofia e chefe do Centro de Pesquisa de Nietzsche da Academia de Ciências e Humanidades de Heidelberg, atuando na Cátedra de Filosofia com Foco em Filosofia Cultural. É autor, entre outros, de Nietzsche und die Folgen [Nietzsche e as Consequências, em tradução livre] (Stuttgart: J. B. Metzler, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o grande potencial crítico de 'Zur Genealogie der Moral' 130 anos após sua publicação?

Andreas Urs Sommer – Genealogia da Moral de Nietzsche questiona radicalmente nossas preconcepções morais. Nietzsche quer mostrar que a ideia de que existe algo moral e naturalmente bom é insustentável e se deve a um modo de pensar a-histórico. Por exemplo, o comportamento altruísta só se evidencia como “bom” em se aplicando como critério de valor a sobrevivência e o bem-estar de todos, na medida do possível. Nietzsche pergunta por que alguém deveria aplicar essa medida de valor. Pelo contrário, não se poderia privilegiar os fortes e os distintos? Nietzsche é astuto mestre da incomodação.

IHU On-Line – De que maneira a reavaliação de valores continua sendo uma ideia estimulante em um tempo como o nosso, em que o fenômeno do niilismo está deitando raízes cada vez mais profundas?

Andreas Urs Sommer – Segundo Nietzsche, uma primeira “reavaliação de todos os valores” ocorreu com o judaísmo e o cristianismo, que inverteu os valores aristocráticos supostamente antigos em seu oposto e instaurou a moralidade dos escravos com suas virtudes de fraqueza. Ele agora propaga para o presente uma nova reavaliação de todos os valores. Trata-se de reabilitar os valores nobres novamente. Mas como isso acontece, exatamente, permanece em aberto. Porque ninguém consegue mandar indivíduos fortes fazerem qualquer coisa. Nem Nietzsche consegue. Aliás, o niilismo – independentemente de Nietzsche – não é o problema do presente, mas a sua oportunidade: o niilismo significa libertação para a autonomia, para a autolegislação sem a tutela religiosa e moral.

IHU On-Line – No que diz respeito à avaliação de valores, o que há de novo na crítica de Nietzsche à moralidade cristã?

Andreas Urs Sommer – O que provavelmente é novo, acima de tudo, é criticar o cristianismo não tanto como fenômeno dogmático, como estrutura de doutrinas, e mostrar seu absurdo – isto o Iluminismo e a Crítica Histórica já deram por encerrado antes mesmo de Nietzsche. A novidade é encarar o cristianismo como fenômeno moral, querendo mostrar que os valores cristãos são valores danosos para a humanidade. Isso porque eles enfraquecem as pessoas em vez de fortalecê-las para se empoderarem.

IHU On-Line – Qual é o significado do páthos da nobreza e do distanciamento na genealogia nietzschiana da moral? Como você avalia, neste tocante, a natureza aristocrática da mente em sua nova concepção moral?

Andreas Urs Sommer – Esse “páthos do distanciamento” exprime o tipo de avaliação moral que não quer se tornar comum a todos e tudo. É a capacidade de se distanciar de tudo, inclusive do sofrimento, seja alheio, seja próprio. Como a moral aristocrática poderia se reformular politicamente no presente e no futuro, entretanto, Nietzsche deixa em aberto.

IHU On-Line – Já no Prólogo da Genealogia, Nietzsche afirma que, como ele próprio, Platão [1], Spinoza [2], La Rochefoucauld [3] e Kant [4] desenvolveram pouca compreensão para a compaixão. Como, na visão de Nietzsche, esse sentimento teria “infectado” a moralidade cristã?

Andreas Urs Sommer – A compaixão enfraquece as pessoas, porque não se limita a ajudar, mas também sofre com a pessoa que desperta compaixão. A compaixão duplica o sofrimento. Portanto ameaça afetar até mesmo os fortes e compromete a ajuda real. O cristianismo tornou a compaixão uma virtude. Mas na verdade é um vício irracional.

IHU On-Line – Na seção 7 do primeiro discurso, Nietzsche afirma que os judeus foram o começo da revolta dos escravos na moralidade. Como podemos entender isso corretamente dentro de sua filosofia?

Andreas Urs Sommer – Nietzsche aqui não está apoiando o antissemitismo, que já era comum em sua época – é o caso, por exemplo, de seu cunhado Bernhard Förster, que emigrou para o Paraguai. Nietzsche está apenas marginalmente interessado no judaísmo contemporâneo. Para ele, o cristianismo é a fatalidade da história universal, incidentalmente fundado no judaísmo. Seu antijudaísmo é, portanto, consequência de seu anticristianismo, ao mesmo tempo em que ele repetidamente se expressa de modo positivo sobre os judeus do seu próprio tempo.

IHU On-Line – Que significado tem a categoria do ressentimento no diagnóstico moral de Nietzsche sobre a moralidade cristã ocidental? Você acredita que o ressentimento pode ser uma chave para se entender a decadência política do nosso tempo?

Andreas Urs Sommer – Quem sofre de ressentimento são os incapazes de reagir diretamente a uma ofensa, a um prejuízo, por exemplo vingando-se ou contra-atacando. Para Nietzsche, isso é um sintoma de fraqueza e a base da reavaliação moral do escravo judeu-cristão. Os escravos não podem revidar e, por isso, cultivam o sentimento negativo de ressentimento que, por um lado, dirigem contra seus senhores e, por outro, contra si mesmos. O conceito de ressentimento de Nietzsche não é realmente adequado como instrumento para se analisar o tempo presente, pois numa sociedade civilizada o atraso da reação ou a proibição do contra-ataque e da vingança é uma condição funcional fundamental. Em outras palavras, todas as pessoas que superaram o estágio do macaco sofrem de ressentimento, porque não podem reagir imediatamente. O que Nietzsche deixa de tratar, em grande parte, é a fertilidade do ressentimento: o ressentimento desperta a criatividade das pessoas.

IHU On-Line – Uma das frases mais incompreendidas fala da “besta loira”. Você poderia descrever o contexto em que Nietzsche usou essa metáfora e o que ele realmente quis dizer com isso?

Andreas Urs Sommer – No contexto em questão, Nietzsche fala de grupos étnicos bárbaros do passado, incluindo as tribos germânicas. Ele de forma alguma os apresenta como ideais, e de maneira alguma apregoa que nos tornemos bestas louras. Nietzsche tomou a expressão “besta loira” da literatura contemporânea que leu.

IHU On-Line – A partir das frases sobre esquecimento e lembrança, que contribuição Nietzsche dá para se pensar sobre a aplicação de punições no campo do direito?

Andreas Urs Sommer – A questão do esquecimento e da lembrança é um tema central na genealogia da moral de Nietzsche. Como é que pode haver lembrança, se o ser humano parece um animal esquecido? É pela dor, argumenta Nietzsche: e pela dor é que as punições impedem o esquecimento. Basear nisso uma teoria moderna do direito penal seria, no mínimo, um projeto ambicioso...

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo que não discutimos aqui?

Andreas Urs Sommer – Genealogia da Moral de Nietzsche é um trabalho filosófico experimental. Não há respostas fixas, mas sim perguntas que abalam nossa autocompreensão moral. Essa obra consegue esse objetivo, mesmo se todas as suas afirmações históricas se evidenciarem como falsas.

Notas:

[1] Platão (427-347 a.C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República (São Paulo: Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo: Martin Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As implicações éticas da cosmologia de Platão, concedida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU On-Line, de 4-9-2006. Leia, também, a edição 294 da Revista IHU On-Line, de 25-5-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento. (Nota da IHU On-Line)

[2] Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632–1677): filósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. Foi considerado um dos grandes racionalistas do século 17 dentro da Filosofia Moderna e o fundador do criticismo bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitulada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento. (Nota da IHU On-Line)

[3] Duque François de La Rochefoucauld (1613-1680): nascido em uma família nobre parisiense, escritor francês. Famoso por suas Máximas (1665). Essa obra é uma coletânea de cerca de 500 ditados escritos para expor a vaidade e a hipocrisia que o autor via por trás do comportamento humano. Suas Reflexões ou Sentenças e Máximas Morais têm sido acusadas de pessimismo, mas na realidade traduzem em termos não religiosos a visão cristã tradicional do vício e da fraqueza. As Máximas exprimem desgosto por um mundo onde os melhores sentimentos são, malgrado as aparências, ditados pelo interesse. (Nota da IHU On-Line)

[4] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética. Também sobre Kant, foi publicado o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios. (Nota da IHU On-Line)

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