Clima: ilusões do mercado e o papel do Comum. Artigo de Mariana Mazzucato

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08 Novembro 2022

"A Conferência do Clima da ONU começou, mas não prosperará se acalentar as quimeras do capitalismo 'verde'. Evitar a catástrofe climática exige investimentos pesados em infraestrutura limpa, coordenados por um Estado democrático", escreve Mariana Mazzucato, economista italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex, em artigo publicado por Project Syndicate e reproduzido por Outras Palavras, 07-11-2022. A tradução é de Maurício Ayer.

Eis o artigo.

Nas últimas semanas, vários membros da Aliança Financeira de Glasgow Financial para Emissões Zero (GFANZ, na sigla em inglês) – um grupo de 450 instituições financeiras – pularam fora devido a preocupações a respeito do custo de cumprir seus compromissos climáticos. Ao desistir, eles desmentiram a noção de que as instituições financeiras privadas podem liderar a transição para uma economia neutra em carbono. O que a transição realmente precisa é de Estados mais ambiciosos que vão além da regulação dos mercados para se tornarem formadores de mercado.

A abordagem liderada pelo mercado está enraizada na crença de que as instituições financeiras privadas alocam capital de forma mais eficaz do que qualquer outra instituição. A implicação é que os Estados devem abster-se de “escolher vencedores” ou “distorcer” a concorrência de mercado e limitar-se a “reduzir os riscos” das oportunidades de investimento verde para torná-las mais atraentes para os principais investidores privados.

Mas a história econômica moderna traz um relato diferente. Em muitos lugares e em muitas ocasiões, são os atores públicos que assumiram a liderança na formação e criação de mercados que, a partir de então, trazem benefícios tanto para o setor privado quanto para a sociedade em geral. Muitos dos grandes avanços tecnológicos que hoje achamos que são parte da vida aconteceram apenas porque entidades públicas fizeram investimentos que o setor privado considerou muito arriscados.

A história real é, portanto, bem diferente do mito predominante. Devemos muitos sucessos econômicos não a atores públicos que saíram do caminho, mas a um “Estado empreendedor” que assumiu a liderança. Além disso, a abordagem em que o mercado lidera está em desacordo com o objetivo de produzir uma transição verde global justa, na qual os custos e riscos sejam compartilhados de forma justa dentro dos e entre os países. “Reduzir os riscos” pressupõe uma estratégia que socializa os custos e privatiza os lucros.

O financiamento privado ainda tem um papel crucial a desempenhar, é claro. Mas apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global. A questão, então, é o que essa abordagem deve incluir.

Primeiro, os Estados devem assumir seus papéis como “investidores de primeiro recurso”, em vez de esperar para intervir apenas como “credores de último recurso”. Em todo o mundo, as instituições financeiras públicas empregam muitos bilhões de dólares a cada ano e, devido ao seu design distinto e estruturas de governança, podem disponibilizar um tipo de finanças de longo prazo, paciente e orientado para a missões que o setor privado muitas vezes não está disposto a prover. As evidências mostram que empréstimos diretos de bancos públicos com boa governança podem desempenhar um poderoso papel de moldagem de mercado, informando percepções de futuras oportunidades de investimento.

Em segundo lugar, devemos repensar a relação entre o setor público e o privado, especialmente quando se trata de compartilhar riscos e recompensas. Quando entidades públicas assumem riscos para atingir objetivos sociais, o setor privado não deve se apropriar dos resultados financeiros.

Por exemplo, se um governo está financiando grandes projetos de energia renovável e outros investimentos verdes, pode ter uma participação acionária neles. Os retornos também podem ser socializados pela atribuição de uma proporção dos direitos de propriedade intelectual (PI) ao Estado, permitindo que os lucros sejam reinvestidos em novos projetos verdes. É importante ressaltar que as empresas que se beneficiam de finanças públicas devem estar sujeitas a condições que alinhem suas atividades comerciais com os objetivos da política industrial verde, práticas trabalhistas justas e outras prioridades.

Terceiro, para direcionar o investimento privado para atividades verdes e para reduzir o investimento em atividades prejudiciais, os Estados devem fortalecer e atualizar as regras que regem os mercados financeiros. Tal regime poderia incluir bancos centrais introduzindo políticas alocativas de crédito verde e regras e padrões como reforço regulatório para evitar lavagem verde e arbitragem regulatória.

Quarto, os formuladores de políticas devem reconhecer que o financiamento da dívida – fornecido tanto pelo setor público como pelo privado – não é necessariamente um substituto dos gastos fiscais diretos. A lógica dos instrumentos financeiros reembolsáveis ​​não se concilia facilmente com as características de bem público de alguns investimentos relacionados ao clima. Investimentos em justiça climática e reflorestamento trarão retornos de longo alcance, mas não necessariamente do tipo que pode ser usado para pagar um empréstimo. Navegar por essas questões e entregar investimentos na escala necessária exigirá coordenação estratégica em todas as áreas de formulação de políticas sociais, ambientais, fiscais, monetárias e industriais.

Finalmente, deve-se fazer mais para fornecer espaço fiscal suficiente para que os países do Sul Global busquem suas próprias agendas domésticas de descarbonização e adaptação. Muitos países, incluindo aqueles que estão mais expostos ao colapso climático acelerado, estão enfrentando dívidas pendentes significativas. Agora é imperativo que os países devedores do Norte Global – que são responsáveis ​​pela maior parte das emissões na atmosfera – ajudem a reduzir esses encargos por meio de cancelamentos de dívidas, reestruturação de dívidas, compensação de perdas e danos ou substituindo empréstimos climáticos por concessões climáticas.

Para limitar o catastrófico aquecimento global, o financiamento para mitigação e adaptação climática deve ser aumentado drasticamente. Mas a qualidade do financiamento também é importante. Em vez de manter a esperança de que as instituições financeiras privadas traduzam suas superpropagandeadas promessas de trilhões de dólares em emissões zero em ações críveis e responsáveis, devemos exigir que os Estados assumam o papel que lhes cabe. Isso significa mobilizar e direcionar as finanças para metas climáticas claras e ambiciosas e moldar os mercados financeiros para se alinharem a essas metas. Cobrir a lacuna de financiamento requer uma reformulação radical da arquitetura financeira e uma mudança substancial nos fluxos financeiros. Nenhuma das duas coisas vai acontecer sem intervenções políticas.

Para especificar as mudanças necessárias, vou moderar uma painel só de mulheres na COP27 com a primeira-ministra de Barbados Mia Mottley, a diretora geral da OMC Ngozi Okonjo-Iweala, a ministra egípcia de Planejamento e Desenvolvimento Econômico Hala El Said e a primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon. Os desafios são urgentes. Se os Estados não assumirem a liderança no financiamento climático, a transição verde permanecerá fora de alcance.

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