“Não é possível pintar a economia de verde, é preciso decrescer”. Entrevista com Alicia Valero

Fonte: Pixabay

14 Dezembro 2021

 

O trabalho de Antonio Valero e Alicia Valero, pai e filha, engenheiros termodinâmicos da Universidade de Zaragoza, é fundamental para compreender os limites físicos e geológicos do planeta Terra. Em 2014, publicaram em inglês um monumental ensaio sobre o esgotamento dos recursos minerais frente a um sistema econômico baseado no crescimento exponencial.

 

Recentemente e com um formato de entrevista, publicaram Thanatia, los límites minerales del planeta (2020, Icaria), onde explicam de forma didática e sem tecnicismos o que ocorre quando o consumismo ilimitado do capitalismo entra em choque com um planeta com recursos limitados.

 

A crise de matérias-primas e de componentes básicos para a indústria tecnológica experimentada pela economia global, desde o final do ano passado, colocou em destaque esse livro e o trabalho dos Valero, que já há anos vinham alertando sobre a previsível escassez de tudo o que é necessário para a indústria tecnológica e a chamada revolução verde.

 

Como assessora de grandes empresas, como Seat, e diretora do grupo Ecologia Industrial, no Centro de Pesquisas de Recursos e Consumos Energéticos - CIRCE, Alicia Valero é uma voz imprescindível para se aproximar de um problema – a escassez de recursos – que pouco tempo atrás era meramente teórico. Para esta professora, a falta de matérias-primas não é mais uma teoria ou uma possibilidade futura, é uma realidade tangível que só pode piorar, caso não haja mudanças na raiz dos hábitos de consumo.

 

A entrevista é de Martín Cúneo publicada por El Salto, 12-12-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Antes, parecia tabu falar em escassez de materiais. Mudou alguma coisa?

 

Eu acredito que sim, agora, as pessoas estão vivenciando isso pessoalmente. Até os setores mais conservadores já estão admitindo que, aqui, pode haver um grave problema de desabastecimento.

 

Quanto essa crise de desabastecimento tem de conjuntural e quanto tem de estrutural?

 

É uma crise estrutural, embora obviamente agravada pela pandemia, que foi conjuntural. Esperamos que os efeitos do coronavírus se abrandem e as paralisações devido à pandemia sejam cada vez menores ou mesmo nenhuma, e isso favorecerá que as fábricas voltem mais ou menos à normalidade.

 

 

Dito isso, em tudo há um fator comum, que é a demanda que disparou de forma exponencial. As fábricas não conseguem suprir tanta demanda, sobretudo de aparelhos elétricos e eletrônicos, que exigem uma especialização de fábricas e de pessoas, que se baseiam em alguns elementos escassos e que, além disso, são controlados por poucos países.

 

Estamos nos deparando com os limites das fábricas. Mas se você extrapola isto para a grande fábrica que é a natureza, mais cedo ou mais tarde, também vamos nos deparar com seus limites. E se continuarmos com esse consumo exponencial, esses limites estão muito próximos.

 

Note, nesses 20 anos do século XXI, extraímos tanto cobre quanto em toda a história da humanidade. Estamos próximos de atingir os limites geológicos do planeta. E não digo que estamos esgotando todos os recursos, mas que estamos esgotando os recursos acessíveis, que são duas coisas diferentes.

 

Já estamos nesse processo que alguns chamam de colapso ou grande escassez ou isto só uma janela para o que pode acontecer em um futuro próximo?

 

Acredito que é o início. É uma janela, mas é que já vemos o precipício, já estamos vendo esses sinais inequívocos de que logo os problemas de escassez serão o pão nosso de cada dia.

 

Há pouco, o discurso sobre a crise climática era sobretudo teórico e muito recentemente se começa a ver como algumas dessas advertências se tornam realidade. Está acontecendo o mesmo com a escassez de matérias-primas?

 

Sim, está acontecendo o mesmo. Fala-se em mudança climática, fala-se em escassez de matérias-primas, fala-se em perda de biodiversidade... é que tudo está relacionado. Precisamente, temos um problema de mudança climática por uma superexploração de recursos fósseis e se hoje existe escassez de petróleo, é porque nós o consumimos de forma exagerada e, por sua vez, isto provocou os problemas que temos hoje de mudança climática.

 

 

A rede natural é tão complexa que você não pode agir sobre uma vertente e se esquecer das outras. Temos uma enorme complexidade natural, que faz com que seja necessário agir em múltiplas frentes e cada vez que damos um passinho, é preciso questionar quais são as consequências sobre a natureza, a sociedade, a economia, e não vale olhar só a economia.

 

As matérias-primas com problemas de abastecimento são aquelas com as menores reservas?

 

Em parte, sim. De fato, fizemos estudos em 2018 e analisamos quais materiais poderiam apresentar gargalos e coincidem com aquelas matérias-primas que são necessárias para a eletrônica, para as baterias, sobretudo de carros elétricos – estamos falando do lítio, cobalto, manganês, níquel -, e para muitas energias renováveis, como, por exemplo, a fotovoltaica.

 

O problema está em que não há reservas desses minerais, que a extração não é rentável ou que a produção está muito concentrada?

 

Há vários problemas. O primeiro é que como a demanda está crescendo de forma muito rápida, não há reservas suficientes nos campos que atualmente são exploráveis. É claro que novas reservas serão encontradas no futuro, mas para abrir um novo campo você demora, em média, de 15 a 16 anos. Aqui, haverá uma dissociação muito importante entre a oferta e a demanda.

 

Além disso, até agora extraímos os low hanging fruits [frutos ao alcance da mão], que são de fácil extração, e agora se fala em ir para os oceanos, a Amazônia, a Antártida, mas a que custo? Estamos dispostos a sacrificar nossas reservas naturais?

 

 

Por outro lado, as reservas de lítio, por exemplo, estão concentradas na Austrália e em regiões da América Latina, no triângulo do lítio. E depois, esse lítio e todas essas matérias-primas e terras raras são controlados pela China para a refinação... O cobalto está concentrado no Congo, com todos os problemas sociais, políticos, de instabilidade, de trabalho infantil em condições deploráveis...

 

Tudo isso faz com que governos como os da União Europeia digam que é preciso extrair no próprio território para evitar essa dependência. Mas quase ninguém está disposto a ter uma mina ou uma fábrica por perto por causa de todos os impactos que provocam e, até agora, produzir no exterior era mais barato, assim como também a poluição ficava em outros países. Temos diferentes freios e diferentes barreiras que são físicas, mas também sociais e ambientais, que significam que teremos carências de diversos tipos.

 

Há alguns sinais que indicam que essa crise chegou a seu pico. Quanto tempo você acredita que essa crise de matérias-primas ainda pode durar?

 

Pouco a pouco, vai se normalizando, mas não voltaremos ao que era antes. O modelo just in time, em que solicito algo e amanhã recebo, penso que acabará. Teremos que repensar o modelo de economia em que estamos, porque está claro que o ritmo de consumo e descarte de produtos que utilizamos é insustentável e explodirá em alguma parte. Ou fazemos isso por bem ou, ao final, os limites físicos vão nos impor recuar por mal.

 

Diante do esgotamento dos combustíveis fósseis, a grande esperança está nas energias renováveis. Quais problemas enxerga na revolução verde?

 

É importantíssimo que essa revolução verde aconteça, não podemos continuar queimando combustíveis fósseis. Agora, o que não podemos fazer é continuar crescendo em consumo energético e substituir os fósseis pelas energias renováveis. Primeiro porque não há matérias-primas suficientes para isso. Se continuarmos nessa trilha, em seguida veremos que não existe cobalto suficiente, que não existe lítio suficiente, que não existe telúrio suficiente, e assim sucessivamente. Sendo assim, pintar a economia atual de verde será impossível.

 

 

E, além disso, as energias renováveis têm problemas de desestabilização da rede e é preciso, paralelamente, construir sistemas de estabilização de rede. As energias renováveis precisam de um suporte do gás natural para evitar picos de tensão e apagões como está se dizendo no centro da Europa...

 

Outro problema é quem cederá o terreno para os hectares e hectares de energias fotovoltaica e eólica que são necessários. Porque a superfície exigida pela energia renovável em comparação a um sistema equivalente em potência de uma central de ciclo combinado ou uma nuclear é muito superior.

 

Aqui, vamos nos deparar com bloqueios como os que vimos em povoados inteiros que se negam a ter parques solares ou eólicos. Não é possível pintar a economia de verde, é preciso decrescer. Os materiais empregados precisam ser projetados para que possam ser reutilizados.

 

Você trabalha em contato com a indústria. Quais são os principais problemas que a indústria espanhola enfrenta em relação a essa falta de materiais e essa crise energética?

 

Os problemas são gravíssimos, estamos vendo como estão fechando as fábricas e não estão recorrendo só ao ERTE [mecanismo que garante parte do salário a trabalhadores afastados], mas fechando completamente, conforme está acontecendo com a indústria de fertilizantes.

 

Isso é muito grave: podemos viver sem carros, mas não sem alimentos. É algo inédito e gravíssimo que a indústria de fertilizantes tenha que fechar e não possa produzir esses fertilizantes que são necessários para o campo, e aqui se nota a enorme dependência que temos dos combustíveis fósseis. Devem ser substituídos o quanto antes.

 

 

Existe uma crítica generalizada de que os discursos sobre a escassez estão gerando alarmismo e que isto pode favorecer a desmobilização ou a extrema direita.

 

É verdade que às vezes você tem que moderar um pouco a linguagem para não criar o efeito contrário, ou seja, o salve-se quem puder, e sou consciente de que algumas de nossas análises incitam a isso. “Puxa, se estamos tão mal, que se salve quem puder, vamos consumir o máximo possível”, e alguns vão se aproveitar deste assunto.

Mas se a realidade não se torna conhecida, se continuamos com os olhos vendados sobre o que está ocorrendo, que é gravíssimo, dificilmente poderemos agir. É importante que as pessoas saibam onde estamos e que as políticas que estão sendo executadas até agora são equivocadas. Pelo menos, que as decisões sejam informadas o máximo possível, para buscar orientar o planeta rumo à sustentabilidade.

 

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