Motivações: uma avaliação da campanha eleitoral. Artigo de Jean Marc von der Weid

(Foto: Rovena Rosa e Marcello Casal Jr | Agência Brasil)

19 Outubro 2022

 

"Apesar do comprovado poderio da máquina de mentiras dos bolsonaristas na internet, a campanha de Lula acreditava poder segurar a onda pela prometida ação inibidora e repressora do TSE (que ficou longe da promessa). Apesar de reconhecer a importância desta frente de combate a campanha de Lula e a esquerda, de forma geral, não se mostraram preparados para enfrentar a máquina de mentiras até a entrada no jogo de personagens como André Janones e Felipe Neto, bem como a adesão de figuras públicas com milhões de seguidores tais como Anitta e outros."

 

O artigo é de Jean Marc von der Weid, economista e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes - UNE (1969/1971). É fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia - AS-PTA, foi membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável - CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 e é militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.

 

Eis o artigo.

 

Nesta campanha eleitoral, as coordenações de todos os candidatos elaboraram estratégias com base naquilo que os institutos de pesquisa apontavam como as principais preocupações dos diferentes segmentos do eleitorado. Para a grande maioria daqueles que recebem menos de 5 salários-mínimos, as classes C, D e E, o foco estava colocado no que se chamou, genericamente, de temas econômicos. Estes temas englobavam emprego, renda, inflação, fome, endividamento, entre outros de menor incidência. Outros temas enfatizados pelas pesquisas incluíram corrupção, saúde, educação e segurança. Ao contrário da campanha de 2018, quando o tema da corrupção foi central, desta vez ele apareceu em modesto oitavo lugar entres as preocupações do eleitorado. Os chamados temas “culturais”, aborto, casamento gay, racismo, LGBTQIA+fobia, misoginia, educação sexual, sequer são mencionados nas pesquisas. Também esses foram centrais em 2018. Já os temas ambientais tampouco foram destacados pelos pesquisados, repetindo a sua performance de 2018.

 

Havia uma preocupação no quartel general bolsonarista em relação ao tema da saúde, que não deixaria de mostrar um ponto fraquíssimo do candidato, o enfrentamento da pandemia de COVID. Como trata-se de algo supinamente escandaloso e envolvendo dramas pessoais e familiares de milhões de brasileiros e que ocorreram há muito pouco tempo, a preocupação era mais do que justificada.

 

Já a campanha de Lula se preocupava com o seu flanco para lá de aberto no tema da corrupção. A narrativa petista apontando para os julgamentos arbitrários e eivados de ilegalidades que acabaram contaminando todos ou quase todos os casos da operação Lava Jato não é considerada suficiente para limpar a imagem do candidato e do partido.

 

Apesar do comprovado poderio da máquina de mentiras dos bolsonaristas na internet, a campanha de Lula acreditava poder segurar a onda pela prometida ação inibidora e repressora do TSE (que ficou longe da promessa). Apesar de reconhecer a importância desta frente de combate a campanha de Lula e a esquerda, de forma geral, não se mostraram preparados para enfrentar a máquina de mentiras até a entrada no jogo de personagens como André Janones e Felipe Neto, bem como a adesão de figuras públicas com milhões de seguidores tais como Anitta e outros.

 

Tanto Lula quanto Bolsonaro deixaram de apresentar planos de governo, ao contrário dos candidatos da “terceira via”, Tebet e Ciro. A primeira alinhou alguns pontos programáticos centrados na sua visão liberal da economia e na sua adesão ao agronegócio. O segundo formulou um programa abrangente e consistente (independentemente de se concordar ou não com o todo ou partes do mesmo), inclusive com a preocupação de indicar um orçamento e as fontes dos recursos. O atual e o ex-presidente buscaram valorizar suas realizações nos respectivos governos, com nítida vantagem para Lula, que não só tinha excelentes resultados a mostrar como os propagandeou exageradamente. Já Bolsonaro não tem o que apresentar, salvo um monte de mentiras defensivas sobre a gestão da pandemia, os desmatamentos, a pobreza e a economia.

 

Qual a razão desta opção da campanha de Lula por não formular um plano de governo concreto e aplicável? Por um lado, está a tradição das campanhas eleitorais no Brasil. Ao contrário de outros países democráticos, no Brasil os candidatos preferem ganhar votos prometendo a cada segmento do eleitorado aquilo que mais o sensibiliza, sem se preocupar com a viabilidade das propostas. Por outro lado, a campanha do Lula optou por montar uma ampla frente antibolsonaro, com base sobretudo nas ameaças do presidente às instituições democráticas. No primeiro turno, a frente articulou nove partidos, reunindo a esquerda e a centro esquerda e abrindo espaço, mais simbólico do que orgânico, para um representante da centro direita, o ex-governador e ex-candidato à presidência da república Geraldo Alckmin.

 

Já no segundo turno, as aberturas de Lula para as forças da centro direita encontraram uma acolhida restrita com a adesão de Simone Tebet, do MDB e Amoedo, presidente do Novo. Entretanto, os maiores partidos desta corrente política, o MDB e o PSDB, preferiram liberar seus associados para fazerem campanha para Lula ou para Bolsonaro. Apenas o Cidadania e o Solidariedade (e o PDT, partido que já foi de esquerda, derivou para o centro esquerda e teve em Ciro Gomes um candidato de direita) aderiram à Lula formalmente.

 

Outro partido, ainda mais à direita, o Novo, também liberou seus filiados. O poderoso União Brasil adotou a mesma postura, liberando suas bases. Com esta composição ampla, a construção de um programa minimamente coerente era tarefa muito difícil, senão impossível. Tudo isto reforçou a estratégia da indefinição programática e da “venda” da imagem positiva do governo de Lula, que, discretamente, “esqueceu” o governo de Dilma Roussef, cuja avaliação, sobretudo do seu curto segundo mandato, era bastante ruim. As opções eram muito difíceis e Lula optou pela solução mais pragmática de deixar tudo diluído.

 

O preço pago por adotar este caminho foi deixar de apontar ao eleitorado um caminho de mudanças necessárias para colocar o Brasil no rumo da superação do estado de calamidade em que Bolsonaro está deixando o país. A ênfase passou a ser a crítica aos descalabros de Bolsonaro e as ameaças contra as instituições democráticas no caso de sua reeleição. Uma campanha mais contra Bolsonaro do que por um projeto de Brasil profundamente modificado. Isto enfraquece o grande motor de qualquer movimento político, a imagem da esperança em um futuro melhor. É claro que a propaganda eleitoral fala na esperança, mas o que se apresenta é a volta ao passado. Um passado idealizado, diga-se de passagem, e inaplicável nas circunstâncias atuais.

 

Bolsonaro, com o poder da caneta na mão, atuou de forma irresponsável e ilegal para ganhar pontos com o eleitorado. Turbinou o programa de auxílio para os mais pobres, baixou os preços dos combustíveis na marra, e criou várias medidas para públicos específicos como caminhoneiros, taxistas e motoristas de aplicativos. Conseguiu impactos positivos no recuo da inflação, muito embora os preços dos alimentos tenham continuado a subir.

 

A retomada da economia, sobretudo no setor de serviços, também foi objeto de propaganda governista, embora os números do PIB sigam medíocres, agora com uma forte queda de 1,3% para o mês de agosto e a perspectiva de outra queda em setembro. Esta retomada tímida permitiu uma diminuição do desemprego, muito embora ainda tenhamos quase 10 milhões de desempregados e os postos de trabalho reabertos estejam sobretudo entre os sem carteira assinada e os por conta própria. Somados aos chamados desalentados, os desempregados e subempregados somam 65% da nossa força de trabalho.

 

Considerando os dados pré-pandemia a renda gerada entre estes trabalhadores continua mais baixa. E os gastos governamentais gigantescos incidiram sobre o déficit público gerando a perspectiva de uma crise maiúscula para o após eleições. No entanto, a derrama de recursos públicos distribuída de forma oportunista pelo governo para angariar apoio teve algum efeito. As classes A, B e C ficaram encantadas com a redução do preço da gasolina. As classes D e E, alvo de auxílios de todo tipo de última hora, não se bandearam para o governo, como esperavam Bolsonaro e o Centrão, mas não deixaram de entregar parcelas de votos que podem ser decisivos na reta final.

 

A campanha de Lula centrou no tema da economia (leia-se emprego, renda, fome, desenvolvimento) com muitas promessas de refazer o que já foi feito em seus governos anteriores. É mais do que óbvio que a realidade econômica e das condições financeiras do governo para cumprir estas promessas torna-as uma miragem propagandística. Lula não disse como vai financiar todas as benesses que promete, a não ser pela (para os liberais) assustadora promessa de eliminar o teto de gastos. O tema da reforma tributária ficou ausente da campanha. Já Bolsonaro abandonou qualquer veleidade de adesão ao ideário neoliberal de seu ministro da economia. Ele não promete abandonar o teto de gastos porque já o mandou para o lixo sem dó nem piedade na gastança inacreditável que está promovendo para tentar ganhar as eleições.

 

Bolsonaro está fazendo uma campanha tipo repeteco da de 2018. Deus, pátria e família é o mote do presidente. Isto se traduz em uma campanha de apontar ameaças, mais do que propor soluções. Segundo Bolsonaro, Lula vai fechar as igrejas, liberar o aborto, sexualizar a educação das crianças, transformar o Brasil na Venezuela ou Nicarágua, facilitar a vida de bandidos. Suas promessas positivas se resumem a manter o Auxílio Brasil em 600,00 reais, promessa tão improvável que sequer é totalmente coberta pela proposta de orçamento do governo para o ano que vem. Ou, se é que isto é positivo, a manter a expansão acelerada no acesso a armas pela população. Ou na defesa dos policiais em operação, com a volta da proposta do “excludente de ilicitude”, uma espécie de licença para matar.

 

 

Vamos tentar analisar as motivações dos diferentes segmentos do eleitorado nestas eleições.

 

Os mais pobres, os que recebem menos de dois salários-mínimos, representam 56% do eleitorado. Com a imensa crise econômica e social que estamos vivendo o fato de que Lula tem o voto de mais de 60% deste público é mais do que esperado. O singular e que pede explicação é o fato de que Bolsonaro tem apoio de 30 e poucos por cento. Há duas razões para isso, embora seja difícil dizer qual a decisiva.

 

A primeira é o auxílio financeiro turbinado, que beneficiou mais de 20 milhões de famílias. Embora mal concebido e executado, este auxílio foi importante para muitas famílias e, embora uma grande parte não tenha “agradecido” ao presidente dando-lhe seu voto, ele não deixou de aliviar a resistência dos mais pobres à reeleição de Bolsonaro. A outra razão é o efeito das pregações frenéticas de pastores de igrejas pentecostais assustando suas ovelhas e conduzindo-as para a tosquia com um enquadramento digno do talibã. O público dessas igrejas é, notoriamente, constituído de gente muito pobre na sua maioria. E Bolsonaro tem a expectativa de voto de 63% dele.

 

Neste público, o mais desassistido, não são os temas da economia que geram motivação, mas sim a chamada pauta decostumes”. É possível que haja uma terceira razão. Como este público é composto por uma grande massa de trabalhadores sem vínculo empregatício e vivendo de expedientes, a pandemia atingiu-os pesadamente, sobretudo as medidas de controle que levaram a limitações de circulação. O empenho de Bolsonaro contra estas medidas deve ter atraído estes biscateiros e prestadores de serviços. Outros setores também foram aliciados por esta mesma lógica.

 

O segundo segmento mais numeroso do eleitorado é constituído pela chamada classe C, com renda entre 2 e 5 salários-mínimos. Esta classe cresceu de tamanho nos governos de Lula e de Dilma, na mesma medida em que caiam os números das classes D e E, indicando uma melhoria significativa de renda. A partir de 2015 o movimento se inverteu e muitos desceram a escada da classe C para as D e E. A renda média da classe C aumentou um pouco, provavelmente pelo efeito da saída do extrato inferior levantando a média de renda dos restantes.

 

Este é um público onde Bolsonaro tem uma votação maior do que Lula. Quem são eles? Na ausência de uma pesquisa mais detalhada não se pode cravar se eles são funcionários públicos dos níveis mais baixos, empreendedores autônomos, microempresários, outros. Provavelmente uma mistura de tudo isso. Neste caso o efeito da pandemia na renda e nos negócios deve ser a explicação para a adesão ao bolsonarismo. Não tenho ideia de até que ponto este público é atingido pela pregação religiosa, certamente menos do que as classes D e E. Aparentemente, este é um público onde predomina uma ideologia individualista, de vencer pelo próprio esforço, sem vínculos organizativos e solidários. Prato feito para a pregação anticomunista e patrioteira do bolsonarismo.

 

Nas classes B e A, que viram sua renda aumentar significativamente no período do governo Bolsonaro, é onde se encontra a maior proporção de aderentes ao discurso do presidente. Embora seja também o setor com mais alto nível de educação, não parece que este maior conhecimento tenha gerado uma consciência política democrática. Nele vamos encontrar a massa de pequenos e médios empresários, os que se reúnem em motociatas ou que participam de almoços com o presidente nas associações comerciais ou industriais e babam na gravata gritando “mito, mito”.

 

É curioso o baixo nível de compreensão de todos os malefícios da gestão Bolsonaro para a economia neste segmento do eleitorado. A identidade ideológica parece ser decisiva para a opção deste grupo. Não é o discurso religioso que influencia na opção de voto, mas o velho discurso anticomunista, agora traduzido em antipetismo. Neste grupo o tema da corrupção é forte motivador, sempre com o viés de atribuir esta chaga exclusivamente aos governos do PT, ignorando todos os escândalos do governo e da família Bolsonaro. Este é o grupo onde os elementos de racismo, homofobia, misoginia, desprezo pelos pobres, nordestinos e indígenas estão mais presentes. É também o grupo onde o tema do meio ambiente é mais rejeitado. E onde se adota a defesa do armamento das “pessoas de bem” e o aumento da violência policial como política de segurança. E, para completar, este é o grupo de eleitores que assina embaixo do discurso antidemocrático de Bolsonaro, apoiando a ditadura, repressão, tortura e assassinatos de esquerdistas.

 

O tema do meio ambiente, a meu ver o mais dramático e abrangente, por ser urgente e tocar todo o eleitorado, de qualquer classe, não teve muito lugar nesta campanha. Lula, nem que seja para garantir o apoio de Marina Silva, fez algumas declarações a respeito dos desmatamentos, mas nada que tivesse o grau de prioridade que a realidade do país e do mundo exigem. É uma lástima, mas trata-se de uma escolha pragmática da campanha de Lula, já que a consciência ambientalista no Brasil é muito diluída.

 

Para concluir, não se pode deixar de notar que as escolhas das duas maiores campanhas foram aplicadas de forma bem distinta. Bolsonaro ficou centrado nos seus temas decostumes”, no anticomunismo rançoso e no discurso contra a corrupção (na maior cara de pau!). Como era frágil em tudo mais foi sua melhor opção e pode-se dizer que deu certo já que ele saiu de uma expectativa de voto de 27% em maio para chegar aos 43,5 que tem agora e mantendo-se competitivo no segundo turno. Já a campanha de Lula oscilou entre concentrar nos temas “econômicos” e responder aos ataques.

 

Pode-se dizer que deu certo até o primeiro turno, apesar de repetidamente Lula dar o flanco para os ataques sobre a corrupção. Com exceção da entrevista na Globo, Lula respondeu mal às perguntas sobre esse tema em todas as ocasiões. Não é culpa dele. O PT não tem uma explicação aceitável sobre o que se passou em seus governos e não se dispõe a fazer uma mea-culpa. Como a melhor defesa é o ataque, talvez fosse mais eficiente simplesmente mostrar que o telhado de vidro de Bolsonaro é bem maior. Mas se a ênfase na economia convenceu o eleitorado de Lula, para convencer os 1,5% que faltam o tema central é a defesa da democracia, atrapalhada pelas acusações de corrupção. Está sendo um público difícil de ganhar, apesar de Tebet, Fernando Henrique Cardoso e outros medalhões do centro direita e até da direita não bolsonarista.

 

A menos de duas semanas do segundo turno, e já passado o primeiro debate com um empate entre os candidatos, o que prevalece é menos um esforço para ganhar apoio sobre o que o próximo governo deve fazer do que um esforço para desqualificar o adversário. Bolsonaro adotou esta postura porque não tem outra coisa para fazer. Lula entrou no pugilato moral para não ser esmagado pela máquina de mentiras, mas o resultado é que predominam as acusações de ladrão, aborteiro, bandido e satã pelo grupo bolsonarista e maçom, canibal, zoófilo e pedófilo no grupo lulista, pelo menos no ringue das redes sociais. É um horrível rebaixamento do nível do debate que vai decidir o futuro do país.

 

Aparentemente as opções estão cristalizadas e as margens para mudança de votos são mínimas. Os passos em falso de Bolsonaro na relação com os católicos parecem não ter tido impacto perceptível, até agora. Já os insultos aos nordestinos estão levando a uma ampliação da vantagem de Lula na região, mas menos do que esperado pela campanha. E ainda se espera para ver como o eleitorado evangélico vai reagir às acusações de aliança com os maçons e os atos de devoção ao que estas igrejas consideram ídolos sem valor, mas eles parecem irredutíveis na sua adesão ao energúmeno.

 

Se as coisas continuarem como estão até o dia 30 tudo vai depender do comparecimento dos eleitores. A abstenção já fez com que Lula deixasse de ganhar no primeiro turno e pode fazer com que perca o segundo, embora Bolsonaro precise um movimento de voto “subterrâneo” ainda mais forte do que há duas semanas. Não é provável, mas é possível.

 

A todos que entendem os imensos perigos para o país e para o povo com a continuidade de um governo de Bolsonaro, (que pode vir a ser ainda mais prolongado se ele seguir o rumo de outros protoditadores da Hungria, Turquia, Venezuela e Nicarágua) o que temos que fazer é pelejar voto a voto. Temos que conquistar votos em todo o país e não só no Nordeste. A vitória vai ser muito apertada.

 

Leia mais