O desafio de vencer a colonialidade para discutir o novo regime climático

Na continuidade de atividades que buscam pensar as questões ambientais e políticas num tempo em que o paradigma da Modernidade parece não dar mais conta, IHU promove o Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais: Inquietudes e Saídas às Crises de Hoje

Foto: Cintia Gazzelli | WWF Brasil

29 Setembro 2022

 

Quando ainda éramos caçadores e coletores, parecíamos sujeitos de um tempo que tomávamos somente o que nos é dado e necessário. Mas, quando no Oriente Médio, por volta de 8 mil anos a.C., as primeiras concentrações humanas passam a domesticar o trigo ou no centro da América, por volta de 6 mil anos a.C., outros grupos começaram a cultivar o milho e nada mais foi igual. Da ideia de domesticação de plantas e animais passamos ao cultivo e tudo passou a ser transformado para a produção. Se durante toda a Antiguidade aprimoramos as tais técnicas de cultivo, na Idade Média refinamos o conhecimento e a tecnologia para melhor conhecer o solo e tirar ainda mais para a produção. Já na Modernidade radicalizamos a ideia de avanços tecnológicos, sugamos o que podíamos e não podíamos de certas terras no Velho Mundo e avançamos sobre outros continentes com tais lógicas de expropriação e produção.

 

Visto assim, não deve ser surpresa que vivamos sob novo regime climático, uma consequência do embaralhamento dos ciclos da natureza feitos desde a domesticação das plantas pelas primitivas sociedades humanas. Não obstante, se olharmos com vagar para o decurso da história, perceberemos que esse processo desenrola-se na mesma proporção e nos mesmos movimentos de colonização. Olhemos para um exemplo concreto: em entrevista concedida ao IHU, Dhemerson Conciani, pesquisador no IPAM e no MapBiomas, falando sobre o avanço de uma agricultura destrutiva sobre o Cerrado brasileiro, observa que “o Cerrado é o lar de populações tradicionais e povos indígenas que moram aqui há séculos”. Essas pessoas souberam tirar dessas terras o que lhes era necessário e, mesmo que praticando a agricultura, não promoviam a destruição do bioma.

 

Conciani chama atenção que povos originários conseguiu produzir alimento em harmonia com o bioma Cerrado 

Foto: Arquivo pessoal

 

No entanto, observemos como esses modos de vida de populações originárias são colonizadas. Suas ideias são substituídas por outras lógicas e aqueles que resistem são banidos do território. O Cerrado, que antes era aliado, agora passa a ser dominado e a mesma soja que é produzida no sul e centro-oeste passa a ocupar massivamente as chapadas na região do coração do Brasil. O resultado consta nas pesquisas como as que Dhemerson Conciani trabalha: a interferência humana pode levar a cabo todo um bioma e nem sequer o pouco que resta de ambientes naturais asseguram a vida nessas planícies. “Estar em pé não é sinônimo de ter um ecossistema íntegro e funcional. Nós não sabemos o quão degradado está a metade que resta em pé, não conhecemos o 'ponto de não retorno' do Cerrado e não conseguimos medir a quantidade de funções que já foram perdidas”, observa na mesma entrevista.

 

 

 

O exemplo do Cerrado brasileiro é apenas um entre tantos pelo mundo que revelam a emergência de repensar as práticas humanas sobre o planeta. No entanto, esse ato de repensar se apresenta como um desafio maior, quase que como um processo de descolonizar ideias. Ou, nas palavras da professora Luciana Maria de Aragão Ballestrin, em entrevista concedida à IHU On-Line em 2013, é transcender a colonialidade de terras, mas também de ideias de modos de vida. “A ideia de decolonialidade (ou descolonialidade) procura transcender a colonialidade, a face obscura da Modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder”, explicou há quase dez anos, mas poderia muito bem ter sido hoje.

 

 

O desafio é pensar saídas para o estado de desequilíbrio climático e, por consequência, ambiental, mas sem permitir novas colonizações. Ideias vindas de fora podem ser interessantes e indicar caminhos mais verdes para a construção de futuros. Mas será que se olharmos para realidades locais e para aqueles que há centenas de anos são nativos desses espaços, não encontraríamos outros caminhos? É pensando nessa direção que o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais: Inquietudes e Saídas às Crises de Hoje. A atividade vem na esteira de uma série de outras que o IHU vem promovendo para que pensemos novos regimes políticos e climáticos para além dos caminhos que a Modernidade e o cientificismo apontaram como “A Saída”.

 

Ciclo Saberes Decoloniais inicia atividades no dia 30-09-2022

Imagem: arte IHU

 

Das periferias do mundo, respostas locais com impactos globais

 

Desde o início de seu pontificado, Francisco tem insistido que é a partir do local que devemos agir, pois, embora possamos não perceber, é da reverberação das ações locais que surgem os impactos globais. E mais: como destaca no vídeo abaixo, de 2019, ainda diante da catarse causada pela pandemia de Covid-19, é preciso pensar nos mais pobres, povos e países, que são os mais impactados pelas consequências do novo regime climático.

 

 

 

É, como bem disse o papa, uma questão de justiça ambiental. E, quando falamos em justiça ambiental e consequências de uma colonização que dizima pessoas e territórios, logo vem à mente o continente africano. No entanto, o que pouco pensamos é que podem vir dessas periferias do mundo movimentos decoloniais que fazem a diferença nessa discussão acerca da emergência da mudança das ações humanas sobre o planeta. É nesse sentido que vai a primeira conferência do Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais: Inquietudes e Saídas às Crises de Hoje, intitulada Perspectivas Decoloniais: o papel do sul global no novo regime climático, com Jess Auerbach, da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.

 

Jess Auerbach será a primeira conferencista do Ciclo

Foto: Rhodes Project

 

Jess vem há bastante tempo trabalhando a partir de perspectivas decoloniais. Em artigo publicado pelo IHU em 2017, ela já destacava que essa tarefa não é nada fácil, pois consiste em abandonar os saberes hegemônicos, aqueles já cristalizados e aceitos em todos os lugares, e forjar novos rumos. “Parte de nossa tarefa é construir um cânone, conhecimento e uma maneira de conhecer. Isto está acontecendo em consonância de um movimento por estudantes sul-africanos para descolonizar suas universidades; ao movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos; e no contexto de uma história muito mais profunda da reimaginação nacional na África e no mundo”, apontou na época.

 

 

 

E foi de exercícios como esse que conceberam uma espécie de currículo decolonial de Ciências Sociais. Não se trata de uma receita pronta, mas de princípios que constituem, e que podem ser conferidos abaixo a partir de uma ideia de sete compromissos a serem assumidos.

 

 

 

Outros caminhos para produção de conhecimento científico

 

Mais recentemente, Jess materializou tais princípios na pesquisa intitulada Da água ao vinho: tornando-se classe média em Angola. E a jovem branca, que nasceu num interior agrícola da África do Sul, consegue marcar bem a desconstrução até do que somos acostumados a conceber como a apresentação de uma pesquisa científica. Nas primeiras linhas, já destaca:

 

Nasci em 21 de março de 1985 em uma cidade agrícola do interior da África do Sul, a sudeste da fronteira com Lesoto. Não é assim que livros acadêmicos geralmente começam, mas permaneçam comigo, pois isso é relevante. Vinte e cinco anos antes, em 21 de março de 1960, a polícia sul-africana abriu fogo contra manifestantes civis, matando 69 pessoas. O acontecimento, hoje conhecido como o Massacre de Sharpeville, foi apenas um entre os milhares de atos de violência cometidos pelo Estado sul-africano, que, à época, sustentava o regime político do apartheid. Apartheid significa, literalmente, distanciamento (apart-ness), e, na África do Sul, as pessoas que deveriam ser mantidas a distância eram aquelas de “raças” diferentes.

 

O relato em primeira pessoa e encharcado de vivências pessoas já se apresenta como um passeio por uma experiência de vida que se mistura a uma experiência de pesquisa. Uma pesquisa que, por sinal, concebe outros olhares sobre campos disciplinares, como a Antropologia, com bem pontua ainda antes, na apresentação da obra.

 

A antropologia é uma disciplina que, diz-se, “torna o mundo seguro para a diferença humana”,  e, pelo interesse da segurança e da diferença, penso que é importante reconhecer de antemão o que este livro é e o que não é. Ele não é um texto definitivo. Não é um texto que almeja falar por ninguém além de mim mesma. Não é um texto que se esconde das experiências de diferença sentidas e percebidas – as minhas e entre as muitas pessoas que contribuíram com este livro.

 

Em Da água ao vinho: tornando-se classe média em Angola, Jess traz o relato de histórias vivenciadas numa vida cotidiana em uma pequena cidade litorânea de Angola. É desse lugar que ela observa as diferenças que nos constituem enquanto sociedade de sujeitos. Assim, sob a questão “como posso pesquisar o que está funcionando em Angola, o que faz as pessoas felizes?”, a jovem passeia em análises sobre esse lugar e pessoas, distâncias e aproximações entre sujeitos dessa sociedade e o próprio lugar onde vivem. “Separações globais existem porque nós permitimos que o mundo fosse dessa forma. Nossos sistemas sociais e políticos formam o mundo em que vivemos – em Angola, e em qualquer outro lugar – e eles estão intimamente conectados, dos direitos humanos às mudanças climáticas, da manufatura e regulamentação do petróleo à limpeza do ar”, observa, ainda da apresentação do estudo.

 

Capa do livro de Jess, que pode ser acessado gratuitamente

Foto: divulgação

 

É por isso que Jess defende que “nós precisamos fazer mais para compreendermos uns aos outros, para reconhecer nossa humanidade compartilhada, bem como as estruturas e os sistemas de crença que nos tornam diferentes”. Para ela, é somente assim que poderemos constituir a união de “times globais” que trabalham juntos para o bem de todos. “Este trabalho precisa estar na direção do mundo que nós de fato queremos – não apenas daquele que nós temos no momento”, acrescenta. E isso tudo para repensar nossas relações com outras pessoas, diferentes e iguais a nós, outros seres viventes e até mesmo com o próprio planeta.

 

 

 

É assim que a jovem pesquisadora apresenta seu olhar sobre a crise climática e as possíveis saídas com base em outras vivências e experiências, como as que vêm de um sul global. Aliás, é como provoca em um dos vídeos de seu canal no YouTube. Quem sabe, do sorriso e da alegria de crianças que integram um projeto de música, e que brincam numa cidade da África, não surja a inspiração para outras conexões, outros modos de vida que nos leguem outros futuros possíveis.

 

 

 

Saiba mais sobre Jess Auerbach

Professora associada e diretora do Mestrado em Filosofia em Inovação Inclusiva, do Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade da Cidade do Cabo. É acadêmica de classificação P (categoria máxima) da Fundação Nacional de Pesquisa da África do Sul.

A professora é PhD pela Universidade de Stanford, tendo estudado na Universidade Federal Fluminense com bolsa sanduíche em 2014. Possui mestrado em Ciência pela Universidade de Oxford.

 

Jess Auerbach (Foto: ITTED)

 

 

Autora de dois livros e inúmeras publicações acadêmicas. Trabalhou em pesquisa e ensino em Angola, Brasil, Ilhas Maurício, Moçambique, Inglaterra, EUA e outros lugares. Presta consultoria em ecologia e conservação, política de ensino superior e melhores práticas globais em sistemas de conhecimento.

Atualmente, é bolsista Iso Lomso no Instituto Stellenbosch de Estudos Avançados e pesquisadora associada da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Também trabalha em um novo livro sobre infraestrutura de conhecimento digital na África.

 

Artigos de Jess Auerbach reproduzidos pelo IHU

 

Reportagens com Jess Auerbach reproduzidas pelo IHU

 

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