Cartas a Jó. Artigo de Roberto Mela

Quadro representativo de Jó, que recusou-se a desistir de sua integridade. (Foto: Tower Bible and Tract Society of Pennsylvania)

09 Julho 2022

 

" é o espelho de cada homem e nele cada um pode encontrar os meandros da própria vida e as saídas para vivê-las com dignidade e com fruto", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 05-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

 

Doutor em Teologia Espiritual, o ir. Michael Davide, monge beneditino brasileiro de 58 anos que vive na Koinonia de la Visitation em Rhêmes-Notre-Dame (AO), estabeleceu de forma original uma correspondência cheia de afeto e empatia com .

 

Escreveu-lhe quarenta e duas cartas e sete notas à margem, acompanhando-o no seu caminho doloroso de duro confronto com os "amigos" que vieram consolá-lo, mas também de diálogo cheio de dignidade e honestidade com o Deus a quem permaneceu fiel.

 

Vinte e oito cartas são "do lado do homem", nove "do lado de Deus" (em que os amigos desapareceram) e as últimas cinco "do lado do homem e de Deus".

 

Jó e seus amigos

 

O autor acompanha passo a passo o desenrolar da dolorosa aventura humana e espiritual de , dedicando uma carta a cada capítulo do livro. Ele resume o tema espiritual-teológico sob um título muito preciso, icástico.

 

A especificidade desse livro de Michael Davide é combinar profundas reflexões espirituais com notas sutis e úteis de natureza psicológica. Ele acompanha a jornada de Jó, tornando-a sua, comparando-a com sua própria vivência.

 

é o espelho de cada homem e nele cada um pode encontrar os meandros da própria vida e as saídas para vivê-las com dignidade e com fruto.

 

O autor aponta como os amigos de Jó, com a intenção de defender Deus a todo custo, apoiam com espada desembainhada e, no caso de Eliu, sem qualquer empatia, a teoria de que a dor deriva de uma culpa cometida, da qual se é mais ou menos ciente. Os amigos defendem Deus induzindo a confessar aquilo de que ele não se sente culpado. O embate também se torna violento nas palavras, injusto nos conteúdos, equivocado na abordagem.

 

Prevalece a teoria abstrata defendia também contra a evidência da dor presente de forma misteriosa e dramática nos recônditos que a vida coloca diante do homem.

 

defende com veemência a sua dignidade, sem ceder a uma submissão pura e simples a um suposto projeto punitivo de Deus. Não aceita a humilhação do homem diante do Criador, mas permanece firme em sua disposição de se confrontar com ele.

 

Espelho de humanidade vária

 

A reflexão de Michael Davide desdobra-se sobre os mais variados temas, emergindo nos diversos capítulos do livro de Jó: felicidade e dignidade, tranquilidade e hipocrisia, ilusão e fidelidade, razão e desespero, religiosidade e vida, sabedoria e respeito, terror e vergonha, sonhos e tolerância, tentação e liberdade, paz e transcendência, consciência e mistério.

 

Os três primeiros companheiros estão em busca das causas do mal que atingiu , enquanto Eliu busca o fim ao qual a dor deve levar: a resignação e a submissão a Deus, a obediência a ele sem discussão.

 

As reflexões do estudioso sublinham e defendem a dignidade do homem mesmo em sua eventual culpa, exortam-nos a não permanecer prisioneiros do remorso que faz a vida apodrecer, condenam a posição de Eliu que banca o professor/aluno íntegro e pedante que repete a lição de cor, não vendo que, desta forma, ele se eleva orgulhoso ao mesmo nível que Deus. Eliu carece de intimidade com , aquela intimidade que, ao contrário, conota o diálogo entre ele e Deus, o Criador.

 

Providência. Perguntas e Respostas

 

A Providência não se manifesta apenas na ausência dos problemas da vida. O que dizer das tragédias presentes na dor inocente e não vinculada a culpas morais evidentes, às quais se poderia eventualmente vinculá-la de acordo com uma determinada teologia/ideologia?

 

Para Eliu tudo funciona perfeitamente, mas a vida tem seus lados obscuros. Deus está presente na vida do homem, mas não é o titereiro de todas as alegrias e de todas as desgraças. A providência de Deus existe, mas não pode ser regimentada e regulada segundo critérios humanos.

 

Não é que Deus se recuse a responder ao homem ou que a dor seja uma questão de correção necessária, como argumenta Eliu. Segundo Michael Davide, Deus dá a nós, seres humanos, tempo para retificar nossas expectativas e nomear melhor nossas necessidades, purificando nossa maneira de imaginar a vida do Altíssimo sem ter que imaginá-la tão diferente e necessariamente mais abençoada que a nossa.

 

grita a Deus: “Senhor onde estiveste todo este tempo? Por que não apareceste desde o início para colocar fim às minhas dores?" Uma resposta veio ao monge Antônio: “Eu estava aqui, Antônio, mas esperei para ver a tua luta. Porque tu a enfrentaste e não foste vencido, eu sempre serei a tua ajuda e te tornarei famoso em todos os lugares"(cit. na p. 201).

 

No furacão Deus responde e , sem humilhá-lo, mas lembrando que o grande mistério da criação não é segurança e proteção, mas cuidado mútuo. “Essa cura é possível numa fidelidade nunca dada como certa, mas sempre complexa a ponto de ser por vezes ambígua. A fidelidade nunca é unidirecional, mas sempre mutável e variável” (p. 202). busca Deus, mas Deus buscou o homem desde a criação: "Onde você está?" (Gn 3, 9).

 

Para as 25 perguntas que Deus dirige a , nenhuma resposta é possível. O que tranquiliza o coração de Jó, porém, é - segundo Michael Davide - o fato de o Todo-Poderoso falar como um "vento úmido e refrescante" (Dn 3,50).

 

Deus tem argumentos semelhantes aos de Eliu, mas proferidos com amor e intimidade. Deus não esmaga, mas eleva, ao amigo reencontrado e jamais repudiado (ao contrário dos amigos...) o Altíssimo se confessa e, ao fazê-lo, se entrega.

 

A intimidade faz a diferença entre as demonstrações dos amigos e a relação redimida com o qual o Todo-Poderoso envolve .

 

Dor, cosmos e espanto. A terapia de beleza

 

A dor não é explicada nem decifrada por Deus, nem por sua causa nem por seu propósito, mas simplesmente acolhida e encastoada no conjunto da criação como uma joia em uma coroa.

 

Deus toma pela mão e o acompanha como uma criança para contemplar a imensidão e a beleza da criação, para que possa aprender a se maravilhar sem querer sempre entender. Deus serenamente faz Jó entender seu lugar e papel no fluxo eterno das coisas.

 

A beleza do cosmos não é fixa, mas se move e se transforma continuamente. O cosmos respira com ordem e rigor sem ser mecânico, mas vivo. Leva em conta nossos critérios de bondade e verdade, mas os supera em um movimento maior. Somos parte e não reguladores do cosmos, que é uma profusão de movimento e liberdade. Toda liberdade e toda constrição se encontram e muitas vezes se chocam com outros movimentos e com liberdades diversas e isso é lindo.

 

Como se faz com uma criança, Deus quer que não entenda como o cosmos funciona, mas que participe da alegria de existir. O olhar do coração deve ser descentralizado, para ser livre para o incompreensível como sinal da graça original e não do pecado original.

 

Admitir que não somos capazes de explicar o estupendo enigma da beleza permite-nos não ter mais necessidade de explicar o enigma da dor. Desta forma nos libertamos até de ter que narrar necessariamente a dor, nos bastará vivenciá-la. O Altíssimo te mostra suas obras e assim te distrai dos teus pensamentos para te mergulhar no mistério. Podes finalmente perceber um mundo fora de ti” (pp. 208-209).

 

É uma “terapia de beleza. Não é esquecimento, mas recuperação das proporções para se curar da doença religiosa de absolutizar e verticalizar exageradamente. Ao fazê-lo, corre-se o risco de perder tanta beleza levando-se demasiado a sério” – escreve o autor (p. 209). O Criador nos ajuda, através da admiração, a recuperar o equilíbrio e encontrar as proporções certas.

 

A renúncia mais séria e necessária “refere-se ao nosso desejo de ser sábio a todo custo. Na verdade, a única coisa verdadeiramente permitida é tornar-se sensível a cada batimento de vida sem nunca querer defini-lo” (ibid). As diferentes realidades se manifestarão então, inocentemente, em sua dimensão de profundidade, até mesmo irritante. No cosmos há espaço para o imponente cavalo e a delicada borboleta.

 

O hipopótamo e o Leviatã

 

Com a descrição do hipopótamo somos postos diante da complexidade em que os opostos se encontram sem nunca coincidir. O cavalo do rio come capim, mas também precisa ficar na água para proteger sua pele delicada. Aos olhos do Todo-Poderoso, talvez sejamos como pequenos hipopótamos dotados de grande força, nos entanto necessitados de tanta gentileza.

 

No Leviatã há uma sutil correspondência entre o tamanho mastodôntico e impressionante e a dureza de seu coração. Os antigos sábios afirmavam que Leviatã foi privado por Deus de sua parceira e castrado, para conter sua violência. Privado de fecundidade e de futuro, no medo da solidão, a violência se multiplicou. Ele reage à dor com uma rebelião exasperada através da qual maximiza cada migalha de vida e de força num vitalismo tão aterrorizante e triste.

 

O Leviatã reflete um estado altamente paradoxal: dor infinita com enorme prazer. É a transição do prazer de estar com alguém para o medo de estar sozinho. Em um nível espiritual, se gera uma crescente afeição pelo poder, e seu desejo torna insaciável.

 

O Altíssimo se despede de  mostrando o monstro que podemos nos tornar quando o coração se torna "duro como pedra" (41,16), para se proteger do sofrimento. “O Leviatã não simboliza o Todo-Poderoso que nos domina a ponto de nos aterrorizar com sua força. Somos nós quando nos tornamos reféns de nossa dor” (p. 221).

 

Os rabinos argumentam que no paraíso os justos desfrutarão de um banquete de carne de Leviatã. A força bruta será vencida para sempre. O bem-aventurado se alimentará de sua carne para extrair dela energias de alegria eterna. O autor observa: “Nosso destino também, que deveria se tornar um só com nosso desejo mais puro e verdadeiro, deveria ser o de alimentar a felicidade alheia” […]. A dor pode indicar o caminho para amansar as 'feras' que vivem dentro de nós e nos dilaceram. Torna-se um dever de humanidade não dar espaço ao que em nós ‘eleva-se orgulhoso, isolando-nos e afligindo-nos” (p. 222).

 

A rendição

 

A quadragésima segunda carta é dedicada à rendição de Jó, amigo íntimo de Deus, não humilhado, mas honrado como "o meu servo Jó" (42,7).

 

A confissão final de Jó (42,2-6) não é de culpa, nem de pecados: é uma profissão de misericórdia e assombro. Não há nada a acrescentar entre Jó e o Todo-Poderoso. É uma confissão feita a um amigo, a quem se pode confessar ser pó e cinzas sem se sentir aviltado nem esmagado.

 

O Todo-Poderoso criou a pequena existência do homem não em concorrência, mas em dançante harmonia com as "coisas inescrutáveis" (42,3). Esta é a razão pela qual seria inútil querer entender ou querer compreender: são simplesmente estupendas e pronto.

 

agora vê e sabe o que lhe pertence tão profundamente que lhe é irrenunciável. “A grande dor provada não se deveu à culpa, mas à ‘retidão’ do seu modo de vida - escreve Michael Davide a . Nunca renunciou às suas responsabilidades, continuando a chamar o Altíssimo para tomar as suas. A dor o refinou não como um mal necessário, mas como um lugar de revelação do seu ser mais profundo e verdadeiro” (p. 225).

 

se declara ignorante, mas realiza de fato o plano original do Criador: ter alguém “que lhe corresponda” (Gn 3,20), muito mais do que uma mulher pode ser para um homem e vice-versa” (ibid.).

 

“Coisas retas” e o repouso do perdão

 

No final do livro, o Altíssimo menciona o nome de doze vezes. Ele mostra toda a satisfação, sua admiração, o comprazimento. Deus confia nele e confia somente a ele a tarefa de se tornar intercessor e garantidor.

 

As "coisas retas" pronunciadas por Jó são tais porque vêm da vida, do "verdadeiro" "feito de carne e sangue, suor e tremor, incerteza e paixão... da vida vivida e sofrida" (p. 229). testemunhou "coisas retas" que incineraram as verdades pré-prontas dos amigos.

 

Agora oferece um sacrifício em seu favor com coração sereno, capaz de perdão natural.

 

Agora repousa no perdão doado. Ele se aproxima de Deus e perdoa. “Perdoar verdadeiramente é inconsciente como respirar - escreve Michael Davide -. Quando alguém deu o grande passo de perdoar o Altíssimo pela desgraça da vida que ele nos deu, ficar no caminho para o bem dos outros é magnificamente simples. Quando nos perdoamos o erro fatal de querer encontrar Deus apenas na felicidade, pensando que a infelicidade seja o seu castigo, perdoar os outros é uma obrigação de honra (p. 230).

 

Deus se revela igual a antes de recompensá-lo. A felicidade de Jó é possível novamente, mas é completamente nova. Os amigos voltam ao seu devido lugar, na periferia da vida de Jó. E lá eles devem permanecer. O perdão é um dom dado a si mesmo. “Para perdoar você deve perdoar a si mesmo por ser atingidos, no entanto, pelo mal, mesmo desejando o bem […] você reconheceu diante do Todo-Poderoso que você também está em agonia entre o bem e o mal […]. Você concordou em abrir os olhos para sua pequenez encastoada na grandeza do universo. Você certamente não se descobriu insignificante ao perceber que você é sempre relativo e em relação” (p. 231).

 

Deus abençoa o futuro de porque, no tormento do sofrimento, soube e quis progredir. Ele não aceitou se deixar enterrar por ele. “Com coragem continuaste a transitar entre o altar de Deus e o coração mais ou menos humano de cada criatura (Mt 5, 23-24). Teus parentes e amigos te dão 'um anel de ouro' (Jó 42,11). Com este dom cada um reconhece o quanto e como conseguiu ligar a sua história, deslocando-a inteira e integralmente” (p. 232). A desgraça pode se tornar uma graça recebida e compartilhada.

 

, além disso, fez um êxodo interno e, indo contra a tradição, não procura um marido para as três lindas novas filhas, mas as coloca de lado na herança no mesmo nível que seus irmãos. No crisol da dor, aprendeu a não fazer nenhuma diferença entre as criaturas. Cada uma deve viver o máximo possível, na beleza e na liberdade, sem ter que se submeter, nem mesmo com amor, a ninguém (cf. p. 234).

 

No final da história falta a esposa (pelo menos explicitamente) e também Satanás. O importante é que Jó esteja presente, "vivente em todos aqueles que sabem resistir à tentação da superficialidade, para ser cada vez menos crédulos e cada vez mais crentes (Jo 20,27) [...] Quanto medo, quanto temor, que circunspecção em cada curva do existir! Na realidade, na próxima esquina não se pode e não se deve adivinhar nada. Basta aceitar virar com prudência e com uma pitada de curiosidade” (p. 234).

 

"O amigo caríssimo"

 

Michael Davide conclui cada uma de suas "cartas" com uma referência ao "amigo caríssimo", Jesus. Suas palavras e gestos iluminam o caminho percorrido por e mostram sua beleza em sua extrema realização, iluminando também todas as atitudes psicológicas e espirituais do homem encontradas nos diversos capítulos da obra-prima sapiencial examinada pelo estudioso com grande amor e empatia.

 

Livro denso de sugestões e recomendações positivas, para viver os momentos difíceis da vida com serenidade, sentindo-se companheiros de viagem de e companheiros de sua fé inabalável no bom Deus e amigo do homem.

 

Michael Davide, Lettere a Giobbe. Sul mistero della gioia e del dolore (La Bibbia e le parole), TS Edizioni, Milano 2022, pp. 244, € 18,00, ISBN 9791254710029.

 

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